Jorge Finatto
Rodolfo Walsh. foto de arquivo |
Hoje, no trem, um homem disse: "Sofro muito. Queria ir pra cama dormir e só acordar daqui a um ano". Falava por ele, mas também por mim.
Rodolfo Walsh
Detesto ditaduras de esquerda e de direita. Na minha modesta opinião, de quem passou a juventude na ditadura civil-militar do Brasil, entre 1964 e 1985, e que conhece o lado obscuro de ditaduras como as da Argentina e Cuba, não existe a figura do bom ditador. A tragédia é inevitável em qualquer caso. Ditaduras convivem com violação de direitos humanos, cadáveres, humilhações, perseguições, instauram a paranoia geral, suprimem a vida, a alegria, a criatividade e a liberdade em nome de "um futuro melhor".
Nunca acreditei na violência como meio de resolução de conflitos, embora reconheça que, em casos extremos como o do nazismo, não há outra alternativa senão o recurso à guerra aberta para evitar a implantação do terror planetário. Barack Obama, Prêmio Nobel da Paz em 2009, tem razão a este respeito. A humanidade, contudo, ao que parece, superou aquela catástrofe (que jamais pode ser esquecida), podendo encaminhar a solução pacífica das crises.
O nosso país passa por um momento terrível do ponto de vista sanitário, indo além dos 30 mil mortos pela covid-19, e político mercê de uma crise que afronta o bom senso e a saúde mental dos cidadãos. Como a imensa maioria dos brasileiros, deploro a ideia de que tenhamos de viver uma outra ditadura.
Acredito que só o diálogo das pessoas de bem, isto é, que creem que somente o estado de direito democrático pode nos levar a uma vida saudável em sociedade, poderá nos tirar do impasse institucional.
Independente de partidos políticos, de crenças religiosas, de ideologias, de sectarismos de toda espécie, penso que é possível e urgente haver reunião em torno de um ideal de respeito à democracia e não-violência num momento como este.
Com a palavra o Congresso Nacional, o Judiciário, o Ministério Público, as demais autoridades constituídas, organizações civis e cidadãos que se opõem à volta do obscurantismo.
O jogo democrático, por mais frustrante, sofrido e asqueroso que, às vezes, possa parecer, é ainda melhor do que jogo nenhum.
Reproduzo o texto abaixo, publicado neste blog, em 10 de junho de 2017, na esperança de que não voltemos à escuridão.
Minha vocação despertou cedo: aos oito anos decidi ser aviador. Por uma dessas confusões, quem a realizou foi meu irmão. Acho que a partir de então fiquei sem vocação e tive muitos ofícios. O mais espetacular: limpador de janelas; o mais humilhante: lavador de pratos; o mais burguês: comerciante de antiguidades; o mais secreto: criptógrafo em Cuba.¹
Rodolfo Walsh
Eu tinha ouvido falar do escritor e jornalista argentino RODOLFO WALSH (1927 - 1977), mas nunca tinha lido nada dele. Nenhuma informação tinha de sua vida. Caminhando pela Avenida San Martín, na tarde gelada de Ushuaia, as montanhas nevadas da Cordilheira dos Andes debruçadas sobre a cidade, me vi diante de um retrato do autor pintado na parede da Rádio Nacional. A legenda diz que desapareceu em 25 de março de 1977. Isto é, um ano e um dia após o início da ditadura militar na Argentina (1976 - 1983).
Na livraria Boutique del Libro comprei alguns livros dele. Tomei conhecimento de que vivia na clandestinidade quando "foi desaparecido" e fazia parte do grupo Montoneros, de luta armada, atuando na área de comunicação. No ano anterior havia perdido a filha María Victoria, também integrante do Montoneros, em confronto com forças militares. Ela escolheu suicidar-se a entregar-se com vida aos militares.
