sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Fado, um modo de sentir o mundo

Jorge Adelar Finatto

Lisboa, 10 nov. O fado é uma música visceral que vai direto ao coração. Se não arrepia, não é fado. Ouçamos estes versos que escutei na Tasca do Chico, na madrugada de ontem:

Eu era só silêncio e alguns medos (…) 
Escrevia na folha do esquecimento, que no vento se perdia (…)

O sentimentalismo lusitano é capaz de construções assim. Emoção à flor da pele, sensibilidade viva. Este modo de perceber o mundo está na origem da nossa formação. Carregamos essa herança afetiva de Portugal. Ave, pois, Camões, Padre Vieira, Fernando Pessoa, Eugênio de Andrade, Ruy Belo.

Ave, entre nós, Drummond, Vinicius, Quintana, Alvaro Moreyra, Heitor Saldanha, Henrique do Vale, Ricardo Mainieri.

Ave, toda a gente do fado, poetas que estão por aí e mais os que virao depois.

Engana-se quem pensa que fado é só tristeza, desilusão e dor. Nele há alegria, encontros e sonhos. O fado nasceu aqui ao lado, no bairro da Mouraria, para onde foram os mouros após a retomada de Lisboa por El Rei, por volta do ano 1100. Eternizou-se na voz de Amália e hoje canta pelo mundo no jeito dos jovens fadistas.

O vinho e o fado me fazem pensar (e sentir) que a razão longe do coração está perdida. O mundo do futuro – mais justo e muito mais humano – deverá surgir dessa união de sentimento e razão.

A indiferença que apaga e suprime o outro é casa de maluco. Está com os dias contados.

O povo do afeto tomará conta do planeta.

Viva o fado.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Alma de fadista

Jorge Adelar Finatto

Lisboa, 8 nov.  Um homem toca trompete na rua Garrett, no bairro do Chiado. Chove nesta terça-feira. O músico se protege na entrada de um edifício. Na Livraria Sá da Costa, escolho um livro de Fernando Pessoa. A poucos metros dali, no café A Brasileira, leio alguns poemas.

O café e os poemas espantam o frio do outono lisboeta. O nevoeiro se espalha sobre o Tejo.

A famosa escultura de FP fica em frente à Brasileira. O poeta frequentava o café e a livraria.

A Brasileira é um lugar de peregrinação de pessoanos do mundo inteiro. À volta se ouvem os diferentes idiomas. Tem gente que aprende português para ler FP. Mais que merecido para quem escreveu poemas como o belíssimo Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Tenho saído à noite para ouvir o fado no Bairro Alto. O Bairro Alto é o lugar cult da cidade com suas vielas estreitas e inclinadas e o casario que se perde no tempo. A Tasca do Chico é exemplar. Ali se canta o fado vadio, que é aquele cantado por amadores (os que amam essa música).

Amadores nessa hora tardia e sentimental, que cantam sem nada receber, a não ser o carinho e os ouvidos em oração das pessoas que enchem o pequeno local. Entre os cantores, às vezes comparecem luminares da canção portuguesa, como a jovem e extraordinária Mariza.

Atravessar o oceano para ouvir o fado, no seu ambiente, é uma coisa que vale a pena nesta vida breve.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Canção da bruma

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Senhor
quando chegar
a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
da infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa

________

Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
photo: j.finatto

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Recado ao amigo no hospital


Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Este recado, amigo, é pra te dizer o quanto é bom saber que estás te recuperando. Enfrentas com paciência e determinação a doença difícil.

O que me anima, a mim, que estou tão distante daí, é ver que há esse anjo a teu lado, velando na cabeceira por ti, velando a noite inteira, pra que continues ao nosso lado, preso a nós, nos falando e nos fazendo fortes nos dias em que tudo em volta parece desabar.

Em breve voltarás para tua casa querida. Encontrarás a tua gente, as tuas coisas, olharás pela tua janela, deitarás na tua cama, dormirás um sono doméstico e solto. Vais acordar e ver a luz da manhã atravessando a cortina. Depois caminharás com calma pela casa, olhando cada coisa, as flores que plantaste, com uma saudade de cem anos.

Por enquanto, espero que tenhas uma noite de saúde e recuperação. Estou pensando em ti e te mando um sentimento bom, uma oração, pra que te sintas mais aconchegado e confiante. E que venhas o quanto antes para perto de nós, que precisamos muito da tua presença e do teu afeto.


terça-feira, 1 de novembro de 2011

Mensagem de aniversário

Niamara Pessoa Ribeiro
 
 
photo: j.finatto
 
 
Parabéns por
defender o poético ao pensar,
resguardar um tempo mágico ao escrever,
perpetuar o instante ao fotografar.
 
Sua presença – cidadão, magistrado, jornalista, poeta - nos inspira uma certeza:
há um sonho na origem de todas as realizações;
quem não defende um sonho não defende nada, não defende ninguém.
 
Muitas realizações e que o tempo/relógio deste Aniversário (1º/11) traga as melhores notícias para alegrá-lo junto a seus queridos Familiares.
 
Possam fruir momentos maravilhosos. E que Deus continue abençoando seu talento, do qual o senhor já tem a posse definitiva.
Abraço enorme de Niamara e Cláudio Accurso.
 
______________
 
 
Queridos Niamara e Cláudio.
 
Recebo com profunda gratidão e felicidade essas palavras. É bom ter amigos como vocês, que relevam os nossos defeitos e enaltecem as nossas pequenas e discutíveis virtudes.
 
Por esse afeto generoso e consolador, agradeço de coração. Compartilho, com vocês, a visão das montanhas e do vale que acabei de colher.
 
Um grande abraço.
J.A.Finatto


segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Ao que parte

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

Um pedaço de ti rompe a neblina.
                                         Carlos Drummond de Andrade 

Quem te acolherá
na distante cidade
que agora dorme
emoldurada
sob antigas luzes
abandonada
em si mesma?

atravessas o Atlântico
e gotas do mar
grande mar da diáspora
enchem teus olhos

quem tocará tua face
quando lá chegares
insone e áspero
no meio da ventania?

na cidade estrangeira
haverá alguém
esperando
em solidária vigília?

dói a memória
dos que partiram
e partindo perderam-se
no sombrio traçado
de um mapa rasgado

és palavra
na tenebrosa
escuridão
que te cerca


______________

Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa quando ainda era menino e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, um a um, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia, o que acontecia com alguma frequência com os outros familiares.

Os livros retirados das bibliotecas por empréstimo eram parentes distantes. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham frequentado.

Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

O mundo de papel e tinta surgiu para espantar os fantasmas que o amedrontavam. Sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.

Uma espécie de eternidade habitava os livros.

Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas inúteis eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas ocupava o centro da parede da sala, o pai dos pobres, como se dizia.

A janela do quarto de dormir olhava o nada.

A rua se chamava São João, nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus, e na qual escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o destino lhes era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.