terça-feira, 31 de outubro de 2017

Drummond, afeto que não se apaga

Jorge Finatto
 
Drummond. autor: Stefan Rosenbauer. O Globo, 17/12/2016

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
Carlos Drummond de Andrade no poema O Sobrevivente.
 

O JOVEM LEITOR afeiçoou-se ao poeta. Compartilhou com ele, mais do que palavras, a viva vida que elas expressavam. E como diziam coisas as palavras do bardo itabirano!
 
Havia entre poeta e leitor uma secreta cumplicidade. Um andar juntos pelo mundo. Uma troca de confidências, alegrias, queixas, protestos, malquereres, desertos, amores e esperanças. O invisível amigo percorria com o jovem os duros caminhos do mundo.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) será sempre o lúcido, o lírico, justo enlace razão-emoção, construtor de versos indeléveis na língua universal da poesia. Enquanto houver livros e leitores, Carlos Drummond será sinônimo de altíssima poesia e claro pensamento.

O ser-no-mundo, às vezes cambaio, às vezes indescritivelmente só, mas sempre solidário em sua humana caminhada.

O poeta não se esquivava e respondia as cartas que lhe chegavam todos os dias. Generoso, sabia colocar-se, não acima, mas ao lado do leitor que o procurava ávido por um contato, mínimo que fosse. Respondia com incomum e delicada atenção as missivas.

Quando escrevia na resposta o nome do jovem missivista, manuscrito com tinta azul na folha branca, retirava-o do anonimato, reconhecia-lhe a existência, tratava-o como um semelhante. Sábio e sensível ao outro, ele sabia que o poema só existe quando desvelado aos olhos do cúmplice leitor. As duas cartas que dele recebi são, para mim, verdadeiras relíquias literárias e sentimentais emolduradas na parede do escritório.

Drummond fez um imenso bem à minha alma, aos meus jovens dias e aos dias que vieram depois. Neste 31 de outubro, em que se comemoram seus 115 anos de vida (vida estendida no testamento da palavra), renovo a emoção de abraçá-lo com o coração. Invisível afeto que o tempo não apaga.

"No mar estava escrita uma cidade". verso do poeta na escultura da Av. Atlântica, Rio de Janeiro
 

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Sumiço

Jorge Finatto
 
nuvens: photo: jfinatto
 

NÃO SEI COMO nem por que a janela onde apareciam os amigos do blog (seguidores) desapareceu da página. Não me tomem por ingrato, o sumiço aconteceu simplesmente e fiquei órfão daqueles raros leitores.  
 
Assim como a janela fechou-se sem mais aquela, espero que volte a abrir e que volte em breve. Não como aqueles maridos que um dia saem de casa dizendo que vão comprar cigarro no boteco da esquina e retornam ao lar 25 anos depois como se fosse ontem. Aí não dá. Se alguém tiver ideia do que fazer, mande um e-mail ou comentário.*

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* Em 7 de novembro (anteontem) a janela voltou.
 

sábado, 28 de outubro de 2017

Un amore

Jorge Finatto

photo: jfinatto
           
             La speranza di pure rivederti                             
             m'abbandonava.                                                          
                                    Eugenio Montale


No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste

 ________

Poema do livro O Fazedor de Auroras, JFinatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Tradução livre do verso de Montale: A esperança de ver você de novo me abandonava.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Elegia 1975

Jorge Finatto

photo: j.finatto
 

O VENTO não traz
notícias de longe

todos foram dormir
depois do vinho
 
só nós permanecemos

incomunicáveis
debaixo das estrelas
e do frio

um que outro fantasma passa
fugitivo na calçada
não perguntamos pela vida
passada ou futura

habitamos cada momento
com olhos de prisioneiros violentados

escutamos o silêncio que vem do rio


a fome imensa de liberdade
que nos anima e nos faz fortes
na tempestade que nos enlaça
nos joga contra a parede

nosso rosto parece
ao de toda gente
mas trazemos
segredos inviolados
noites de lobos feridos

olhamos a cidade morta
nenhum anjo nos acalanta


estamos vivos
e nunca doeu tanto

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Do livro Claridade, coedição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
 

domingo, 22 de outubro de 2017

Da minha janela

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

CADA UM VÊ o mundo da sua janela. A mirada particular de cada pessoa. O jeito de enxergar as coisas.
 
