Devia ter dito: cuidado, frágil, delicado. Devia ter escrito num cartaz, em letras vermelhas, pregado na testa: atenção, favor não quebrar um coração. Mas não. Havia, qual Adamastor apaixonado, o pudor de não reconhecer a profundidade impossível daquelas águas.
Devia ter anunciado, sem receio, entre mas pise com desvelo. Mas não, todos os avisos foram desligados naquele barco desmantelado, em sua louca travessia pelo mar de seda ondulante.
Como um samurai na leve embarcação de bambu, rumo às ilhas desertas, ele se jogou na colossal aventura. A lua de papel de arroz lilás num céu azul clarinho.
Devia, ó devia, ter imaginado o previsível abismo. Devia ter falado isto e muitas outras coisas, dias de sol e nevoeiro na abertura do postigo, os primeiros ruídos matinais na casa da solidão, os ventos e os mastros desnudos no cais escondido.
A presença de velhas e incuradas cicatrizes o levou a arrostar de peito aberto a temerária navegação.
Na praia, deitado na areia fria, a cabeça entre os braços abertos em candelabro, pernas recolhidas. A chuva molha a face apagada, o quimono com a sanguínea flor bordada, a nódoa do abandono no peito em silêncio.
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Do livro Calado observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
Foto: J. Finatto
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