terça-feira, 31 de maio de 2011

Se um barco de papel

Jorge Adelar Finatto





O irmão rio vive dentro do menino. Convivem desde a infância, através da água limpa bebida diretamente da torneira e dos banhos nas tardes claras e quentes de verão nas pequenas praias. Na tarde muito fria e azul do último dia de maio, ele sai a andar pela beira do Guaíba, que é um jeito todo seu de fugir da realidade quando o peso é muito grande.

Existe uma memória afetiva que os irmana. Mais de uma vez ele teve de partir de Porto Alegre para trabalhar e viver em outras cidades. Sempre que pôde, foi ao mapa e escolheu um lugar com porto para ancorar a saudade do irmão.

Ele leva no bolso do casaco o barco de papel construído com a folha de um caderno escolar. A simples visão do rio tem o poder de acalmá-lo e o deixa perto da felicidade ou seja lá como se chama esse sentimento de integração com o mundo.

Ouve o rumor da água batendo na areia e nas pedras -  e uma sensação de harmonia o invade. Enfim solta o barco de papel e embarca. Sai pelo Guaíba a navegar, subindo e descendo as ondas, girando suavemente o leme, enquanto a vela amarela se enche de vento. O continente ficou ao largo com a angústia e o irremediável.

_____________ 

Foto: J. Finatto

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Um fantasma quer conversar

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Olha só pra mim. Quem me dera. Eu vivo no sumiço. Vento de maio me leva por diante.

Alberta de Montecalvino, a dama deste não-lugar, foi quem me deu a idéia de visitar esta efêmera página virtual.

Sou um dos fantasmas de Passo dos Ausentes, a cidade perdida nos Campos de Cima do Esquecimento, na serra do Rio Grande do Sul. Me chamo Heitor dos Crepúsculos.

Escrevo essas linhas sem muita fé de ser lido. Meu amigo Juan Niebla diz que escrever num blog é escrever na água.

Eu não ligo, sou só de passagem, não tem importância, nada tem muita importância. Não tenho ideia de permanência, compreende? 
 
- Escreve alguma coisa, Heitorzinho. Te mostra um pouco, meu querido. Entre os mortos-vivos dessa cidade, és um dos mais sentimentais e engraçados - disse Juan, tocador de bandoneón da estação de trem abandonada.

Não pretendo me dar ares de escritor. Sou, talvez, um escrevedor póstumo, alguém que publica suas histórias no vento. Não escrevo, claro, pra publicar em livro. Olha só pra mim. Não tenho mais a literária vaidade.

Passou o tempo e me levou.

Eu era poeta. Sempre vivi dentro do nevoeiro. Conversava, e às vezes me desesperava, com a folha em branco. As danações do criador.

Depois atravessei a ponte, depois vim para o invisível. Saí do mundo aos 27 anos por vontade própria. A vida era insuportável, não via saída, a esperança não entrava na minha alma. Eu poeta trevoso.

Quem me vê hoje, pode dizer sem engano: ali vai o arrependido.

Apareço e desapareço, tenho as superiores autorizações. Um fantasma é um ser virtual. Ora está, ora não está. Às vezes choro de saudade da vida com a cabeça entre as mãos pelos telhados. O menino que eu era quando saltei.

Não moro no pequeno cemitério, porque nunca encontraram meu corpo. Me joguei do penhasco, no belvederezinho aprazível que tem na descida do Vale do Olhar.

Foi um momento de infinita angústia, nem queira saber. Cansei de ser gente (o menino que eu era!). Os tristes apressamentos. Cada coisa que se faz na vida.

Nunca quis morrer de verdade. Queria um pouco só, pra sentirem pena. Quando vi o que tinha feito, já era tarde. Agora só existo no oblívio.

Aqui em Passo dos Ausentes todos me aceitam do meu jeito neblinoso, não se incomodam com o lusco-fusco que eu sou. O interrompido. O volátil.

Na dimensão esvoaçante e nevoenta, tudo é muito em paz, mas é uma paz cinza e sozinha.

Escrevo esse breve apontamento na mesa perto da janela que dá para o Vale do Olhar, no Café dos Ausentes, na estação de trem abandonada.

Observo o vento nas palmeiras da tarde gelada de maio. Meu amigo Juan Niebla, músico cego, com seu bandoneón na gare vazia e silenciosa, esperando um trem de passageiros que não virá. Agora está tocando As Quatro Estações Portenhas, do Astor Piazzolla.

O último trem partiu faz muito tempo. Esqueceram de desligar a esperança no coração do Juan. Feliz dele assim.

Só a música é eterna. O resto é bruma.

_________

Heitor dos Crepúsculos é fantasma e poeta em Passo dos Ausentes.

sábado, 28 de maio de 2011

A rua antiga me atravessa

Jorge Adelar Finatto



A vida se esconde na rua antiga.
A saudade mora aqui desde antes do mundo ser inventado.
Os passos dos habitantes se ouvem na longínqua estrela.
Quem nos vê, quem nos vale nesse labirinto?
A vida inteira no postigo.
Tantas coisas eu sonho.
Tantas coisas eu sinto.
As pedras da rua antiga são diamantes do oblívio.
O tempo nela escorre feito lágrima.
Ninguém vê essa cicatriz aberta na face do planeta.
Calado observador do fim do mundo.
A rua antiga me atravessa.

