Jorge Finatto
photo: jfinatto |
VULTO NA PRAÇA. A luz amarela seria poética, não fosse o perigo dos assaltos. Um observador oculto espreita entre as buganvílias.
Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso em Porto Alegre. Dois bêbados urinam sob a pérgula.
Quem vem lá? Difícil saber na escuridão sem trégua. A noite de domingo até podia ser romântica. Mas há indivíduos dormindo nos bancos da Praça Maurício Cardoso em Porto Alegre. Dois bêbados urinam sob a pérgula.
A cidade não tem piedade dos seres delicados. Mas há que vencer o mal com o bem. É essa a hora do menestrel, do cavalo fiel, da capa, da espada e do alaúde.
Eis que emerge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo.
Eis que emerge da treva tremenda o Cavaleiro da Bandana Escarlate, montado no seu cavalo branco. Vem galopando desde muito longe, desde os Campos de Cima do Esquecimento, desde o fim do mundo.
Vem para a batalha final.
Atravessa a praça no garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro pela rua afora, gritando coisas impublicáveis.
Atravessa a praça no garboso corcel de arado, cuidando aqui e ali pra não amassar as flores. Um cara passa correndo atrás de outro pela rua afora, gritando coisas impublicáveis.
O cavaleiro veste a capa de seda preta. A máscara negra não permite lhe descubram o segredo. Traz o antiquíssimo alaúde a tiracolo.
O mimoso instrumento pertenceu a um seu trisavô que veio fugido da Itália. Aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e depois mourejou em negócios obscuros.
O cavaleiro tem genealogia, portanto. Mas o que passou, passou.
Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor, não obstante o desprezível (des) acordo ortográfico).
O nosso herói saca com grande donaire o lustroso instrumento.
Dedilha então os primeiros acordes. A melodia acorda a Musa que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.
O mimoso instrumento pertenceu a um seu trisavô que veio fugido da Itália. Aqui se estabeleceu no ramo dos embutidos e depois mourejou em negócios obscuros.
O cavaleiro tem genealogia, portanto. Mas o que passou, passou.
Neste momento ele cruza pro outro lado da rua e estaciona o alvo eqüino (com trema, por favor) debaixo do balcão da Meiga Donzela Dionéia (com acento, por favor, não obstante o desprezível (des) acordo ortográfico).
O nosso herói saca com grande donaire o lustroso instrumento.
Dedilha então os primeiros acordes. A melodia acorda a Musa que, entre estremunhada, descabelada e furiosa, vai até a janela do balcão saber do que se trata. Não acredita no que vê.
- O que quereis, ó, Cavaleiro do Alaúde em Riste? - pergunta com voz sinistra. - Acaso não percebeis que altas horas são? Não vos dais conta do ridículo? Estamos em 2020, please!
E prossegue a Incontornável camena:
- Deixai-me dormir, ó, Misterioso Mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de areia e vento, ó, Romântico Senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com rudes afagos, que é o que deveras mereceis.
E prossegue a Incontornável camena:
- Deixai-me dormir, ó, Misterioso Mascarado. Amanhã é dia de pegar no batente outra vez, voltar pra dureza inglória da vida. Retornai ao vosso castelo de areia e vento, ó, Romântico Senhor, poupai-me. Do contrário, obrigar-me-ei a chamar os homens da lei para vos untarem com rudes afagos, que é o que deveras mereceis.
O Cavaleiro da Bandana Escarlate silencia o mimoso instrumento. Baixa a cabeça. Parece não acreditar no que acaba de ouvir. Cavalgou durante dias por estradas cheias de perigos. Mais de uma vez viu-se forçado a jogar-se no matagal com o esbaforido e lácteo corcel por força de grosseiros caminhões.
Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca ao balcão. Depois ergue alto o alaúde na mão esquerda, empina o pangaré e grita:
- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha Indomada. A rejeição é uma refeição que se come fria. Mas jamais esfriará este esgualepado coração.
Ao proferir essas sonantes palavras, escorrega do gentil animal e estatela-se na gelada calçada, magoando a triste cabeça que a escarlate bandana - agora rasgada - antes cobria.
Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz como tanto fez o trema) e parte no trote.
Enquanto cruza de volta a Praça Maurício Cardoso, um insensível abre a janela num edifício próximo e manda:
- Vá tomar no seu caju (aqui é suprimida a expressão original pela fruta, a fim de manter o decoro mínimo).
Assim que, sem perder a altivez, o nosso Ilustre Menestrel Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.
Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça. Fim.
Para não comprometer ainda mais o idílio, decide retirar-se. Num gesto de rara nobreza, joga uma rosa branca ao balcão. Depois ergue alto o alaúde na mão esquerda, empina o pangaré e grita:
- Eu voltarei na primavera, ó, Estressada Dionéia, Musa Minha Indomada. A rejeição é uma refeição que se come fria. Mas jamais esfriará este esgualepado coração.
Ao proferir essas sonantes palavras, escorrega do gentil animal e estatela-se na gelada calçada, magoando a triste cabeça que a escarlate bandana - agora rasgada - antes cobria.
Aos poucos recompõe-se o Nobre Cavaleiro. Junta o alaúde, apruma-se sobre o valoroso eqüídeo (nessa altura, tanto faz como tanto fez o trema) e parte no trote.
Enquanto cruza de volta a Praça Maurício Cardoso, um insensível abre a janela num edifício próximo e manda:
- Vá tomar no seu caju (aqui é suprimida a expressão original pela fruta, a fim de manter o decoro mínimo).
Assim que, sem perder a altivez, o nosso Ilustre Menestrel Medieval desaparece na noite escura da grande cidade.
Um bêbado atira uma pedra e quebra a luminária da praça. Fim.
_______
Texto revisto, publicado antes no blog em 27 de abril, 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário