Jorge Adelar Finatto
Não suportamos mais despedidas. Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.
Inverno. Passo dos Ausentes é um lugar perdido na Serra do Rio Grande do Sul, cercado de neblina e vento. Um resto de sol, entre nuvens, ilumina as ruas. As folhas secas caem no chão. Passa um vulto na praça, fugindo do frio e da noite próxima.
O inverno impõe um ritual próprio. Nos recolhemos cedo em torno do fogão a lenha, os pinhões na chapa, a água esquentando na chaleira. Pouco saímos à rua. Nos tornamos quase invisíveis.
Somos poucos habitantes na velha cidade. Estamos quase em extinção. A população, ao invés de aumentar, está diminuindo ao longo dos anos. Os jovens vão embora, só voltam de vez em quando, em datas especiais. A falta de gente faz com que nos agarremos uns aos outros. Preservar o que resta da cidade, tratar bem os que resistem, é o que nos move.
Somos poucos. A memória e o afeto são nosso escudo contra a escuridão.
Em Passo dos Ausentes, qualquer pessoa é mais do que um simples habitante, é alguém da família. Imprescindível como um amigo ou um parente a quem se quer muito. Nesse território tão pequeno e esquecido, não podemos abrir mão de ninguém. Nos procuramos e nos reconhecemos uns nos outros. Espelhos humanos é o que somos, espelhos que não podem quebrar. Somos poucos.
Talvez por isso, mais do que em outros lugares, temos muito presente o sentido da solidão e da brevidade das coisas. As brigas aqui não podem durar mais do que um dia, sob pena de morrermos congelados.
O maestro da banda municipal, o Giocondo, morreu faz cinco anos. Desde então, não apareceu ninguém como ele pra tomar conta do nobre ofício. Os músicos tocam as mesmas músicas, fazem seu trabalho com esforço. Mas não é a mesma coisa. Falta o Giocondo com seu talento, criatividade, sua cabeça branca, no coreto da praça, regendo os componentes da banda, entusiasmando o público do modo como só ele sabia fazer. Sem a presença do nosso maestro, a banda toca. Mas não encanta.
Os habitantes de Passo dos Ausentes são livros vivos, depositários da memória comum. As histórias que cada um traz, as lembranças, os sentimentos, esse acervo é de todos, nada pode ser desperdiçado.
O frio, a garoa, a névoa, a chuva, o vento não dão trégua. Resta o olhar ao longe através dos contrafortes.
O inverno cultiva sentidos extraviados.
Em Passo dos Ausentes, as pessoas ruminam tudo o tempo todo. Vasculham o voo das nuvens e das andorinhas azuis, escutam o silêncio das constelações, andam absortas na beira dos peraus que nos cercam. Os detalhes das coisas importam. Não estamos à vontade no mundo. Viver nos pesa muito, muito.
Somos uma irrecusável perda sob o sol. Viajantes audazes a navegar contra o mar do esquecimento. Não suportamos mais despedidas. Quando alguém morre ou vai-se embora, fica um buraco insuportável na paisagem.
Os fantasmas costumam encontrar-se na estação de trem abandonada. Ali Juan Niebla, o bandoneonista cego, executa seus concertos todas as terças-feiras, às cinco da tarde. No banco da gare vazia, com os óculos escuros, seus dedos deslizam rapidamente, às vezes suavemente, sobre o teclado branco e preto, enquanto movimenta a cabeça para os lados, para trás, para frente.
Sempre em silêncio, com suas grossas mantas e casacos de lã, os fantasmas sentam perto dos trilhos cobertos de hera, ouvem o concerto de Niebla.
O relógio redondo e preto, na entrada da estação, está parado desde a metade do século passado.
Diante da evasão das pessoas em busca de outros sonhos e horizontes, e do avanço do oblívio nas ruas e casas, precisamos urgentemente reconstruir a cidade do afeto, da memória e do encontro. Será que conseguiremos?
Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
No austero silêncio das nuvens, essa página de busca-vida.
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Fotos: J. Finatto
Leia também A cidade perdida: as origens, post de 25/12/09
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