sábado, 28 de fevereiro de 2015

Peixe vivo

Jorge Adelar Finatto

Guaíba e a cidade. photo: jfinatto
 

Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.

Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.

Esse tempo ficou adormecido como um pôr-do-sol no fundo do rio.

A ditadura civil-militar maltratava os corpos, o desejo, o pensamento. Era noite calada. Proibida a livre circulação da emoção, das idéias. A verdade manchada com tarjas pretas nas bocas e nos jornais.

Mas havia gente que não desistia.

Os pássaros resistiam na praça.

Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.

Eu trazia na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.

Existia um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros, uma saia azul. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz.

Habitavam um lugar claro na escuridão.

O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.

Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.

Tinha aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos, do medo.
 
Coração aberto, peixe vivo.

O azul e branco do céu desenhado nas águas e naqueles olhos.

Um peixe voava entre as nuvens.

Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na Ilha de Pedras Brancas enquanto a cidade dormia.

Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.

A luz amarela do sol escorria entre as folhas e os galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases resplandeciam nas flores dos jacarandás.

Havia uma promessa de primavera. Tinha menos de 20 anos.

De passo em passo o sentimento se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.

Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.

O coração voava colado à esperança.

Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte de mar, o líquido azul infinito.
 
O amor (palavra proibida) navegava ao largo da cidade, sobrevivia ao medo e à morte.

O tempo era noite calada.

Eu tinha menos de 20 anos.

A vida saltava feito peixe vivo.

A estrela brilhava em meu caminho.
 
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Publicado em 22 de dezembro, 2009.
 

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