segunda-feira, 20 de setembro de 2021

A arte de ser juiz

 Jorge Finatto

photo: jfinatto, 20.set.2021


Faz hoje 30 anos que tomei posse como Juiz de Direito. Após rigoroso concurso público, restaram aprovados e tomaram posse naquele dia radioso15 juízes, entre mulheres e homens. Uma turma valorosa e profundamente dedicada ao serviço da sociedade. Foi um dos dias mais felizes da minha vida. A todos os Colegas o meu abraço.
Reproduzo 'A arte de ser juiz', texto que escrevi e publiquei há muitos anos, sem intenção professoral, que resume a minha visão do difícil e honroso ofício.


Ser um bom juiz resulta de um tipo de sabedoria que não se aprende somente em livros técnicos. Nem decorre de uma progressiva conquista de graus acadêmicos. É algo maior e mais profundo.

O juiz que fará bem a seus semelhantes e trabalhará pela dignidade da vida, ao contrário de complicar e piorar as coisas, será aquele capaz de ouvir e respeitar as pessoas nas suas intransferíveis circunstâncias.

A justiça começa nas relações mais simples do dia a dia, em casa, na rua, no ambiente de trabalho, em comportamentos éticos que são, na aparência, bastante prosaicos, mas que acabam construindo todo o resto.

Amar as pessoas e a justiça é a condição primeira para ser juiz.

Não se ingressa na magistratura pensando no status da profissão, no valor do subsídio, nas garantias que cercam o cargo - que visam a proteger a sociedade e não a pessoa do juiz. Esses atrativos são insuficientes para manter alguém que não é do ramo na função. Dedicação, capacidade de renúncia, entusiasmo, reflexão e estudo permanentes são algumas das exigências.

A magistratura é a típica atividade que se destina a mulheres e homens com vocação, que buscam no ideal de bem servir a sua realização.

Pelo menos três pilares são fundamentais na formação do juiz: ética, humanismo e técnica.

Quando é que alguém se torna juiz? Muitos acham que isso ocorre quando o candidato é aprovado no extenuante concurso público, é nomeado e toma posse no cargo. Mas não é elementar assim.

A pessoa torna-se magistrado muito tempo antes do concurso. O que realmente define quem se tornará juiz é a essência e a atitude de cada um diante da existência. 

A luta por uma vida mais justa e solidária está na alma do julgador. Existe uma imposição de ordem interna que o leva a decidir-se pela profissão, ainda que isto não esteja muito claro na adolescência e mesmo no início da vida adulta.

A gente se prepara para ser juiz uma vida inteira, pois todo dia é dia de viver e aprender.

Coisas como agressividade, excesso de vaidade, cinismo, indiferença e fanfarronice não combinam com a toga.

Um temperamento humilde, diferente de subserviente ou arrogante, disposto a respeitar, mais do que tolerar, as diferentes visões de mundo, é sempre muito importante. Ninguém é dono do conhecimento e da verdade.

Não existe modelo pronto de juiz. O magistrado terá de construir o seu. Por outro lado, não faltam exemplos de pessoas que dignificam o ofício.

Pensar de modo mais criativo e humanista o ingresso na magistratura, e a própria construção do Poder Judiciário brasileiro, é o desafio que temos em tempos tão difíceis.

A dura realidade exige magistrados mais participantes e comprometidos com o bem-estar da sociedade. Cada vez mais o Judiciário é chamado a decidir sobre situações que afetam a vida de todos. As dores e os dramas das pessoas chegam aos juízes a toda hora em todos os dias do ano.

A busca de uma existência mais feliz e harmônica é a razão de ser da atividade jurisdicional.

O que se pede ao juiz não é que seja um super-herói, mas que decida como um ser humano sensível, e saiba olhar com os olhos do coração, com a mesma empatia com que todos – juízes e não juízes - esperamos ser tratados nas horas difíceis.

Empatia, a sua dor no meu coração.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

O rio do tempo

 Jorge Finatto

Lua e estrela. photo: jfinatto. 9/9/21


O tempo, às vezes, aparece, em sonho (será, talvez, um pesadelo), como um rio que corre sem parar e nos leva de arrasto com ele até uma imensa cachoeira. Um dia caímos no desconhecido que chamamos morte. Desaparecemos no sumidouro. 

Carrego essa imagem recorrente que é uma metáfora do inevitável fim que nos persegue. A única hipótese de salvação é que Deus não nos esqueça e nos faça ressuscitar. Do contrário será a irremissível vitória do esquecimento sobre o milagre da vida.

sábado, 4 de setembro de 2021

Perdendo contato com a torre

 Jorge Finatto

Castelo de Gruyères, Suíça. jfinatto


Na quarta-feira saí para dar uma volta no bairro, em Porto Alegre, levando o Gambelo a passear. Na frente de um edifício, no gramado interno, reconheci um vizinho de muitos anos que ali estava com seu cachorrinho. Percebi que lembrou de mim, ainda que de um jeito meio vago. Aproximei-me para cumprimentá-lo. Não nos víamos há mais de três anos, desde que fui morar no interior. Perguntei-lhe como estava.

Ele respondeu que estava bem e quis saber meu nome. Estranhei mas respondi. Ele então falou que conhecia outro Finatto, seu vizinho, que morava ali perto. E era juiz. Indagou se eu não o conhecia. Respondi que não, mas que também morava no bairro, naquela rua, e tinha a mesma profissão. Pensei que ele ia se dar conta. Ele ficou surpreso...

Dei-me conta de que meu vizinho de mais de 20 anos não me reconhecia mais. Está com 80 anos e aparenta boa forma física. Engenheiro, construiu muitos prédios. Era capaz de recordar quem eu era, no passado, sabendo alguns detalhes da minha vida, mas não me reconhecia no presente. Voltei pra casa desalentado.

Comentei com um médico que disse tratar-se, possivelmente, de Alzheimer. A pessoa "perde contato com a torre", disse ele, tem falta de memória, fica desorientada, não reconhece pessoas, coisas que acontecem aos vivos, ninguém está livre, etc. 

Eu fiquei muito tocado com o episódio. É duro demais. Rezo pelo meu vizinho desejando que siga a vida. De qualquer forma, seja feliz com ou sem memória.