Walsh (amigo de Gabriel García Márquez, que o admirava como escritor, e um dos criadores da agência de notícias cubana Prensa Latina) faz parte da terrível relação de desaparecidos durante a ditadura. Grupos de direitos humanos estimam em 30 mil pessoas. No entanto, dados levantados nos últimos anos apontam cerca de 9 mil vítimas, entre mortos e desaparecidos. No Brasil, este número é de 434 pessoas, segundo informe da Comissão da Verdade de 2014.²
A diferença, contudo, é que na Argentina alguns dos responsáveis pela ditadura foram julgados e condenados à pena de prisão perpétua, como o general Jorge Rafael Videla, que morreu preso em 2013. Um, dez, cem, vinte mil desaparecidos, é tudo uma tragédia. Não se trata apenas de um número frio, mas de pessoas.
photo: jfinatto, Ushuaia, maio 2017. |
No dia de seu assassinato, presumivelmente ocorrido em 25/3/77, por membros da repressão, andava na rua, em Buenos Aires, após encaminhar pelo correio cópias da Carta aberta de um escritor à junta militar,³ na qual fez vigorosa denúncia da ilegitimidade e truculência do regime militar, apontando violação de direitos humanos, métodos hediondos de tortura e extermínio, número de vítimas, além de graves prejuízos à sociedade.
Dirigiu o documento a órgãos da imprensa argentina e a correspondentes estrangeiros. A carta, datada de 24/3/1977, dia em que a ditadura completava um ano, foi seu último texto. Difundida no exterior, não logrou o mesmo nos órgãos de imprensa de seu país submetidos à censura e controle.
últimos dias do escritor (clicar). photo. jfinatto |
Do que tenho lido de Rodolfo Walsh, chama atenção a sua busca constante da verdade, a pesquisa das informações e o compromisso que se impôs de dar testemunho de seu tempo. É considerado o criador do gênero literário não-ficcional que trabalha com fatos reais; jornalismo com técnicas literárias. Literatura e realidade. Impressiona, ao lado da coragem, a qualidade de seus textos, sejam jornalísticos ou literários, ou ambos integrados.
Basta ler Operação Massacre,4 que conta uma história real, para ver o alto nível dessa prosa. No apêndice deste livro encontra-se a Carta aberta acima referida.
O contista, assim como o autor de não-ficção e o jornalista, é brilhante. A elevada qualidade de suas linhas engrandece a literatura da Argentina, colocando-o ao lado de nomes como Roberto Arlt, Cortázar, Borges, Sábato.
Biblioteca Nacional Mariano Moreno. photo: jfinatto |
Neste ano 40 do seu brutal desaparecimento, a Biblioteca Nacional da Argentina, em Buenos Aires, está promovendo a exposição literária Los oficios de la palabra. É uma boa oportunidade para conhecer um pouco de sua história e de sua obra. O texto de apresentação da mostra (clicar sobre ele) é do escritor Alberto Manguel, atual diretor da biblioteca.
Hoje no trem um homem disse: "Sofro muito. Queria ir pra cama dormir e só acordar daqui a um ano". Falava por ele, mas também por mim.5
Este início de contato com Rodolfo Walsh tem sido enriquecedor do ponto de vista humano e literário. E nos leva à perplexidade de constatar que, tanto tempo depois, não se tem nenhuma notícia sobre o paradeiro de seu corpo e sobre as circunstâncias em que seus algozes (quem foram, onde estão?) lhe deram sumiço. O mesmo trágico destino teve o poeta García Lorca, em Granada, cujo corpo, fuzilado em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, até hoje não foi encontrado. Um horror.
ambiente da exposição. photo: jfinatto |
apresentação da mostra Walsh por Alberto Manguel. photo: jfinatto |
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¹ Ese Hombre y otros papeles personales. Ediciones de La Flor. 3ª ed, pág. 13. Buenos Aires, 2012. Tradução livre do fragmento: Jorge Finatto.
² Argentina ainda discute quantas foram as vítimas (Folha de São Paulo):
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/02/1735938-argentina-ainda-discute-quantas-foram-as-vitimas-da-ultima-ditadura-militar.shtml
³ Carta aberta de um escritor à junta militar:
http://www.jus.gob.ar/media/2940367/carta_rw_espa_ol_web.pdf
4 Operação Massacre. Rodolfo Walsh. Tradução de Hugo Mader. Companhia das Letras. São Paulo, 2010.
5 Ese Hombre y otros papeles personales. Ediciones de La Flor. 3ª ed, pág. 266. Buenos Aires, 2012. Tradução livre do fragmento: Jorge Finatto. Palavras do escritor a propósito da morte da filha Vicki (María Victoria).
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