quarta-feira, 2 de junho de 2010

Páginas de velhas revistas

Jorge Adelar Finatto


Tenho uma pequena coleção de revistas que datam do início até a metade do século XX. Alguns dos exemplares já passaram bem dos cem anos de existência. Há títulos como Para Todos, Careta, Fon-Fon, Ilustração Brasileira, O Malho, Revista da Semana. Mais que simples revistas, são documentos de época. Nelas se pode encontrar muito dos costumes, do modo de ser e pensar da sociedade de então. Os conteúdos prestam-se a estudos em áreas como história, sociologia, propaganda, esportes, cultura, comunicação, política e outros.

A qualidade do material com que eram feitas é notável. As capas e páginas de miolo continuam em bom estado. As cores são vivas, parecendo que foram impressas na semana passada.

Tenho especial predileção pela Para Todos, dirigida pelo porto-alegrense Alvaro Moreyra a partir de 1918. Ele também dirigiu a Ilustração Brasileira. O escritor gaúcho apoiou e publicou muitos novos autores, como Carlos Drummond de Andrade (que reconheceu em Alvaro sua maior influência literária, nos anos de formação, entre os escritores brasileiros).
 
Para Todos é um primor gráfico, artístico e literário. As capas eram desenhadas pelo grande caricaturista e artista plástico J. Carlos, também diretor de Para Todos e parceiro de Alvaro durante muitos anos.
Alvaro Moreyra coloca na publicação seu grande talento de escritor e poeta. Era homem sensível, dotado de rica e variada cultura e, acima de tudo, um raro humanista. Para Todos foi um espaço democrático que buscava um enfoque contemporâneo da cultura e das ideias que surgiam a reboque das grandes transformações que o mundo experimentava. Admirado por escritores como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Manuel Bandeira e tantos outros, foi um intelectual exemplar na humildade, na solidariedade e no respeito às pessoas.


Na página de abertura que escrevia em Para Todos, vamos encontrar a mostra de seu texto belo e único. Como neste, publicado na edição de 05 de março de 1927 (mantenho a grafia):

Para que título?

Sempre que eu vou ao cáes despedir-me de alguma amiga ou de algum amigo em viagem para a Europa, outras pessoas que foram lá fazer a mesma coisa têm o costume de atirar palmadas amáveis nas minhas costas e dizer:
- Que vontade de ir também, não?
Eis ahi o que eu chamo um máo costume...


Era um cigarro lindo. Accendi-o. E 
como ia passando um cordão, puz
o cigarro no cinzeiro e fui ouvir a
cantiga que subira pela janella.
Quando voltei, o cigarro, sósinho,
tinha acabado. Restava um esque-
leto de cinza.
Tenho conhecido muita gente as-
sim.

Um autor, deante de uma mulher
que o admira, tem que ser sempre
um autor.
Mas, ás vezes, não sabe de que...

Adão. Que popularidade!...

Quando penso em mim e tiro cá
de dentro as memorias da minha
vida, todas ellas são bonecas e bo-
necos ... Nenhuma paysagem fi-
cou, de tantas por onde passei. A
natureza propriamente dita não me
interessa...

Em certos dias, ao folhear e ler essas revistas, nelas encontro o espírito e o encanto de um tempo que, perdido embora, continua vivo nas suas páginas.

_____

Fotos das capas das revistas: J. Finatto. A de Alvaro Moreyra foi feita a partir de fotografia do escritor publicada na Para Todos de 19 de março de 1927.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Outono, outonos

Jorge Adelar Finatto







































_______

Fotos: J. Finatto


segunda-feira, 31 de maio de 2010

O sentido do inefável

Jorge Adelar Finatto


Um pouco sol, um pouco nuvem. Tem dias assim. Intervalo entre sonho e realidade. Uma saudade remota e vaga acende dentro de mim. De que estarei me recordando? Não sei. Há algo que não se revela. Um mundo escondido. Um tempo de borboletas e flores na janela, numa cidade invisível. O sentimento do inefável anda sempre comigo. A melancolia é o sol quando cai atrás da montanha ou nuvem. Talvez venha de outra existência, antes da minha, a obscura lembrança que me acompanha. De um tempo não vivido. Essa memória sem face pode estar, quem sabe, no tempo futuro, nas coisas que estão por acontecer. Que venha, pois, esse mundo novo, com sua luz da manhã,  suas cálidas revelações, sua ventura.

