sábado, 31 de dezembro de 2011

Leveza no tranco

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Maria Machiavelli

 
A palavra que escolhi para o novo tempo, espécie de busca-vida nesse início de ano, é leveza.

Sim, um pouco mais de leveza. Leveza no modo de sentir e levar a vida.

Leveza no trato com as pessoas.

Nada de grandes pesos na mala. Uma existência mais suave, com menos fantasmas a acordar-nos à noite.

Que o peso da vida, se for inevitável, se distribua com algum equilíbrio ao longo da viagem, sem arruinar a travessia.

Leveza, sim, um pouco de leveza.

Para admirar a paisagem, para conversar com o passageiro ao lado, para cultivar sentimentos.

Leveza, enfim, para expulsar o desespero e a tristeza da nossa porta.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O faxineiro da casa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Jardim do Palácio da Alhambra, Granada, Espanha.


Este é tempo de casa cheia. Gente ausente vem de longe para as comemorações de Natal e Ano Novo. As festas são, na verdade, um pretexto pra rever a quem se ama e pôr em dia a sempre adiada convivência.

A reunião implica, por outro lado, divisão de tarefas. Como não sei cozinhar e nem possuo outras habilidades, sou designado para a limpeza dos banheiros. Mister, aliás, de que muito me orgulho. Estou entre aqueles que acreditam que nada na vida é por acaso.

A modéstia, contudo, me impede de dizer que poucas pessoas sabem limpar e arrumar um banheiro como eu. Haverá faxineiros mais graduados e com melhor currículo, desses que trabalham em hotéis de luxo e navios de cruzeiro. Mas ainda não encontrei mais esforçado.

Com a minha experiência no metiê, posso afirmar que nós, operadores da limpeza, nos ressentimos da falta de reconhecimento. Aos cozinheiros, todos os louros são conferidos. Assim também aos arrumadores dos quartos e demais ambientes da casa, aos lavadores e passadores de roupa, aos jardineiros, motoristas, babás, etc.

Ninguém nunca diz: que banheiro mais asseado, que louças tão alvas e lustrosas, que toalhas bem postas, que belo arranjo floral, que frescura de campo. Parece até que o serviço se faz por si.

Não quero polemizar com as outras categorias, longe de mim. Mas que há uma indiferença em relação ao pessoal da faxina não tenho dúvida.

Gostaria de lembrar que estamos abertos a elogios e mostras de apreço em geral. Um afago não ia nada mal, assim como um avental novo e colorido de vez em quando.

Um 2012 limpo e perfumado é o que desejo a todos.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Refúgio

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Tudo tão frágil na vida
o mundo inteiro cabe num abraço

medos povoam a insônia
a chuva lá fora é a infância
com seus tesouros submersos
no navio sem leme
nem capitão
do tempo

melhor me refugiar no teu corpo
fingir que tudo está tranquilo
arranjado e bom
como no útero


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, J.Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1.990.

sábado, 24 de dezembro de 2011

A bicicleta azul

Jorge Adelar Finatto


ilustração: Maria Machiavelli


Amanheceu frio, chuvoso e com neblina. É verão pleno e véspera de Natal. Esse tempo, contrariando o calor dos últimos dias, faz a gente se sentir mais leve.

Não sei se em razão do tempo introspectivo, veio até mim esta recordação como uma pequena lanterna dourada no fundo do rio da memória.

Devia ter cinco anos, morava com os avós. Num lugar pequeno, afastado do mundo, na altura ventosa das montanhas. Um território de nuvens e pássaros mais que de gente.

Na manhã de Natal, o avô me acordou cedo. Disse para eu ir até a sala. Desci do sótão pela escada o mais rápido que pude. Lá chegando, fiquei encantado. Estava diante da primeira maravilha do universo.

De pé, sobre as duas rodinhas auxiliares, estava a minha bicicleta azul, o melhor e mais precioso presente que alguém podia ganhar na vida.

O que senti na ocasião foi tão forte e tão bom que até hoje me alimento dessa lembrança.

Nunca esqueci da minha bicicleta azul.

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Feliz Nascimento de Cristo para todos!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Entonces es necesario piramidar

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Recriação do quarto de Van Gogh em Arles. Museu Van Gogh, Amsterdã.


A internet é uma árvore cheia de galhos e ramificações que se espalham por todo o mundo. Blogues e sites são como ninhos que se alojam nessa frondosa árvore planetária.

Faz hoje dois anos que O fazedor de auroras está na rede. Agradeço a presença das pessoas que nos visitam. É uma satisfação recebê-los.

Todo mundo é ocupado demais. Por isso cada visitante tem de ser recebido como alguém especial. É o mínimo que procuro fazer nesta sala simples, porém sincera.

Não faço balanços de fim de ano, porque tenho enjoos de navegar por essas águas. Se paro para pensar, parece que tudo ficou por dizer ou fazer.

Mas quando olho em frente, sinto que existe muita estrada verde e iluminada querendo ser pisada.

Prefiro, então, nessa hora piramidal (?), recorrer aos versos do amigo e grande poeta Heitor Saldanha:

 Las pirámides están llenas de luz.
 Entonces es necesario piramidar.*

A foto acima é um mimo (??) aos dois leitores do blogue. É a representação do quarto de Van Gogh, em Arles (cidade ao sul da França, onde o artista viveu um certo período).

A montagem, feita com móveis, quadros e objetos, é fiel à pintura do gênio holandês, datada esta de 1888. A instalação está no segundo andar do Museu Van Gogh, em Amsterdã, a poucos metros do quadro original.

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* Do livro A Hora Evarista, trecho de Poemeto, Heitor Saldanha, Instituto Estadual do Livro, Editora Movimento, Porto Alegre, 1974. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O menino e o cego

Jorge Adelar Finatto


O menino caminha
pela mão do cego

o cego carrega os livros
na velha mala de couro

traz a alma partida
o violino pendurado ao ombro

cavaleiros passam lentamente
na noite da rua São João
dormem sobre os cavalos
com grossas capas azuis
os chapéus caídos nos olhos

vão para o olvido

o menino e o cego
a torre e o sino
a estação
a lua fria
o trem que parte

o vento agita as folhas

gira atônito
cata-vento
do tempo

a vida não será
mais a mesma

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Poema do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Ilustração de Paulo Porcella.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O escândalo continua (ou uma orquestra de sopros e cores no jardim)

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

As flores perderam a noção do razoável e do pudor. É difícil olhar para o jardim e não corar (como um frade de pedra não pode fazer). Estava no escritório, na dura faina, olhando o mundo pela janela (a triste sina), quando comecei a ouvir instrumentos de sopro lá fora.

Caminhei até a breve varanda da clausura. Descobri, entre aromas, um conjunto floral em concerto, tocando seus instrumentos.



Desnecessário dizer que daí por diante perdi a concentração no que fazia. Passei o resto do dia esticado na cadeira de balanço com aquelas músicas, aquele perfume, aquelas finas cores.

photo: j.finatto


Alguma coisa está fora do controle. A beleza brutal e desumana dessas flores açula, em meio ao caos, os corações secos, abre as janelas do sentimento.

Não sei como essa insensatez vai acabar. Pra falar verdade, não estou muito preocupado. Afinal, dizem, não há mal que sempre dure.

photo: j.finatto