domingo, 20 de outubro de 2013

Biografias versus biografados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 

Trava-se acirrada discussão no Brasil sobre a publicação de biografias.

De um lado estão os que pretendem retirar do ordenamento jurídico os artigos 20 e 21 do Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002), que, na prática, condicionam a publicação de biografias à autorização dos biografados, se vivos, ou de seus herdeiros, se mortos.

O autor e a editora até podem publicar sem autorização, mas ficam sujeitos a processo judicial de proibição, indenização e recolhimento da obra, caso as pessoas mencionadas não concordem com a edição.

Em sentido contrário, sustenta-se a plena aplicação dos dois dispositivos legais, à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal, que tutela a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Entendem estes que a exigência de autorização deve permanecer. Postulam, alguns, a participação dos biografados nos lucros de suas biografias.
 
Entre os argumentos que li em favor da revogação da autorização, está o de que a exigência é verdadeira censura e afronta o direito constitucional da liberdade de expressão (art. 5º, IX, da Constituição Federal). Afirma-se que as normas em vigor não permitem a livre circulação da informação e constituem atraso em relação a países onde a autorização não é exigida, como nos Estados Unidos. Acrescenta-se que a limitação legal produz biografias chapa-branca, sujeitas à interferência de biografados e familiares.
 
Para engrossar o caldo, tramita no Congresso Nacional projeto para acabar com a autorização. E uma ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada no Supremo Tribunal Federal contra os artigos 20 e 21 do CC. Esta é, resumidamente, a controvérsia.

Entendo, inicialmente, que a liberdade de expressão não pertence somente às editoras e aos biógrafos, é um direito fundamental de todos os cidadãos, que não pode ser objeto de censura. Por outro lado, não pode ser vista como censura decisão judicial que, democraticamente, harmoniza princípios constitucionais de igual importância.

Há liberdade de expressão (e não censura) na manifestação dos que defendem a vida privada, a intimidade e a imagem, ainda que de figuras públicas.

Cada direito deve ser ponderado no âmbito do sistema jurídico como um todo, não isoladamente.
 
O que está posto em discussão, de forma equivocada a meu sentir, é que pessoas públicas não têm direito à intimidade e à vida privada, direitos protegidos constitucionalmente tanto quanto a liberdade de expressão. Como se, por exercerem ofício público (músicos, atletas, artistas, políticos, etc.), já não pudessem dispor da vida pessoal.

Não se deve confundir personalidade pública com direito de apropriação da vida alheia.

Pretender que, por ser persona pública, o indivíduo deva suportar que terceiro escreva sobre sua vida e comercialize a seu bel-prazer essa história configura, no mínimo, inaceitável invasão da vida do outro. Retirar do personagem a possibilidade de decidir contra isso é, na minha visão, uma violência.

A história de uma pessoa é seu maior patrimônio, a sua maior riqueza, e é o que deixa de mais importante como herança. Não parece justo nem razoável que alguém se aproprie desse patrimônio personalíssimo para divulgá-lo e comercializá-lo quando e como bem entender, enquanto ao biografado resta assistir a tudo calado, como se não fosse com ele.

Alguns argumentam que há interesse público na publicação de determinadas biografias. Na maioria dos casos, contudo, notadamente de biografados vivos e famosos, não é o interesse público que move o biógrafo, mas o interesse econômico. De resto, trata-se de erro grosseiro confundir interesse público (inexistente) com vontade de satisfazer a curiosidade pública, coisa bem diversa, movida esta pelo desejo pueril tão em moda de rastrear a privacidade e a intimidade alheias. 
  
Não há violação da liberdade de expressão nos artigos do Código Civil, mas sim a preservação do direito legítimo de todo indivíduo de dispor de sua história de vida, no qual está incluído aceitar ou não ser biografado. Está na esfera jurídica da pessoa decidir. Como negar isso a alguém? 
 
O que é público é o trabalho, a obra, a atividade profissional. Mas isto, de modo algum, significa que a pessoa não tenha mais direito a uma vida pessoal e de ser dono dela.
 
A liberdade de expressão, pedra fundamental no edifício do estado democrático de direito, não é, todavia, absoluta e encontra limites em outros direitos constitucionais.

O fato de personalidades como Michael Jackson terem por volta de 200 biografias não-autorizadas, por si só, não leva a concluir que o modelo americano possa ser transposto, sem ressalva, à realidade brasileira, tão diversa em múltiplos aspectos.

A vingar a tese da inconstitucionalidade ou da revogação dos artigos em questão, na prática se estará colocando a biografia de pessoas vivas em domínio público. Nunca será demais lembrar que a lei que protege os direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) ampara os direitos do autor por 70 anos após sua morte... Como aceitar que a vida do criador, sua principal obra, caia de imediato em domínio público?

