sexta-feira, 11 de abril de 2014

Heráclito e o espelho

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. vôo sobre o Guaíba


Heráclito de Éfeso (540 - 480 a.C) disse que ninguém entra ou se banha no mesmo rio duas vezes. Na aguda percepção de pensador que não só pensava como vivia o pensamento, referia-se ao fato de que tudo muda incessantemente, o homem, o rio e todas as coisas.
 
Para o filósofo, tudo está em movimento. O mundo é a unidade dos opostos. Dia e noite, sol e chuva, doença e saúde, agudos e graves, macho e fêmea, inverno e verão, guerra e paz, fazem parte de um todo.
 
Heráclito acredita, porém, que um pensamento sábio governa tudo. Há uma justiça no cosmos que orienta o destino dos seres e dirige a vida. Os eventos ocorrem na hora certa.
 
Nós não somos sempre os mesmos, mudamos, conforme o velho e bom filósofo. O nosso corpo muda constantemente através das células, o pensamento ganha altura por meio da contemplação, da meditação e da ação.

No que me concerne, diante das minhas notórias limitações, espero que as mudanças me levem a ter mais sabedoria e mais bondade (que a maldade está sempre de prontidão e agindo em toda parte).
 
O rio não é o mesmo. O tempo escorrendo, eterna mutação, areia descendo na ampulheta.

Alteridade sempiterna das águas, o vôo premonitório das aves.
 
Nada é o mesmo. Não cessamos de mudar. (Só na morte não há transformação.) O outro que vai ali sobre a antiga carcaça somos nós depois de um F5.
 
Às vezes, diante do espelho, pergunto quem é aquele que me observa do outro lado. Será mais feliz do que todos os que vieram antes dele? Estará mais só? Terá as mesmas dúvidas? Ainda quer mudar a vida, fazer coisas novas?

Ninguém se vê duas vezes do mesmo modo no espelho, caro Heráclito. É sempre outro que está lá.
 
Essa manhã, quando mirei o espelho, o estranho nem sequer me olhou nos olhos. Tomou café, escovou os dentes, fez a barba automaticamente, passou a mão nos cabelos, arrumou a gravata e foi por seus caminhos. Passou o dia distante de mim. Longe, longe. Um perfeito estranho mora no meu espelho.
 
Num momento em que ele se distraiu, olhei através da janela do gabinete e vi um pássaro atravessando o céu sobre as águas do Guaíba.

E vi também belas nuvens brancas cruzando o rio. À medida que passavam, sua forma, sua cor e seu interior foram mudando, até que veio a chuva. O outro sentiu desalento. Eu fiquei feliz, porque a chuva me dá felicidade.
 
É impossível deter esse rio, essas nuvens, esse pássaro, esse outro que me escapa no fundo do espelho e teima em me levar por caminhos onde não quero ir.

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Informações sobre Heráclito em Dicionário dos Filósofos. Denis Huisman. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2004.
Clique sobre a imagem e veja mais detalhes. Texto publicado em 7, fev, 2013.

2 comentários:

  1. Muito bom este teu Outro-pássaro, Finatto, que cruza o tempo e o Guaíba e nos revela teus avessos. Hoje ainda eu lia um cisco do Manoel de Barros que cai bem nessa hora e lugar: " A vida só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer, é só amarrar o tempo no poste. Eis a ciencia da poesia: amarrar o tempo no poste."
    Abraço, poeta!

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    1. Querida Graça.
      Eu tento amarrar o meu tempo no poste. Mas o danado anda solto no espaço qual balão em dia de vento!
      Me seguro como posso dentro do cesto e, se um dia cair, que caia pelo menos num campo florido cheio de gente fazendo piquenique.
      Um abraçaço.

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