quarta-feira, 31 de julho de 2019

O rinoceronte branco

Jorge Finatto
 
Crédito será dado tão logo identificado o autor. fonte: internet.
 

1. ESCREVER é o oficio mais solitário do mundo. Escritores são seres isolados. Vivem longe dos homens. Como solitários viajantes do universo que nunca mais voltarão à Terra, precisam escrever para não esquecer.
 
2. Tive uma namorada, na adolescência, que reclamava porque eu não fazia sexo com ela. Dizia que eu era paternalista. Mas eu achava  tão bom ficar conversando e olhando pra ela que nem precisava sexo. Era talvez um modo diferente de transar. Mas ela não entendeu assim. Não demorou muito, terminou comigo, claro. E eu fiquei sem aquele sexo gostoso.
 
3. Observei e fotografei muitos seres e lugares. Posso dizer que a coisa mais linda que vi nessa vida foi o rinoceronte branco.

E a mais impressionante: o silêncio de Deus.
 
4. Já morri e ressuscitei várias vezes. Espero continuar assim: morrendo de vez em quando; ressuscitando sempre.
 
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O rinoceronte branco está quase extinto por caça humana.
 

domingo, 28 de julho de 2019

Iniciação à obra de José Gurvich

Jorge Finatto
Texto e photos
 
Reprodução do ateliê de José Gurvich. Museu J. Gurvich. Montevideo.
photo: jfinatto
 
O Museu Gurvich, em Montevideo, é um belo espaço na Peatonal Sarandí. Ocupando um antigo edifício restaurado, apresenta a obra de José Gurvich (1927-1974), o notável artista uruguaio de origem judaica. Nascido na Lituânia,  aos cinco anos foi com a família para o Uruguai, fugindo da vida difícil e da perseguição aos judeus. Na nova pátria a família humilde busca adaptação, o que não demora a acontecer. Na escola primária, o nome original do menino - Zusmanas  Gurvicius - é alterado para José Gurvich. Ele começa a desenhar muito cedo.
 
Em 1942 ingressa na Escola Nacional de Belas Artes e, em 1944, passa a frequentar o ateliê do pintor e mestre Joaquín Torres-García, que o influencia e inspira. Participa de várias exposições coletivas do grupo do ateliê, no qual depois leciona. Entre 1954 e 1956 viaja para a Europa e Israel. Visita museus, estuda e pinta. Primeira exposição na Europa, em Roma, na Galeria San Marco.
 
Em Israel vive e trabalha como pastor no Kibutz Ramot Menashé, dedicando-se também à sua obra plástica. Expõe na Galeria Katz em Tel Aviv. Casa-se em 1960 com Julia Añorga ("Totó"), nascendo da união, em 1963, o único filho, Martín José. Em 1967 expõe em Montevideo, ganhando reconhecimento como importante artista nacional. Radica-se em Nova York em 1970 e desenvolve intensa atividade. Morre aos 47 anos, de ataque cardíaco, em 1974.
 
Vale a pena embarcar num avião no Brasil e ir a Montevideo só para conhecer o Museu Gurvich. Estive lá por ocasião da inauguração em novembro de 2015. Daquela vez, com o ambiente movimentado e ainda se ajeitando, não tive uma idéia clara do trabalho. Agora, em visita mais tranqüila e demorada, conheci melhor.

José Gurvich é um criador de mundos como todo grande artista. Alguém que surpreende com sua capacidade de invenção e de compor narrativas pictóricas e esculturais. Sua obra tem grande poder de comunicação. Emoção e técnica andam de mãos dadas. Ele alcançou um requinte e uma simplicidade que são fruto de muito estudo e trabalho.

Duas séries, entre outras, servem para ilustrar o tamanho deste artista: a das narrativas bíblicas e experiência judaica, incluindo os terríveis pogrom (expulsão dos judeus de seus lares e países na Europa). E as pinturas que produziu enquanto viveu no bairro Cerro, em Montevideo, retratando seus personagens, suas vidas simples e sua afetividade.
 
Não sou crítico de arte, digo o que sinto diante do que vejo. E José Gurvich me emociona. Tem originalidade e vigor. Fiz algumas fotos dos quadros e esculturas. Um dia para visitar o museu é pouco. Pretendo retornar e rever o universo do artista.

Ganharíamos muito se uma exposição de Gurvich viesse ao Brasil.
 
photo com reflexo.
 
 
O abraço. Cerâmica, c. 1960.
 
detalhe do quadro Pogrom, 1969.
 
Pareja (casal). Óleo sobre gesso e madeira. 1965

A anunciação de Sara. têmpera sobre papel. 1969.

Museo Gurvich.
 

sábado, 27 de julho de 2019

Um futuro talvez

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
O QUE EU penso da situação do Brasil? Considero uma das piores que já testemunhei. Não vejo trabalho suficiente neste governo nem projetos capazes de construir um país mais justo e humano. Não há sequer uma retórica razoável por parte de quem dirige a nação. Fala-se muito, e mal, o tempo todo. E pensa-se pouco.

O governo da hora, além de não traçar um caminho claro para tirar o país do abismo, mostra-se incapaz de acender a esperança da população. Sinto-me profundamente frustrado com o rumo das coisas. Como milhões de brasileiros desempregados, desalentados e deprimidos, que esperavam algo melhor. 
 
Não me coloco entre os que defendem o atual governo (como poderia?) nem entre os que o atacam ferozmente como se fosse a quintessência do mal. Por quê? Porque ele é a óbvia conseqüência de desgovernos anteriores. Os últimos governos prepararam o terreno para a terrível realidade econômica e social que vemos hoje.

A discussão sectária que se trava não faz nenhum sentido. Não existem angelitos nem de um lado nem de outro. Enquanto uns e outros se digladiam, o Brasil afunda e o povo sofre. Precisamos avançar.
 
Impressionante a força do obscurantismo entre nós. Mas eu acredito no poder dos bons exemplos e dos bons gestos. Nos indivíduos pensantes, sensíveis e solidários que são agentes de transformações humanizadoras à margem da política tradicional. Juntos podem alguma coisa. Talvez com eles seja possível um futuro. 
 

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Dançarino cubano em tarde lilás

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
BAILARINO CUBANO desliza passos voláteis na Peatonal Sarandi ao som de rumbas, merengues e salsas. O pequeno aparelho de cd encostado na parede, o cesto colocado em frente para recolher as doações dos passantes. A tarde é fria, o céu é lilás (nunca vi um céu assim antes).
 
O dançarino tem uma graça natural e parece não tocar o chão com seus pés mágicos. O corpo leve evolui em trejeitos e meneios encantadores. A ginga e a alegria dos movimentos mostram que é possível levitar acima da dureza da vida e da tristeza.
 
É bom caminhar sem rumo por essas ruas de inverno cobertas de plátanos em Montevideo. Esta cidade onde a vida dança e acontece longe dos shoppings.

Ciudad Vieja. foto: jfinatto
  

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Calles de Montevideo

Jorge Finatto
Texto e fotos

Mirada de Eduardo Galeano. Peatonal Sarandi. photo: jfinatto
 
Estávamos no tradicional Café Facal, na Av. 18 de Julho, tarde de domingo. Quando nos levantamos para ir embora, uma senhora entrada em anos (como se dizia antigamente) disse:
 
- Que pasen bien en Uruguay!
 
O bem que faz ouvir um augúrio assim de uma pessoa estranha, mas que podia ser nossa mãe! A fraternidade dessas palavras sensibiliza o coração do estrangeiro.
 
Os idosos andam em toda parte, de dia e à noite. São respeitados e acolhidos. É comum vê-los sozinhos ou acompanhados, na rua, nos ônibus, cafés, etc. Não têm medo.
 
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Li que o Uruguai está com um problema: a baixa natalidade. A população de pessoas velhas é grande. Daí a preocupação de um psiquiatra do Ministério da Saúde local com relação à legalização da maconha. Entende que devia ser proibido o consumo da droga para adolescentes, legalizando só a partir dos 21 anos pelo menos, e não 18 como prevê a lei. Segundo diz, a maconha influi negativamente no aprendizado, dificultando a apreensão de conteúdos. Por isso, sendo a juventude um capital humano escasso por aqui, corre-se o risco de prejudicá-lo, e ao futuro do país, com o uso da droga.
 
Lembrou, também, que a legalização é só para uruguaios e não se aplica aos chamados turistas canábicos.
 
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Cinemateca de Montevideo
 

En algún lugar de Montevideo...


