sábado, 2 de fevereiro de 2013

Amor

Jorge Adelar Finatto


 
Amor, filme do diretor e roteirista austríaco Michael Haneke, coloca em discussão os limites de alguém que se torna cuidador de uma pessoa inválida. E o próprio sentido de viver daquele que é cuidado em condições de invalidez. Com excelentes desempenhos de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, a obra é uma das candidatas ao Oscar de melhor filme deste ano. As premiações serão conhecidas em 24 de fevereiro próximo e adianto que Amor já tem o meu voto.
 
Saí do cinema com a sensação de ter sido atropelado por um trem. Chocado por ver até onde pode chegar o desespero das pessoas diante de uma situação em que a doença muda completamente a vida para pior. O nosso despreparo em lidar com a dor, o sofrimento e a iminência da morte é enorme.

No caso do filme, um casal de professores de música, ambos aposentados, vê-se diante da doença da mulher. De repente, Anne sofre um derrame, um lado do corpo fica paralisado. A paralisia é progressiva, chegando ao ponto de não poder mais fazer nada por si, passando a depender em tudo do marido Georges.

O casal, na faixa dos 80 anos, foi companheiro por décadas, partilharam a vida, a profissão e a família (tem uma filha casada e netos). Amor propõe o problema de como enfrentar a doença de uma pessoa querida. Georges recusa-se a internar Anne, passa a assisti-la integralmente, com o auxílio eventual de uma enfermeira (conto só o início da história e paro por aqui).

O grande mérito do filme, a meu ver, é trazer à reflexão as diferentes maneiras de encarar esta situação.
 
Os avanços da medicina fazem com que se viva mais hoje. Algumas doenças não matam como antes, a vida é prolongada. Às vezes a pessoa sobrevive com prejuízos da saúde mental (sai do ar ou passa por períodos de ausência) e física, necessitando de atenção permanente. O que fazer?
 
Alguns optam por "terceirizar" os cuidados, pagando uma clínica ou hospital. Para quem tem dinheiro e não quer "se incomodar" é o mais cômodo, sem dúvida. Paga-se e está tudo resolvido. Será?

Anne fez o marido prometer que não iria colocá-la no hospital e ele atendeu. A partir daí entram em cena questões éticas e práticas.

O fato é que, se hoje vivemos mais do que antes, precisamos estar preparados para cuidar uns dos outros em caso de doença. Mas em geral ninguém está.

A sociedade na qual vivemos, embalada pela publicidade, funda-se no ideal do consumo sem limites e da felicidade eterna. As aparências valem mais do que tudo (vide a maior parte do que se publica no facebook, as caras e bocas das fotografias, etc.), acredita-se ou finge-se acreditar que viver passa sempre longe da dor.

A vida, nessa visão de pouca valorização do humano, deve ser só prazer, glamour, crescimento individual, conquistas, realizações, viagens, sexo, bem-estar total e constante. Não se vê o sacrifício em prol do outro como uma possibilidade. Todo limite ao prazer precisa ser afastado, qualquer sofrimento, escondido.
  
A tendência predominante diante do infortúnio é de querer terceirizar os cuidados com a doença. Mas até que ponto isso é eticamente aceitável? O amor, a ternura e o respeito acabam quando se apresenta o tempo mau?

Penso o seguinte, na busca de possíveis respostas.

Se eu amo fulana(o), se vivi com fulana(o) a maior parte da minha vida, se tive filhos com fulana(o), se viajei e fui feliz com ela(e), se juntos construímos uma história, uma família, um patrimônio, é razoável abandonar fulana(o) quando ela(e) adoece e não pode cuidar de si mesma(o)? E quando fulana(o) não me reconhece mais, porque a doença me apagou de sua mente? Fulana(o) não será mais fulana(o) por isso, devendo ser descartada(o) da minha vida?
 
Fulana(o) ainda é fulana(o), só que agora doente. A consciência diz que devo fazer tudo ao meu alcance para cuidá-la(o). É o mínimo ético no caso. Vai ser difícil, a vida vai ficar duríssima, a alegria vai diminuir muito, mas faz parte da nossa condição. Vou buscar ajuda, principalmente na família, para manter a pessoa em casa.
 
Um dia, talvez, eu serei o fulano e não gostaria de ser abandonado, "suicidado" ou simplesmente assassinado "por amor", tendo em vista as minhas notórias limitações. Porque enquanto houver um sopro de vida e consciência pretendo continuar vivo, tentando prosseguir.

Haverá situações em que alguém não poderá ser cuidador, por impossibilidade física, emocional ou material. Aí a solução será diferente, provavelmente com hospital ou clínica.
 
Falar é fácil, eu sei. Fazer é outra história. Não existem soluções prontas. Estou apenas pensando e sentindo alto com você, raro leitor.

Mas não me entra na cabeça saltar fora da carroça no momento em que o outro torna-se o doente ou o demente da relação. Sempre lembrando que posso vir a ser o outro do outro.

Viver e amar é mais que um anúncio de bebida, lingerie, automóvel ou férias numa praia paradisíaca. E mais belo também, apesar de tudo.

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A fita branca, outro filme de M. Haneke, trata das origens do nazismo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/05/as-origens-do-nazismo.html

Jean-Dominique Bauby:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/o-prisioneiro-do-escafandro-e-o-bosque.html 

2 comentários:

  1. Ainda ontem assisti novamente O Escafandro e a Borboleta, e refleti sobre como a vida pode ser fugaz e a imensa capacidade que possuímos de nos adaptar as adversidades que nos cruzam o caminho.
    Alguém que cede sua vida para cuidar de outra, é portador de grande humildade. Alguém que deixa o egoísmo de lado e, aos meus olhos, é digno de grande admiração.

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  2. Parabéns pela análise e pelas palavras.

    Um abraço.

    JAF

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