Veneza é o sonho de toda Colombina.
Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.
Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.
Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.
O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.
Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.
O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.
Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.
Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.
Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque.
De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.
De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.
Texto publicado em 8 de novembro, 2010.
Foto: J.Finatto
essa PHOTO é uma pintura, nos 2 sentidos da palavra. por ser incrivelmente bonita e por transparecer uma obra de arte aos olhos mais atentos eclea berenice
ResponderExcluirdigamos q estamos no margs assistindo a uma exposição de obras de arte. essa foto, q eu denominaria REFLEXO EM CORES. então, todos iriam admirar essa PHOTO pelo q transmite, embora indescritivel de tão bonita imagem ecléa berenice
ResponderExcluirNo Margs, Ecléa? Que maravilha! Esse pensamento é muito bonito, assim como o título que deste à foto.
ResponderExcluirVamos vivendo e sonhando, que é muito bom, né?
Abraço, amiga.
JF
o margs, por ser o espaço pras artes. creio q pras letras ainda nao, mas como tuas imagens falam por si, então seria o lugar ideal....eb
ResponderExcluirOlá Adelar!
ResponderExcluirAlberta parece ser uma mulher tristonha... Ela diz que Passo dos Ausentes é chuvoso e nublado sempre. Com o pouco que li sobre a cidade, eu a construí, em meus pensamentos, pequenina e cheia de graça - com pessoas divertidas, uma praça bonita (Praça dos Ausentes, se não me engano)onde pode se encontrar figuras como um aviador que voa em um zepelin, essas coisas - e fui surpreendido pelas declarações de Alberta.
Um ótimo texto.
Caro amigo,
ResponderExcluireu sou apenas o mensageiro destas vidas que encontram em mim a eternidade possível. Em Passo dos Ausentes o lado efêmero das coisas é muito sensível. Por isso, talvez, os sentimentos são muito importantes. Alberta é a Senhora da Biblioteca e acho que não é triste. Mas, como toda colombina, deve ter lá suas tristezas.
Abraço.
JF
Adelar,o que é o Contraforte dos capuchinhos? E por que é ali que se vai embora de Passos dos Ausentes?
ResponderExcluirAgora eu quero saber tudo! ehe
Abraço
Caro amigo,
ResponderExcluirinformes geográficos, geológicos e topográficos são de grande valia para a correta compreensão desta etérea região. Tratei desses temas, em parte, no texto "Os voláteis de Passo dos Ausentes", de 29 de abril, 2010.
Abraço.
JF