Sigmund dá boas-vindas


Pocitos


Fuente de los amores...


Esse tronco de plátano foi desenhado por Van Gogh...
 

domingo, 21 de julho de 2019

Charla de Montevideo

Jorge Finatto
 
grafite. Montevideo. o nome do autor será registrado tão logo informado ao blog.
photo: jfinatto


MONTEVIDEO, a cidade do Conde de Lautréamont, do doce de leite, do churrasco, do indefectível mate, de Juan Carlos Onetti, Juan José Morosoli, Galeano e Benedetti, do Teatro Solís, do vinho Tannat, de Nacional e Peñarol, de Torres García. Da Rádio Babel, do Café Brasilero, da gentileza no trato cotidiano, de todas as crianças na escola.
 
Mas é, sobretudo para nós brasileiros, a cidade onde se pode caminhar pelas ruas sem o risco iminente do balaço na cabeça, da facada, do seqüestro, do assalto,  do atropelamento, do estupro. Enfim, um outro planeta pra quem vive no Brasil.

Ostentação, luxo? Nada. As pessoas vivem com a dignidade de quem tem o indispensável. O treinador da seleção nacional de futebol, Óscar Tabárez, 72 anos, é professor de escola pública. Ouvi-lo falar nas entrevistas é uma aula de educação e civilidade. Para ele, antes de ser jogador é preciso ser um bom ser humano. Só convoca atletas que tenham valores éticos. Tão diferente de outros treinadores... Por aí também se explica um país.

Um país como o Uruguai que tem qualidade de vida e cujo governo se preocupa com as pessoas. Não é um paraíso. Mas é um lugar muito mais humano do que outros bem perto daqui, e de longe também. O Uruguai é exceção num mundo profundamente conturbado. Não apenas por coisas como a legalização do aborto e do consumo (regulamentado) de maconha, mas pela implementação de direitos sociais. Conversando com gente na rua e nos táxis, sabe-se que o direito à saúde é uma realidade.

Alguém dirá que o fato de ter uma população pequena (3,5 milhões de habitantes, sendo 1,5 milhão em Montevideo) torna o bem-estar social uma obrigação fácil para o governo. Não é assim. Só a continuidade de gestões sérias e comprometidas com avanços alcança tais resultados. É bom ver isso de perto, confirmando a impressão que tive em outras viagens. A constatação de que um estado social e democrático é possível na América do Sul. O Uruguai é exemplo.

obra do grande artista plástico Torres García. Museu Torres García. Montevideo.
photo: j.finatto
  

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Os últimos mistérios do mundo II

Filipe Penaverde

photo: jorge finatto

 
Reescrituras

Se Jorge Luis Borges reescrevia seus textos (quase sempre o fazia), por que um pobre bardo de arrabalde, em que se misturam Dante e Cabrelino da Montanha, não poderia/deveria fazê-lo para o bem de seus valorosos leitores?

Extremos 

Se há, como dizem, um renascimento da extrema direita, aqui e alhures, é porque a extrema esquerda revelou-se, no poder, inoperante e obsequiosa com a corrupção. Não existem santos nessas igrejas. Só fiéis esperando uma salvação que nunca vem.

Como se muda o mundo, sem mudar antes o coração e as próprias atitudes?

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Um alquimista João

Jorge Finatto
 
João Gilberto. photo: Tuca Vieira, São Paulo 2006.
Wikipédia.
 
 
JOÃO GILBERTO foi um artista raro. A afirmação é clichê, mas um clichê incontornável. Uma notável exceção no mundo da música. Não só pelo talento como pelo comportamento discreto, avesso a badalações, holofotes, polêmicas. Recluso, concentrado no trabalho,  guardava com esmero sua vida privada, fugindo da celebridade.
 
Um criador que deu nova dimensão à música. Com ele o samba ganhou uma graça diferente, com doses inusitadas de silêncio. Saboreava cada palavra, cada acorde. Nada de gritaria. Um dos criadores da Bossa Nova, a música brasileira que o mundo mais conhece.
 
O canto suave, quase um sussurro. O toque personalíssimo ao violão. Tratava o instrumento com a dignidade de um concertista. Com João o violão brasileiro ganha uma nova sensibilidade, conquista outras esferas, à semelhança do que acontece com Villa-Lobos. Cada qual no seu jeito e no seu quadrado.
 
