segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O calepino de Dante

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Ponte de Rialto, Veneza.
 

O vento geme como um bicho malferido nas esquinas, sacode placas na rua, portas e janelas, enlouquece os ponteiros do relógio da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Um lento lamento emana do interior do sino da igreja da praça.

Um cenário de filme de assombração. Aqui acontecem coisas do outro mundo. Os fantasmas somos nós, habitantes dessas terras frias e invisíveis situadas nos Campos de Cima do Esquecimento.

Lá fora, a chuva molha a solidão da rua.  Somos peixes no aquário, nadando de um lado para outro dentro de casa, tentando enxergar, sentir alguma coisa nesse enorme vazio. Peixes à procura de qualquer coisa mais que silêncio e oblívio. Agora que o inverno chegou.

Vivemos nessas remotas e íngremes alturas, no sul do continente, entre inóspitas nuvens.

Este lugar é a última estação antes do fim do mundo.

Os poetas sabem bem o que é isto que eu digo, não falo coisas inaugurais (quem me dera). Digo o trivial da humana vida e não mais do que isso.

Nesse território pequenininho existem coisas de espantar.

Um dia, não me lembro quando se passou o caso, encontrei o calepino de Dante numa rua remota e esquecida de Veneza. Caminhava do meu jeito naquela cidade, olhando as coisas de perto por causa da visão (os óculos fundo de garrafa).

Naquela cidade veneziana tudo é insondável e úmido labirinto e eu, quase cego, gosto de me perder em labirintos.

As janelas das casas daquela fondamenta - rua na beira de um canal - onde cheguei não sei como, tinham flores e cordas com roupas secando, mas não havia ninguém morando nelas. Uma doideira. O vento percorria o canal assobiando uma canção terna e delicada, sem começo nem fim.

O calepino estava sobre a velha mesa de uma livraria abandonada. A livraria ficava mais ou menos perto da Ponte de Rialto, no Grande Canal. Entrei lá abrindo uma porta escura e pesada, muito difícil de abrir.

Sentei numa cadeira de couro marrom diante da mesa, ao lado um pequeno vitral amarelo que deixava penetrar um sopro de sol.

Abri o calepino, quase encostando os olhos nele. Na terceira página estava escrito: Dante Alighieri, 1319. Li sem fôlego as primeiras anotações do mestre florentino.

Só então percebi do que se tratava e do tesouro que tinha em mãos: eram esboços de poemas misturados a notas de diário, rascunhos de cartas e pequenos desenhos.

A música que o vento tocava lá fora, me dei conta, era a Valsa dos Ausentes, de Pixinguinha.

O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.

Antes de sair da estranha livraria, guardei o calepino de Dante no fundo do meu alforje. Desde aquele difícil evento nunca mais nos separamos. Nunca antes contei essa história. (Às vezes me pergunto se de fato aconteceu ou terá sido um sonho meu, aturdido por esses ventos do fim do mundo.)

O calepino de Dante é o consolo que trago. Quando o leio, como nessa hora longínqua, sentado na cadeira de palha da mesa da cozinha, tomando café preto com biscoitos de polvilho, esqueço tudo de ruim.
 
O medo de morrer não encontra lugar nessa hora solene.

Nem tudo são solitudes, então me dou conta. Passagens luminosas habitam o breu.

Tem orquídeas e magnólias povoando os jardins em junho. Os ramos brotam entre os secos galhos da memória.

É um tempo de busca-vida, esse.

Um texto, notícia do invisível.
 

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