segunda-feira, 21 de junho de 2010

Segredos do implúvio

Jorge Adelar Finatto



I

Dizem
que escrever
        poemas
é ofício
   de pouco valimento
mas pouco se revelou
sobre a memória da sombra
as paredes úmidas
da velha casa de madeira
o esquálido corredor
onde se morria
um dia todos os dias
              sem notícia
sem amanhã

II

alguém precisava
recordar
os soturnos habitantes
             da rua humilde
na cidade serrana

lembrar o cheiro
de suas vestes
as pedras soltas
na porta das casas
os casacos pretos
nas manhãs de geada

III

nada ou muito pouco
se disse
dos segredos do implúvio

eu me pergunto por que
esse vazio em torno

estaria no silêncio
acre das caves
o destino de partir?

trabalho lento
nas escarpas
     do coração

IV

não fossem
os trilhos
do trem
o barulho santo
do trem
atravessando
a madrugada
criando ao menos
em tese
a possibilidade
da fuga
muitos teriam
desistido de tudo
ali mesmo
como fez Chico
o Esquecido

V

o coração não é
assim mero

cresce em segredo
na dura colheita

não se esvazia
o coração
como se esgotam
as cisternas

VI

alguém precisava contar
a náusea persistente
a longa e tortuosa estrada
que desce na Capital

melhor não inventar
                   histórias
de castelos e linhagens
que nunca existiram

e se houve
federam
como podem feder
as escadarias
dessas obscuras passagens
perdidas no planeta
que recolhem
seres rastejantes

VII

o que se registra
no tombo do tempo
é que há um menino
imóvel
à beira da jovem defunta

naquele lugar
a despedida
com alguma flor
sussurros abafados

ele pergunta
onde ela foi habitar

o que vê
é a morte
e seu absurdo trabalho
convertendo em pó
a luz dos olhos

________
Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Fotos: J.Finatto

Um comentário:

  1. Tão triste: "converter em pó a luz dos olhos" é de cortar o coração.

    Preciso crer que a luz dos olhos de quem amamos e partiu se torna uma estrela para nos guiar na escuridão...

    Beijos,
    Carol

    ResponderExcluir