Eu, por exemplo, gosto demais de uma taça de café com leite e pão com manteiga. E me encanta andar na rua quando chove.

Infelizmente, já não tenho idade para subir e caminhar sobre telhados. Nem vou sair voando pendurado num guarda-chuva pelas ruas desertas de Passo dos Ausentes. E morro de saudades dos doces que minha avó fazia nos dias de frio.

Está chovendo e gelado aqui na montanha, apesar da primavera. Gosto de dias assim.
 
Agora, não tenho mais quem faça doces. Mas as tardes de chuva continuam cheirando a arroz doce, canela e casquinha de laranja dentro de mim.
 
A memória é uma biblioteca onde se guardam as quinquilharias do tempo. Às vezes, me refugio nela e me ponho a perambular nessas cálidas páginas do passado.

Sim, raro leitor, é bom parar um pouco, olhar e pensar na vida. Abrir a janela e sentir como um menino. Mas nunca se trancar no casarão desabitado do passado. 
 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Pequenos mistérios

Jorge Finatto

Entre pétalas, texto de Rainer Maria Rilke* photo: jfinatto
 

COSTUMO PÔR PÉTALAS entre páginas de livros e cadernos de anotações. Acho bonito abrir tempos depois e lá encontrá-las com suas cores e nervuras à flor da pele. Elas parecem carregar a memória de um tempo, de um jardim, de uma casa, de uma sensibilidade.
 
Em álbuns de fotografia também fica delicado. Era comum naqueles álbuns de recordações das moças de antigamente. Recolho as pétalas caídas das roseiras aqui de casa. E folhas do outono também.
 
Os livros, fisicamente, pertencem ao mundo vegetal na origem. Com o conteúdo das palavras transformam-se em objetos espirituais. 
 
O mundo está cheio de mistérios. Será que ainda se usam folhas e pétalas entre páginas? Será que alguém ainda cultiva roseiras no quintal? Será que livros têm lugar nas casas? Será que ainda existem moças sonhadoras e álbuns de recordações?

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*Cartas do poeta sobre a vida. Rainer Maria Rilke. Organização de Ulrich Baer. Tradução de Milton Camargo Mota. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2007.
 
O epitáfio de Rilke:
https://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/search?q=O+epit%C3%A1fio+de+Rilke
 

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Um certo Terêncio Horto

Jorge Finatto

O escritor Terêncio Horto.* Autor: André Dahmer


O ESCRITOR DESCONHECIDO, frustrado, amargurado e massacrado pela indiferença em torno de seu trabalho certamente encontrará um aliado na figura incansável e batalhadora de Terêncio Horto. Ele é a prova viva de que um autor não deve desistir jamais da luta diante da folha em branco e do pouco caso de editores e leitores.
 
Nós, esforçadas criaturas que escrevem em solitários cubículos, formamos uma invisível e numerosa família. Com poucas exceções, vivemos confinados na caverna do anonimato. Mas somos teimosos, nada de desespero. Pelejamos mesmo nas piores condições. A dura lida nos constrói.

Olhemos o exemplo do irmão Terêncio. Lá na sua clausura, qual isolado monge sentado diante da velha máquina de datilografia, ele não se entrega ao fracasso; luta de sol a sol, nuvem a nuvem, quadrinho após quadrinho, para dar ao mundo os frutos suculentos do duro ofício.

O Senhor Horto e seu amigo imaginário. Autor: André Dahmer
 
Terêncio Horto é desses assinalados pelas musas e pela tragédia de escolher a escrita num ambiente grosseiro e de poucas luzes como o nosso. Alcançou algum reconhecimento, mas não perdeu a rebeldia. Faz parte de uma geração de escritores em vias de extinção. A esmagadora maioria passou a vida sem ser notada pelos leitores, pela crítica, pela mídia e pelos vizinhos dos prédios onde moram. Nunca receberão jabutis, quatis, sagüis, sambaquis e outros importantes galardões literários nacionais. Entanto, lutam a eterna luta das páginas fadadas ao fundo sombrio de injustas gavetas. 
 