Penso que a lei pode ser aperfeiçoada. O artigo 20 pode ser melhorado, mas seria um grave erro simplesmente retirá-lo do mundo jurídico.
 
Por exemplo, acredito que seria um avanço fixar-se um prazo para o exercício do direito por parte dos herdeiros. Também seria, neste momento, oportuno, tanto no STF como no Congresso Nacional, realizar audiências públicas sobre o assunto,  a fim de enriquecer as decisões que serão tomadas nos dois poderes.

Caso o STF decida pela liberação geral das biografias, temo que será muito difícil preservar a vida dos direitos fundamentais em questão.

Por fim, observo que não é a primeira vez e nem será a última que normas constitucionais entram em aparente conflito. É a análise percuciente do caso concreto que determinará qual direito deve ser aplicado para a realização do justo. Há inúmeras situações em que a liberdade de expressão prevalece sobre normas de mesma hierarquia. E há casos em que não prevalece, sendo que a própria Constituição Federal, no artigo 220, parágrafo 1º, acena com limites.

Viver em democracia significa, essencialmente, conhecer estes limites e saber que não existem direitos absolutos.

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1. O presente artigo foi reproduzido no blog Interesse Público, do jornalista Frederico Vasconcelos, da Folha de São Paulo. Trata-se de um espaço democrático e qualificado da imprensa brasileira:

http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2013/10/21/biografias-e-apropriacao-da-vida-alheia/ 

2.  A escritora Glória Perez divulgou o texto no seu twitter. Um abraço pra ela!
https://twitter.com/gloriafperez/status/397029073295126528

3. Atualizei parte do artigo em 29 de novembro de 2013.
 

2 comentários:

  1. Excelente o texto!

    Chamar de censura a possibilidade de alguém ser contrário à exposição de sua vida privada por terceiro, que visa a auferir lucros com tal publicação, tem a mesma consistência lógica do que afirmar que semáforos em uma grande cidade como São Paulo deveriam ser retirados, por inobservância à liberdade de locomoção, ao direito que todo cidadão tem de ir, vir e permanecer.

    Em geral, não se gosta quando o sinal fica vermelho, obrigando a frear o veículo – especialmente quando se está atrasado. Mas isso não quer dizer que a liberdade de locomoção esteja sendo desrespeitada; há milhares de outras pessoas na via pública, com tantos ou mais horários, obrigações e compromissos a cumprir.

    A ausência de limites tornaria a vida em sociedade insustentável.

    Da mesma forma, a liberdade de expressão encontra limites na dignidade da pessoa humana, que pode querer ver resguardada a sua intimidade, a sua vida privada – aliás, já bastante devassada pelo simples fato de serem pessoas públicas.

    Como o adolescente mimado que não quer limites, compreensível que algumas editoras e autores, de considerável poderio econômico, também não estejam satisfeitos com alguns artigos do Código Civil e da Constituição Federal, que teimam a proteger a dignidade humana sob todos os prismas, inclusive no que diz respeito à vida privada e à imagem.

    Por isso, simples é lançar mão do argumento “censura” contra qualquer limite que se coloque entre a sua vontade e a possibilidade de obtenção de vultosos lucros. O que, aliás, não constitui, em si, novidade, porquanto, no sistema capitalista, essa argumentação é comumente utilizada, sempre que agentes econômicos de poder deparam-se com limites que a ordem legal impõe.

    Mas a própria simplicidade trai e está demonstrar a inconsistência da argumentação. Falar-se em censura num Código Civil democraticamente debatido por anos a fio, e apenas recentemente aprovado? Censura na Constituição “Cidadã” – na feliz expressão utilizada por Ulysses Guimarães em referência à atual Constituição Federal, garantidora de muitos direitos tão caros aos cidadãos? Censura na decisão judicial tomada por um Poder Judiciário independente e autônomo, com os direitos ao contraditório e à ampla defesa rigorosamente observados?

    Na vida em sociedade, às vezes convém usar o freio, pois há limites que encontramos a nossa atuação em praticamente cada esquina. E isso pode parecer chato, principalmente quando estamos atrasados – ou quando há a possibilidade de obtenção de muito dinheiro em jogo. Mas a não utilização do sistema de frenagem nos levará, inevitavelmente, a colidir com direitos de quem vem na direção oposta, e a tantas consequências nocivas que daí poderão advir.

    De limites – e de semáforos – a vida em sociedade não pode prescindir!

    Abraço, Lorenzo!

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  2. Muito obrigado pela leitura, pela presença e pelo comentário.
    Um abraço.
    JF

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