Jorge Adelar Finatto
estação de trem no dia da chegada de M. Jardin. photo: j.finatto |
Du Bonheur, Monsieur Jardin du Bonheur. É natural de uma colônia do interior de Gramado. Vem de uma nobre linhagem de espantalhos da região do Valais, nos Alpes suíços. No Brasil, os Bonheur fixaram-se na Serra gaúcha no fim do século XIX.
Com uma surrada mala de couro na mão, caminhava com as finas pernas em arco e com os ombros levantando e baixando, alternadamente, feito gangorra. Assim que desceu do trem, foi em direção a Juan Niebla, o músico cego que tocava bandoneón na gare para alegrar os passageiros. Indagou se sabia onde podia encontrar trabalho, esclarecendo que era espantalho profissional. Niebla indicou a minha casa. Desde então ele vive aqui comigo.
Nunca precisei de um espantalho. Niebla me encaminhou Jardin para fazer troça comigo, e divertiu-se muito com a situação.
Percebi nos primeiros dias que Jardin jamais seria um espantalho convencional. É, na verdade, um subversivo do ofício. Não veio ao mundo para assustar aves em plantações e jardins, nem tampouco pessoas, estas por natureza tristes e sofridas.
Jardin é um espantalho vivo e alegre. Veio ao mundo para fazer graça às crianças e espantar a tristeza dos mais velhos.
Contemplativo, revela-se amigo do livre pensar e dos livros, que lê tanto de pé como sentado no jardim e no quintal, encostado na vetusta carreta coberta de vasos floridos.
É bom conversador e tem livre acesso à minha pequena biblioteca.
Gosta de chá de maçã com canela. Vem ao escritório três ou quatro vezes por semana para pôr a conversa em dia e beber seu chá. Costuma observar demoradamente o Vale do Olhar. É quando sinto certa nostalgia no claro azul daqueles olhos. Às vezes, na minha ausência, ele se recosta na poltrona de couro marrom perto da janela, cobre-se com a manta de lã e dorme feito um menino.
À noite, quando a solitude e o frio pedem lareira acesa e aconchego, vamos para a sala dos fundos, de onde se avista, muito longe, o Contraforte dos Capuchinhos. Dali se vêem as muitas faces das estrelas que rebrilham a anos-luz de distância.
É quando mais gosto de ouvir as histórias do meu amigo, que emigrou da mansidão da colônia para o meu singelo jardim e, sobretudo, para o meu coração.
É quando mais gosto de ouvir as histórias do meu amigo, que emigrou da mansidão da colônia para o meu singelo jardim e, sobretudo, para o meu coração.
Jardin é meu confidente e também o é dos pássaros. Leva a vida a folhear seus livros e fazer anotações debaixo do pinheiro-mor. De vez em quando, assume a missão de seus ancestrais. Vai para o meio do jardim, estende os braços horizontalmente e abre um largo sorriso.
Nesse momento recebe a visita de muitos pássaros que lhe pousam nos braços e no chapéu. Para atraí-los traz sempre nas mãos grãos de alpiste.
Nesse momento recebe a visita de muitos pássaros que lhe pousam nos braços e no chapéu. Para atraí-los traz sempre nas mãos grãos de alpiste.
A barba por fazer, as botas escuras, uma espiga de milho em cada bolso do casaco, a camisa quadriculada com retalhos coloridos e a gravata-borboleta azul dão-lhe um aspecto jovial. Uma capacidade de observação além do comum faz de Jardin um ser diferente.
Um dia comentei que sua aparência lembrava a figura de um poeta antigo ou talvez um filósofo.
A comparação trouxe-lhe certo encanto:
- Vivo longe das vaidades desse mundo, existo modestamente, em contato com a natureza, tagarelando com os pássaros que me visitam em busca dos farelos que trago sempre nos bolsos e nas mãos. Por isso amo a poesia.
Antes de sair do escritório, Jardin abriu a estante e pegou O Caminho do Campo *, obra do filósofo existencialista alemão Martin Heidegger (1889-1976), famoso habitante da Floresta Negra.
Leu estas linhas em voz alta:
“O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz. Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino.”
Acrescentou Monsieur Jardin:
- Essa é a parte boa do pensamento heideggeriano, em oposição à outra, sombria e inaceitável, que se envolveu com o nazismo, o que é simplesmente grotesco para um filósofo (e para qualquer ser humano dotado de um pouco de sensibilidade e inteligência), manchou-lhe a biografia. Triste.
O controvertido filósofo, digo eu, concordando com meu amigo, nunca veio a público dar explicações (que devia) e nem desculpou-se. Nunca pediu perdão. Silenciou. Isto é trágico para um pensador.
O controvertido filósofo, digo eu, concordando com meu amigo, nunca veio a público dar explicações (que devia) e nem desculpou-se. Nunca pediu perdão. Silenciou. Isto é trágico para um pensador.
Monsieur Jardin despediu-se, sumindo na escada, deixando no ar um aroma de ervas silvestres.
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* Sobre o problema do ser. O Caminho do Campo. Martin Heidegger. Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1969. Tradução de Ernildo Stein.
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