Jorge Adelar Finatto
o crédito da foto será dado quando conhecido o seu autor |
De antigo senhor das horas, o meu velho relógio tornou-se vítima do tempo e hoje sofre com longos intervalos de ausência.
É um relógio que me acompanha desde o século passado. É um objeto austero e simples. Não existem outros como ele à venda. É um dos últimos exemplares vivos de sua geração, se não for o último.
Registrou com precisão a passagem do tempo durante muitos e muitos anos. Esse mesmo tempo agora volta-se contra ele.
O calendário numérico funciona às vezes, e o escrito perdeu-se na bruma das horas. Esquece em que dia da semana estamos, não sabe bem se é segunda, sábado ou domingo, não distingue passado e presente e o futuro simplesmente não existe.
A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória, de repente, na esquina de uma cidade estrangeira.
A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória, de repente, na esquina de uma cidade estrangeira.
Em suma, o relógio que sempre me guiou, na mata sombria dos dias, precisa agora ser guiado. Já não é mais quem era. Mas eu também não sou mais quem fui e nem por isso vou me atirar no lixo.
Não tenho coragem de separar-me dele. Jamais o faria e me recuso a falar sequer no assunto. Contudo, sem que ele soubesse, tive outros relógios, mais funcionais e modernos. Nenhum, porém, conseguiu substituí-lo no meu afeto.
Toda vez que abria a gaveta, encontrava-o calado, sem nada reclamar, olhando as paredes internas do cubículo de madeira. Ao perceber minha presença, olhava-me nos olhos como quem se coloca à disposição para o trabalho e a luta. Um companheiro valente e digno.
Resgatei-o do labirinto em que foi viver.
Resgatei-o do labirinto em que foi viver.
Se ele é hoje apenas a lembrança do relógio que foi um dia, por outro lado não posso negar-lhe reconhecimento pelos serviços prestados. Além disso, atravessamos momentos difíceis juntos, vivemos muitas situações complicadas e dolorosas nessa vida, coisas que atormentam o pensamento e queimam o coração. E, às vezes, fomos felizes também.
Carregar o tempo nas entranhas, sem medo, como ele sempre fez, segundo a segundo, ano após ano, de forma incansável, num giro interminável e monótono, é ofício dos piores.
Mandei-o à oficina algumas vezes, mas não resolveu o problema. Decidi poupá-lo das internações inúteis no hospital dos relógios, pois observei que esse tipo de ambiente o magoa, pelo ar de tristeza com que retorna a casa.
Não sou mais escravo do tempo. Eu faço o que quero do meu tempo. (Por favor, raro leitor, não se iluda: essa disponibilidade é tão sedutora quanto terrível.)
Trago o velho relógio no pulso outra vez. Faço-lhe ajustes manuais com esmero e delicadeza. Quando é necessário, em razão de compromissos e viagens longas, levo um outro, no bolso ou na mala, sem que ele perceba. E assim tocamos a nossa vida.
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Texto revisto, publicado antes em 21 de abril, 2013.
Este texto traz o lúdico, o cômico e o nostálgico. Corro o risco de ser mal interpretada, então preciso dizer: É uma mistura deliciosa. E ainda o invejo, porque tem heranças/lembranças pra tocar. A mim, do passado, apenas algumas fotos compõem a história. Minha herança parece ter se escondido toda na memória. Uma das minhas buscas, hoje, é construir uma casinha para guardar este acervo. Mas é tão complicado lidar com pedreiros e carpinteiros. E ainda tenho que admitir que o resultado desses desacertos, apenas traz à luz o que já existia. Uma loucura. Sempre falo demais. Um abraço.
ResponderExcluirMarina. Que bom que gostaste da história do meu velho relógio. No fundo, as boas lembranças são talvez a nossa maior riqueza. E as não tão boas o tempo, com seu tempero, ameniza. Construir uma casa é difícil, mas vale sempre a pena. Aproveita este momento. Um abraço.
ExcluirObrigada Jorge. Aproveitar o momento é um ótimo conselho. Felizmente me foi indicado um profissional que, mesmo com baixa escolaridade, é um engenheiro na prática. Tiro o chapéu pra ele, tenho aprendido muito. O complicado é que não tinha a menor ideia do que é uma construção, por mais singela que seja. Ainda pretendo escrever um blog sobre a minha saga. Abraço.
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