Não apenas escreve bem o Senhor Horto como possui notável poder de observação. A sua visão de mundo está impregnada do caos da vida com seus intervalos (raros) de poesia e humanismo. Os temas são os mais diversos, desde remotas (e dolorosas) memórias de infância até intrincadas questões de fundo filosófico e outras, não menos tormentosas, inerentes às relações humanas. Nada escapa de sua pluma corajosa e vertical: internet, brigas de família, humilhações, desilusões, sexo, cultura, cinismo, encontros marcantes e alguns nem tanto, amizade, amor, cumplicidade, arte, literatura.

O Senhor Horto. Autor: André Dahmer
 
O Senhor Horto não poupa a si nem ao restante da humanidade de sua ironia e de seu humor corrosivo. Porém, sem perder de vista certa dose de ternura e empatia diante da tragicomédia da existência.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
 
Li com prazer e sentimento de vingança este Vida e Obra de Terêncio Horto, e me reconheci em muitas de suas páginas. O livro já faz parte do meu manual de sobrevivência na selva literária. De forma direta injeta ar fresco e claridade no ambiente de boçalidade do mundo das letras e das artes, além de aliviar a barra pesadíssima do cotidiano. Só resta agradecer ao quadrinista e escritor André Dahmer por nos ter revelado esse grande autor e pensador brasileiro. Com especial destaque, também, para as ótimas ilustrações.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
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*Vida e obra de Terêncio Horto. André Dahmer. Ilustrações do autor. Editora Schwarcz S.A., São Paulo, 2014.
 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Numa exposição de orquídeas

Jorge Finatto

orquídeas no Shopping Bourbon Country, P. Alegre, set. 2017. photo: jfinatto

 
QUANDO ALGUÉM CANSADO e triste diz que o mundo está no fim, eu acho que sim. Está difícil habitar o planeta e não sentir que algo terrível se aproxima e ganha forma a cada dia. Ninguém agüenta mais o inferno vigente. O sentido humano é exterminado a cada momento.
 
O Brasil é a clara evidência de que não há caminhos, só suspiros. 

idem

A esperança de que algo virá, algo violento que dará um basta à maldade que hoje governa a Terra em todos os quadrantes, é o que nos anima. O livro bíblico do Apocalipse não fala que o atual estado de coisas será abençoado, mas destruído. Essa transformação, nunca antes vista, virá de Deus.
 
E aqueles que agora se vangloriam e lambuzam na vaidade, no poder e na riqueza imunda serão calcinados e varridos como poeira. Um novo mundo nascerá para as pessoas que façam por merecer, está escrito. Não sei se terei uma chance no novo sistema. Talvez sim, talvez não, quem sabe? Mas aguardo com ansiedade a nova ordem. Difícil é esperar.
 
idem
 
Enquanto isso, caminho na exposição de orquídeas. Um prelúdio, assim espero, da vita nuova que será, expulsando todo sofrimento e dando uma real oportunidade à vida. Para todos.
 
idem
 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O amor é o melhor remédio

Jorge Finatto

Imagem mais antiga (séc. IV) do Apóstolo Paulo, descoberta em Roma,
segundo o Vaticano
 
 
Se eu falar em línguas de homens e de anjos, mas não tiver amor, sou um gongo que ressoa ou um címbalo que retine. E se eu tiver o dom de profecia e entender todos os segredos sagrados e todo o conhecimento, e se eu tiver toda a fé, a ponto de mover montanhas, mas não tiver amor, nada sou. E se eu der todos os meus bens para alimentar outros, e se eu entregar o meu corpo para me gabar, mas não tiver amor, de nada me adianta.

Paulo, A Primeira Carta aos Coríntios, 1 Coríntios 13:3, Bíblia* 
 

O MELHOR REMÉDIO para os sofrimentos são os bons sentimentos que carregamos na alma. As boas recordações e os afetos nos valem nos dias difíceis. Nenhuma arma é tão poderosa quanto se sentir amado e amar.
 
Saber que somos amados, que para alguém nossa existência é importante, abre uma manhã de sol na escuridão.
 
A casa do abraço. Esse reino secreto nos fortalece no infortúnio e no abandono. Amor que justifica nossa existência.

Amor pela tribo toda, amor estendido, que possibilita a vida em sociedade. É óbvio como um elefante no meio da sala. Mas a gente custa a enxergar.
 
Ninguém falou tão bem sobre essa realidade como Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios. Maravilha em poucas linhas.

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*Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.