quinta-feira, 17 de junho de 2010

Breve notícia de um domingo

Jorge Adelar Finatto


A moça do casaco de lã azul tem cabelos encaracolados. Os dentes da moça do casaco azul são muito brancos. A cidade fica iluminada quando a moça sorri. Essa moça de cabelos encaracolados não sabe que espalha encanto e dor na tarde fria e triste do domingo de junho. Por isso, enquanto conversa fazendo gestos suaves, na moldura branca do banco da praça, o riso da moça apaga e acende como farol no meio da melancolia que insiste  no coração. Dá vontade de caminhar na estrada ensolarada que a moça inaugura toda vez que sorri dentro do casaco azul.

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Foto: J.Finatto

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Camisola*

 José Saramago


Quando hoje saí do hospital, fresco como uma rosa, trazia comigo duas satisfações. Uma, a de me ter visto livre, finalmente, de uma impertinente bronquite que há meses, com altos e baixos, parecia não querer largar-me, mas que desta vez teve de resignar-se a ir à procura doutro hospedeiro. Oxalá não o encontre. A segunda satisfação era de diferente natureza. Sucede que neste pequeno hospital de Lanzarote, certamente com surpresa de quem me leia, trabalham nada mais, nada menos que 17 ou 18 enfermeiros vindos de Portugal, da província do Minho na sua maior parte. Sucede também que, antes de sair, tive de fazer uma radiografia ao tórax para que ficasse devidamente documentado que o paciente, como costuma dizer-se, está bem e recomenda-se. Eu levava posto o que hoje chamamos um “jersey”, portanto foi um “jersey” que despi e deixei em cima de uma cadeira. O enfermeiro, português de Felgueiras, devia verificar se as chapas haviam resultado tecnicamente satisfatórias e, para isso, teve de passar para um compartimento ao lado. Disse: “São só dois minutos, depois dou-lhe a camisola”. Creio que estremeci. Não tornara a ouvir a palavra desde há uns trinta anos, talvez mais, e aqui, em Lanzarote, a dois mil quilómetros da pátria, um jovem enfermeiro de Felgueiras, sem o imaginar, dizia-me que a língua portuguesa ainda existia. Abençoada bronquite.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 21/abril/2009.
A grafia é a de Portugal.

Foto: José Saramago escrevendo Caim. Arquivo da Fundação.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto


Veneza é o sonho de toda Colombina. Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território perdido no vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro. Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Na época ele contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas.

Arlequim é o senhor das labaredas. Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus apetites. Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. O mundo humano foi bordado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento. Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da vossa moral de almanaque. De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses. Eu vivo os enquantos.

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Foto: J.Finatto
Alberta, Colombina

domingo, 13 de junho de 2010

O escultor sem memória e sem nome

Jorge Adelar Finatto


Aqui em Passo dos Ausentes existe um homem que vive na rua, perdeu a memória, não sabe quem é.  Atende por Antônio. Desconhece o lugar onde nasceu, quem eram seus pais, ignora se tem parentes ou amigos. Ele faz esculturas de madeira. As mãos são trêmulas. As roupas, muito velhas, mas vê-se que é caprichoso.

A madeira ele procura em restos de construções, praças e terrenos baldios. Nesse fim de semana de Dia dos Namorados, ele fez algumas imagens de Santo Antônio. O que mais admira no santo? A humildade. O escultor considera essa qualidade a mais importante.

Observando suas obras expostas na calçada, percebe-se que tem inventividade e talento. Seus dedos tecem delicadas formas sobre o pobre material. Eis que, no ar, vão aparecendo os contornos, os volumes, as cavidades. O que antes era lixo agora ganha expressão, sentido, beleza.

O escultor sem nome e sem memória é, em si, um mistério. Um olhar que se abre para uma janela solta no espaço. Ele não tem plano de saúde, casa, salário, família. Seus amigos mais próximos são os pardais nas árvores.

Esse artista não deixa de ser alguém que, apesar de tudo, carrega uma espécie de felicidade. Penso nos fantasmas que, muitas vezes, entram pela nossa casa e tomam assento na nossa vida. Penso no quanto a lucidez pode ser dura e triste. Penso nas vezes em que queremos apenas esquecer. Porque há um peso insuportável nisso tudo, principalmente quando lembramos que somos só um sopro, um descuido, um até breve. Um fragmento na memória desmemoriada do tempo.

Por um momento tive inveja do escultor sem memória e sem nome.

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Foto: J. Finatto.
Da série: visite Passo dos Ausentes antes que acabe.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Esplendor americano

Jorge Adelar Finatto


Harvey Pekar ama o jazz e histórias em quadrinhos. Mora em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos. Trabalha como arquivista no hospital da cidade. Abandonou os estudos por falta de paciência e vocação. Leva uma vida monótona e muito solitária, após dois casamentos desfeitos. O apartamento onde vive só não é mais caótico por falta de espaço. Por todo lado, discos, livros e revistas que coleciona.