_______

Do livro Calado Observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.
Foto: J. Finatto. Colonia del Sacramento, Uruguai.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Livro, livros

Jorge Adelar Finatto


Passei um tempo numa livraria-café nesta tarde de maio. As livrarias me causam encantamento natural, porque gosto de caminhar em meio a  bosques. Por outra parte, elas me trazem um sentimento de angústia, porque há livros que nunca lerei, o tempo é curto, as estantes são infinitas.

Peço desculpas prévias aos livros e autores que não conhecerei.

Mas tem o lado da beleza colhida nos livros descobertos na imensa floresta. A esses, gratidão.

Cultivo a arte de ser lento.

Essa coisa tão fora de moda que é parar, fazer silêncio, sentir o mundo.

__________

Foto: J. Finatto

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Pequenas notícias

Jorge Adelar Finatto


O poema é uma pequena notícia, uma biografia mínima. É alguém contando sua passagem no mundo. Deve ser lido aos poucos, em lentos sorvos, à impossível pressa. Como quem estivesse a bordo de um breve barco que avança calmamente pelo rio. Sou capaz de ouvir o rumor dos remos batendo na água. 

Escrever poemas depois de Walt Whitman e Fernando Pessoa pode parecer um tanto quanto inútil. O imenso talento e a altura da obra destes dois poetas universais podem soar inibidores de novas vozes. Mas, abrindo um pouco mais o olhar, é possível reconhecer em cada indivíduo uma nova maneira de ver e sentir a existência. Como se a experiência do ser humano no planeta se renovasse em cada um de nós. Então, se assim é, o texto da vida está sendo sempre reescrito. Por isso todo canto é bem-vindo. Ninguém deve desistir diante da tradição. A obra dos que vieram antes deve servir de estímulo e inspiração, não de constrangimento. O resto é vida, trabalho e fé.
_________

Foto: J. Finatto

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Seco

Jorge Adelar Finatto



photo: j.finatto
 
Coração seco, boca seca, mão seca. Secas palavras, medo seco. Secas pétalas de camélia vermelha dispersas no chão da praça. Seco, seco.
 
Secos pássaros dormem em ressequidos galhos. Secas folhas de plátano se agitam contra o azul. Manhã silenciosa, bailarina morta na caixa de música, enferrujado relógio de parede, tudo seco.
 
Secou a ponte que unia os amantes, inundava-os com a urgente carícia. Secaram as velas das faluas do Tejo.

Os olhos que olhavam o pôr-do-sol no Guaíba secaram, secaram.
 
Secos homens invadiram as ruas secas da cidade, cometeram tristes barbaridades.
 
O milharal, de tão seco, pegou fogo.
 
Sentimento e pensamento, secos. O sexo ficou seco. As páginas do livro de poemas por escrever, secas, secas.

Seco olhar observa do fundo do espelho.
 
A ternura, a ternura, um rio seco, seco dentro do coração. 
 

sábado, 21 de maio de 2011

Lars von Trier e a desumanização da palavra

Jorge Adelar Finatto

Não terá sido esta, provavelmente, a última vez que alguém declara simpatias por Hitler e pelo nazismo. O cineasta dinamarquês Lars von Trier foi mais um, ao declarar, no Festival de Cinema de Cannes, compreender Adolf Hitler e ser nazista. Disse que gostava de judeus, mas nem tanto, porque Israel é um pé no saco. Declarou-se, também, admirador da arte e do talento de Albert Speer, arquiteto oficial do Terceiro Reich.

As declarações foram feitas durante entrevista coletiva de apresentação de seu filme Melancholia, na quarta-feira passada. Diante da péssima repercussão, desculpou-se depois, afirmando arrepender-se do que disse, que tudo não passou de uma brincadeira estúpida. Acrescentou que não era nazista.

Os responsáveis pela organização do festival expulsaram von Trier do evento por suas afirmações. Admitiram, contudo, que seu filme continuasse concorrendo. Além disso, declararam-no persona non grata. Caso seu filme venha a ser premiado, ele não poderá estar presente na cerimônia, conforme amplamente divulgado na imprensa. Pelo que entendi, ironizou o cineasta, a decisão significa que eu estou proibido de chegar a cem metros do Palais. Mas acho que posso tomar um sorvete ali perto e olhar à distância.

O que impressiona, além das declarações absurdas, é essa maneira frívola como von Trier trata o episódio, mesmo após a repercussão negativa e do seu pedido de desculpas. Dificilmente alguém brinca quando se trata de Hitler e da 2ª Guerra Mundial. Estamos falando de um dos maiores, mais cruéis e terríveis massacres da história do homem, sendo desnecessário estender-se sobre suas funestas e indeléveis consequências.

Impressionante ver que um homem de 55 anos, diretor premiado de cinema, que trabalha com cultura de massa, não tenha o alcance do que diz (não terá mesmo?), numa coletiva daquele que é um dos mais tradicionais festivais de cinema do mundo. É triste vê-lo ocupar um espaço de tamanha importância e visibilidade para dizer coisas como essas, que ofendem não apenas os judeus como são uma afronta a toda a humanidade. Se quem tem o poder da palavra, na arte, o utiliza desta forma, estamos muito mal.

Diante do seu pedido de desculpas, diminui a justa indignação das pessoas que não aceitam qualquer forma de condescendência com a intolerância, a crueldade e a violência. É muito complicado tudo isso, vindo de quem vem.

Se é verdade que a boca diz aquilo de que o coração está cheio, então a situação do cineasta é mais preocupante do que parece. Esperemos, todavia, que não, que tudo, realmente, não tenha passado de uma brincadeira estúpida.

_________

Declarações do diretor, em itálico, colhidas do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, edições de 19 e 20 de maio, 2011.