_______

Foto: J.Finatto

domingo, 30 de maio de 2010

Da impossibilidade deste retrato (2)

José Saramago

Entretanto, o pintor vai pintando o retrato de Fernando Pessoa. Está no princípio, não se sabe ainda que rosto escolheu, o que se pode ver é uma levíssima pincelada de verde, se calhar vai sair daqui um cão dessa cor para pôr em conjunção com um jockey amarelo e um cavalo azul, salvo se o verde for apenas o resultado físico e químico de estar o jockey em cima do cavalo, como é sua profissão e gosto. Mas a grande dúvida do pintor não tem que ver com as cores que há-de empregar, essa dificuldade resolveram-na os impressionistas de uma vez para sempre, só os homens antigos, os de antes, não sabiam que em cada cor as cores estão todas: a grande dúvida do pintor é se há-de ter uma atitude reverente ou irreverente, se pintará esta virgem como S. Lucas pintou a outra, de joelhos, ou se tratará este homem como um triste coitado que realmente foi ridículo a todas as criadas de hotel e escreveu cartas de amor ridículas, e se, assim autorizado pelo próprio, poderá rir-se dele pintando-o. A pincelada verde, por enquanto, é somente a perna do jockey amarelo posta do lado de cá do cavalo azul. Enquanto o maestro não sacudir a batuta, a música não romperá lânguida e triste, nem o homem da loja começará a sorrir entre as memórias da infância do pintor. Há uma espécie de ambiguidade inocente nesta perna verde, capaz de se transformar em verde cão. O pintor deixa-se conduzir pela associação de ideias, para ele, perna e cão tornaram-se em meros heterónimos de verde: coisas bem mais inacreditáveis do que esta têm sido possíveis, não há que admirar. Ninguém sabe o que se passa na cabeça do pintor enquanto pinta. O retrato está feito, vai juntar-se às dez mil representações que o precederam. É uma genuflexão devota, é uma risada de troça, tanto faz, cada uma destas cores, cada um destes traços, sobrepondo-se uns aos outros, aproximam o momento da invisibilidade, aquele negro absoluto que não reflectirá nenhuma luz, sequer a luz fulgurante do sol, que faria então à breve cintilação de um olhar, em frente a apagar-se tão cedo. Entre a reverência e a irreverência, num ponto indeterminável, estará, talvez, o homem que Fernando Pessoa foi. Talvez, porque também isso não é certo. Albert Camus não pensou duas vezes quando escreveu: “Se alguém quiser que o reconheçam, basta que diga quem é”. No geral dos casos, o mais longe a que chega quem a tal aventura ouse propor-se é dizer que nome lhe puseram no registo civil.

Fernando Pessoa, provavelmente, nem tanto. Já não lhe bastava ser ao mesmo tempo Caeiro e Reis, cumulativamente Campos e Soares. Agora que já não é poeta, mas pintor, e vai fazer o seu auto-retrato, que rosto pintará, com que nome assinará o quadro, no canto esquerdo dele, ou direito, porque toda a pintura é espelho, de quê, de quem, para quê? O braço levanta-se, enfim, a mão segura uma pequena haste de madeira, de longe diríamos que é um pincel, mas há motivos para suspeitar: nele não se transporta uma cor verde, ou azul, ou amarela, nenhuma cor se vê, nenhuma tinta. Este é o negro absoluto com que Fernando Pessoa, por suas próprias mãos, se tornará invisível.

Mas os pintores vão continuar pintando.

_______

*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 23/abril/2009.
A grafia é a de Portugal.

sábado, 29 de maio de 2010

Da impossibilidade deste retrato (1)

José Saramago


Este texto foi prólogo do catálogo de uma exposição de retratos de Fernando Pessoa na Fundação Calouste Gulbenkian no princípio dos anos 80, creio que em 85. Por me parecer que não viria fazer má figura neste blogue, aqui o trago.