Causava estranhamento ver aquele homem sério, um senhor de terno e gravata, executando peças de música popular, soberbo maestro de si mesmo.
 
Não tolerava gente barulhenta e pouco educada na plateia. Passava pitos quando o ambiente não estava à altura de sua arte. Reclamava do som ruim, do ar-condicionado que desafina instrumentos. Temperamento difícil, obsessivo, nisso parecido com outros gênios.
 
Quando tocava e cantava, João era inventor de harmonias, desbravador de caminhos sonoros, de mundos. Um alquimista no universo da música. O mais rude metal se transforma em finíssimo ouro em sua voz, em suas mãos. 
 
Com os filhos adolescentes Clara e Lorenzo, fui assisti-lo no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, no ano 2001. Generoso, prolongou o show muito além do previsto, atendeu pedidos, conversou. Sentiu cheiro de fumaça de cigarro que vinha da parte anterior do palco, indignou-se. O fumante, que permaneceu invisível, tratou de apagar o cigarro e, com o ar limpo, João continuou.
 
Ele lembrou do Guaíba, do pôr do sol de Porto Alegre, da professora Boneca Regina que o tratou como um filhou nas várias vezes em que esteve em sua casa durante os encontros de arte que ela promovia com sua família e amigos. Era 1955, ele contava 24 anos e estava passando uma temporada em Porto Alegre. Morou oito meses no Hotel Majestic, na Rua da Praia, o mesmo onde viveu Mario Quintana, que ele admirava. O antigo hotel é hoje a Casa de Cultura Mario Quintana. 
 
João Gilberto construiu uma obra original, alcançando efeitos incríveis com mínimos recursos. Tal despojamento e excelência só os grandes conseguem. A aparente simplicidade de sua voz e seu violão esconde uma oficina incansável, rigorosa, persistente, como poucas vezes se viu.
 
Morreu João faz poucos dias, em 6 de julho, aos 88 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. Retirou-se do palco da vida. A luz do astro apagou-se. Mas há muito ele já era eterno em nossos corações. 

 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Os fundamentalistas

Jorge Finatto

Panos quentes no frio zero grau de Canela.
photo: jfinatto
 
 
TENHO MEDO de quem nunca duvida das próprias certezas. A rigidez de pensamento tem motivado a grande desolação em que vivemos. Questionar-se sobre o modo de ser e de fazer as coisas, repensar a vida, olhar o outro, é exercício de civilidade cada vez mais raro.

O fundamentalismo, seja laico, religioso ou político, não torna as pessoas mais felizes e nem melhores. Pelo contrário, espalha sofrimento, conflito, morte. O fundamentalista é dono de verdades absolutas, irrenunciáveis. Ele e o grupo a que pertence, incapazes de autocrítica, são pérolas que pairam impolutas sobre os pobres mortais.

No Brasil de hoje, à esquerda e à direita, a irracionalidade tomou conta.
 
Pôr-se no lugar das outras pessoas, ponderar suas razões e sentimentos, está fora de cogitação para o sectário. O que ele quer - ser iluminado que é - é mandar na vida alheia e no país, mostrar o caminho único da ventura e prosperidade.

O fundamentalismo passa longe da tolerância, essa atitude que, sendo menos que o respeito, é, todavia, um primeiro passo na aceitação do diferente.

Prefiro viver numa sociedade com muitas faces do que num hospício, que é para onde nos conduzem a inflexibilidade, o fanatismo, a força bruta, o aniquilamento da alteridade.

A ética da aproximação, como princípio fundamental da existência, é, ainda, a possível ponte para uma convivência razoavelmente civilizada e fraterna.
 

segunda-feira, 1 de julho de 2019

A travessia do cotidiano

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

 
A travessia do COTIDIANO é Odisséia.  As histórias das pessoas comuns, os verdadeiros heróis, quem as contará? Nenhum Homero jamais se debruçará sobre as pequenas memórias que constituem a existência do povo.
 
E, no entanto, não há tesouro mais bonito. São as histórias reais, mais belas e incríveis que as maiores ficções.
 
Cada um é Ulisses e Homero da própria trama. Uma pequena história numa constelação de narrativas.
 
O que resta, no fim de tudo, são histórias humanas sem fim que o vento carrega para as bibliotecas azuis das estrelas.