segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O impossível voo de Francisco Orange, neto de Francisca Hände von Guter Geburt, parteira, viúva e vidente, em direção a Lisboa, de onde nunca mais voltou nem mandou notícias

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Última imagem do balão Terra dos Ausentes


O nome é misterioso e distante como os pensamentos do personagem desta insólita história: Francisco Orange Junge Mit Flügeln dos Santos Passos. Era um dos loucos da cidade.

Em Passo dos Ausentes, a palavra louco foi expulsa dos dicionários. Não é pronunciada em respeito a ilustres antepassados e a alguns dos atuais habitantes. Para o Dr. Fredolino Lancaster, médico, 92 anos,

- A expressão deve ser evitada. As palavras têm fio, são capazes de rasgar mesmo tecidos mais rijos, reabrem velhas feridas. Chamar alguém de doido, em Passo dos Ausentes, é rematada indelicadeza, uma leviana redução do outro.

- Digamos que temos aqui temperamentos sensíveis, insondáveis, determinados, brilhantes às vezes, herança de séculos de isolamento neste lugar.

- O oblívio e a solidão produzem seus frutos.

Francisco Orange passou a infância calado, morando com a avó no Sobrado dos Espelhos. Como se recusasse a conviver com outras pessoas, aprendeu a ler, escrever e fazer contas em casa. A adolescência encontrou-o fazendo projetos e construindo coisas que voam. Primeiro foram as pandorgas, as maiores e mais bonitas que iluminaram o céu da cidade.

Depois vieram as minúsculas e coloridas borboletas de papel de seda. No início de maio, costumava jogá-las do alto da torre do relógio, em número tal que se espalhavam um pouco por toda a cidade.

Nefelindo Acquaviva, construtor de aeroplanos, dirigíveis e balões de fundo de quintal, com vários desastres no currículo, convidou o jovem para aprender a arte da navegação pelo ar. Daí em diante iniciou-se uma longa parceria entre o rapaz incomunicável e o mentor doidivanas. Vários aparelhos foram construídos pelos dois. Pilotados por Acquaviva, todos vieram ao chão, sendo um mistério que a morte não o tenha colhido depois das quedas.

Aos vinte anos, Francisco Orange construiu um primeiro e pequeno dirigível, que deixou o mestre orgulhoso. Com a geringonça, aventurou-se aos ares até desaparecer nas alturas e lonjuras das montanhas azuis dos Campos de Cima do Esquecimento no frio de julho. Não retornou. Uma expedição de busca foi organizada na Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Musical, Geológica, Astronômica e Antropológica de Passo dos Ausentes, por iniciativa de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

A expedição encontrou o navegante dez dias depois, no Contraforte dos Capuchinhos, magro, esquálido, enrodilhado no alto de ciprestes, a poucos metros de um penhasco. O arvorista Guilherme Tadeus Baum salvou-o, utilizando um complicado sistema de cordas e polias, momentos antes do dirigível afundar no abismo.

Acostumado a terríveis desastres com suas estrovengas voadoras, Acquaviva sentiu orgulho mais uma vez do discípulo.

- É o modo que ele encontrou de ser feliz, quer ficar mais perto dos anjos talvez. Deixem o Francisco em paz. Deus sabe o que faz. Ele tem a proteção de São Francisco. Nasceu com duas asinhas azuis sobre os ombros. Sempre soube que o menino ia voar um dia - disse a octogenária Francisca Hände von Guter Geburt, parteira, viúva e vidente, que criou o neto na ausência dos pais. 

Juan Niebla, músico cego, tocador de bandoneón na estação de trem abandonada, observador atento das histórias da cidade, relata o último voo de Francisco Orange.

- Era uma manhã de novembro de 1975, os ventos de finados andavam loucos por aí. Francisco Orange tinha então 25 anos, batizou o balão de Terra dos Ausentes. Disse que ia embora para Portugal, de onde viera o trisavô materno. De nada adiantaram os apelos da avó e dos vizinhos. Decolou do quintal ao lado do galpão de Acquaviva, sumiu em direção ao litoral. Não mais se soube dele até o dia em que o nosso astrônomo, Palomar Boavista, pesquisando na Biblioteca Pública de Porto Alegre, deparou-se com aquela notícia do Correio do Povo, gerada pela France-Presse.

- A foto de um balão amarelo caído no Terreiro do Paço, em Lisboa, à margem do Tejo, com aquele homem magro, vestindo mastigada roupa preta, com barba abundante e olhos fundos, não deixava dúvida. Ali estava o jovem com asas de Passo dos Ausentes. O aparelho - o que restou dele - foi recolhido pelas autoridades. O insólito viajante teve de explicar-se.

- No dia em que partiu de Passo dos Ausentes, os tristes ventos de novembro o empurraram rapidamente para o Oceano Atlântico. Doze dias depois uma tempestade o derrubou em Cabo Verde. Sobreviveu por milagre. Com o auxílio da marinha daquele país, após um ano de trabalho consertou a nave e levantou âncora. Cinco dias mais tarde, foi colhido pelo mau tempo em pleno deserto do Saara, no sul do Marrocos, vindo a cair outra vez. Ajudado por beduínos, sobreviveu de novo. Ficou dois anos no deserto com aquela tribo até levantar voo para Portugal.

- As pessoas do deserto foram as melhores que conheci na vida, declarou. Não se sentia tão só entre elas. Não sabia o que seria feito de sua vida. O informe terminou aí.

- A esperança de que Francisco Orange volte um dia para casa com seu solitário balão vai se dissipando com o passar dos anos. Nunca mais tivemos notícia do nosso menino com asas.


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