Que retrato de si mesmo pintaria Fernando Pessoa se, em vez de poeta, tivesse sido pintor, e de retratos? Colocado de frente para o espelho, ou de meio perfil, obliquando o olhar a três quartos, como quem, de si mesmo escondido, se espreita, que rosto escolheria e por quanto tempo? O seu, diferente segundo as idades, assemelhando a cada uma das fotografias que dele conhecemos, ou também o das imagens não fixadas, sucessivas entre o nascimento e a morte, todas as tardes, noites e manhãs, começando no Largo de S. Carlos e acabando no Hospital de S. Luís? O de um Álvaro de Campos, engenheiro naval formado em Glasgow? O de Alberto Caeiro, sem profissão nem educação, morto de tuberculose na flor da idade? O de Ricardo Reis, médico expatriado de quem se perdeu o rasto, apesar de algumas notícias recentes obviamente apócrifas? O de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na baixa lisboeta? Ou um outro qualquer, o Guedes, o Mora, aqueles tantas vezes invocados, inúmeros, certos, prováveis e possíveis? Representar-se-ia de chapéu na cabeça? De perna traçada? De cigarro apertado entre os dedos? De óculos? De gabardina vestida ou sobre os ombros? Usaria um disfarce, por exemplo, apagando o bigode e descobrindo a pele subjacente, de súbito nua, de súbito fria? Cercar-se-ia de símbolos, de cifras da cabala, de signos horoscópicos, de gaivotas no Tejo, de cais de pedra, de corvos traduzidos do inglês, de cavalos azuis e jockeys amarelos, de premonitórios túmulos? Ou, ao contrário destas eloquências, ficaria sentado diante do cavalete, da tela branca, incapaz de levantar um braço para atacá-la ou dela se defender, à espera de um outro pintor que ali fosse tentar o impossível retrato? De quem? De qual?

De uma pessoa que se chamou Fernando Pessoa começa a ter justificação o que de Camões já se sabe. Dez mil figurações, desenhadas, pintadas, modeladas, esculpidas, acabaram por tornar invisível Luís Vaz, o que dele ainda permanece é o que sobra: uma pálpebra caída, uma barba, uma coroa de louros. É fácil de ver que Fernando Pessoa também vai a caminho da invisibilidade, e, tendo em conta a ocorrente multiplicação das suas imagens, provocada por apetites sobreexcitados de representação e facilitadas por um domínio generalizado das técnicas, o homem dos heterónimos, já voluntariamente confundido nas criaturas que produziu, entrará no negro absoluto em muito menos tempo que o outro de uma cara só, mas de vozes também não poucas. Acaso será esse, quem sabe, o perfeito destino dos poetas, perderem a substância de um contorno, de um olhar gasto, de um vinco na pele, e dissolverem-se no espaço, no tempo, sumidos entre as linhas do que conseguiram escrever, se do rosto sem feições nem limites ainda alguma coisa vem intrometer-se, está garantido o dia em que mesmo esse pouco será definitivamente lançado fora. O poeta não será mais que memória fundida nas memórias, para que um adolescente possa dizer-nos que tem em si todos os sonhos do mundo, como se ter sonhos e declará-lo fosse primeira invenção sua. Há razões para pensar que a língua é, toda ela, obra de poesia.

________

*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 22/abril/2009.
Foto de Saramago: acervo da FJS
A grafia é a de Portugal.


sexta-feira, 28 de maio de 2010

O coração do outono

Jorge Adelar Finatto 
 

As invisíveis presenças habitam o outono.
Estão nas fotografias, estão nos pensamentos, estão nas velhas cartas, estão nas cadeiras vazias ao redor do silêncio. 
Estão nos livros que respiram sobre a mesa.
A bruma arrasta o branco vestido de tule pelas ruas esquecidas de Passo dos Ausentes.
Outono é um cartão postal que alguém mandou do oblívio.

O sol olha entre a névoa. O vento sopra nos cabelos, nos telhados oblíquos.
 
O tempo agora é viver cada dia.

As folhas caem em silêncio.

Estou habitado de vozes e ausências. 


O pássaro tece o voo acima do vazio. O arrepio de estar vivo atravessa o coração. A palavra cresce sobre os territórios da sombra, como a luz de maio. Um sopro na escuridão.

 

A claridade depois se espalha.
Vamos com o lume que avança pela noite do mundo.
A face de dor esculpida no tempo.
Precisamos reinventar o amor.

 __________
  
Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Eu comecei a sair da mina

Jorge Adelar Finatto




Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                          me abraçou
me desamarrou as mãos


________

.Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
.Esse poema, escrito há trinta anos, pertence ao Dr. Valdo, ilustre médico, cujo sobrenome, para minha tristeza, esqueci. O alçapão do tempo e da memória, contudo, não apagou o afeto e a gratidão.
.Foto: J. Finatto