Tem um amigo que desenha quadrinhos muito bem, Robert Crumb, o mesmo que, anos mais tarde, se tornará uma celebridade internacional no universo dos gibis. Um belo dia, Harvey resolve começar a escrever para quadrinhos. Com uma particularidade: contará as histórias de sua própria existência, falará da vida real. Pessoas de suas relações, família, amigos  e colegas de hospital serão personagens, assim como ele. Robert Crumb, já então famoso, gosta dos textos e faz os primeiros desenhos. Daí nasce a série de revistas American Splendor (Esplendor americano), em 1976, que vira sucesso e se transforma numa publicação cult. O êxito o leva a participar várias vezes do talk show de David Letterman , com o qual  trava diálogos ríspidos em pleno ar.

Pekar, no entanto, diz que, apesar do sucesso, não chega a ganhar o suficiente para largar o emprego de arquivista. Na verdade, não abandonará essa profissão, não apenas pela questão financeira, mas porque aquele ambiente lhe dá sustentação emocional, é uma espécie de âncora. No hospital, estão seus principais amigos. Ali permanece até aposentar-se.

O filme American Splendor (2003), que no Brasil foi lançado com o título de Anti-herói americano, conta essa história (pode ser encontrado em dvd). Além dos atores principais (Paul Giamatti, no papel de Pekar, e Hope Davis, interpretando sua mulher, Joyce Brabner, com quem, enfim,  faz um bom casamento), o próprio Harvey Pekar aparece em várias cenas intercaladas, contando detalhes de sua trajetória, além de figurar como narrador. O filme, escrito e dirigido por Shari Springer Berman e Robert Pulcini, recebeu o Prêmio do Grande Júri do Festival de Filmes Sundance e o Prêmio dos Críticos do Festival de Cannes, ambos em 2003.

Esplendor americano é a visão irônica, às vezes amarga, às vezes perplexa, sempre humana, do homem comum que luta para sobreviver enquanto procura sentidos para a vida, no centro da realidade. Nada tem a ver com o herói clássico, com a imagem idealizada, com o elogio da civilização tecnológica e vencedora. Nos textos de Pekar, os perdedores (losers) - assim considerados dentro de critérios estreitamente vinculados a dinheiro e posição social -, têm voz e vez.

Pekar é um sujeito introspectivo, tímido, deprimido,  obsessivo, desses que ruminam os detalhes do dia-a-dia, buscando compreender um pouco as coisas dentro e fora de si. No seu entender, "a vida comum é bastante complexa". Não faltam humor e esperança, ainda que a realidade seja dura.

Pratica uma espécie de investigação filosófica à flor da pele , dentro do único cenário possível: a vida real. Lá pelas tantas, se vê diante de um câncer, que o leva inicialmente ao desespero, depois ao tratamento e, por fim, à cura, com a inestimável ajuda de sua mulher. Eles formam uma família com a filha adotiva.

Trata-se de um filme brilhante, muito bem construído. Revela  os caminhos de pessoas como nós, que querem encontrar razões de viver, formar uma família, ter amigos e um trabalho, que acreditam que a vida vale a pena, apesar de tudo.

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Foto: Harvey Pekar. Fonte: site The sound of young America.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A fala de Pedrolino

Jorge Adelar Finatto


Pertenço à ordem dos amorosos sem camélia. Os que amaram e se pensaram amados sem o ser. Os quase.  Os que saíram cedo da festa.

A dama. Meu coração perdido no infinito tabuleiro. O mundo é  um lugar de barbaridades.  Dor, dores.

Chamava-se Alberta, Alberta de Montecalvino. Pertencia à nobre estirpe dos Albertos, de Passo dos Ausentes. Foi quando a vida aconteceu. O sol brilhou entre as nuvens. Iluminou a escuridão da vida minha. O que eu fui.

Estava na janela da mansarda, como sempre, olhando a vida passar. Então ela atravessou a rua. Trazia a sombrinha vermelha. Olhou pra mim e sorriu. Rasgou minha solidão. Bailei no ar como folha de plátano, lentamente fui cair a seus pés. Desci correndo, pulando os degraus da escada. Segui o inefável perfume. Enfim, alcancei a dama. Perguntei se podia fazê-la feliz. Sim.

As iluminações. Passamos a frequentar a Praça da Ausência, nas tardes amarelas daquele outono. Um dia peguei-lhe na mão. Meu coração cavalo louco. Não dormi durante três noites.

Alberta meu sentimento. Ela me deu o lencinho branco perfumado, a letra A bordada em lilás. Guardei-o em algum lugar secreto, bem no fundo de mim. Aqueles eram dias de ora-veja.

A dama, o tabuleiro, eu nunca aprendi a jogar. Não canto outros amores, que não tive, e, se os tivesse, silenciaria.

Então Arlequim apareceu. Os ódios pularam dentro de mim. Arlequim e seus guizos, sua palavra sem valia, seu alaúde. Arlequim disse coisas, deitou falas, expandiu-se em canções. Antes calasse. Bazófias. 

Arlequim se espalha no mundo. Faz ares. Explorador de musas, ladrão de amores. Blasona. Arrebatou o coração de Alberta, os suspiros, até o corpo de violino que nunca toquei. Eu sonhador.  Os devaneios da alma. Voltei só pra mansarda. Nem acreditei. 

Quem me visse, a face esculpida da dor.  Veio o inverno. Invernos. O vero solitário da rua triste. O que olha a vida da janela. O que quase foi feliz. O sem camélia.

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Imagem: Pierrô (Gilles). Autor: Antoine Watteau (1684-1721). Museu do Louvre, Paris. Fonte: Wikipédia.