segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O Artista

Jorge Adelar Finatto

Jean Dujardin e Bérénice Bejo, em O Artista. Fonte: Divulgação

Na semana passada, assisti a O Artista, dirigido por Michel Hazanavicius (França, 2012, 100 min) e saí do cinema encantado por ver, enfim, um filme de arte, bem distante dos clichês, dos bruxinhos e dos efeitos especiais tão em voga. É um filme em preto e branco, mudo, tendo bela trilha sonora de fundo. 

Conta uma história humana, ao tratar de um ator que percorre difícil itinerário que o leva da fama à decadência, na Hollywood da década de 1920. Estrela do cinema mudo, George Valentin não assimila bem a chegada do cinema falado e aí começa a sair de cena. A jovem atriz e dançarina Peppy Miller, que se projeta no novo modo de fazer cinema, acompanha de perto o drama do ator.

O filme fala também da vaidade que, às vezes, toma conta de nós quando o sucesso acontece (em qualquer profissão ou atividade) e de como ela pode nos levar ao fundo do poço.

Mas O Artista nos recorda, sobretudo, do amor, da empatia e da solidariedade que deve haver entre as pessoas, principalmente em momentos de crise e desorientação (pelos quais todos, mais dia, menos dia, acabamos passando).

Dos filmes que vi nos últimos tempos, este é um dos mais tocantes. Nada nele é forçado e a emoção flui e cresce naturalmente ao longo da trama. Diferente, por exemplo, de A invenção de Hugo Cabret, do diretor Martin Scorsese, (Estados Unidos, 2011, 126 min), notável em efeitos especiais, mas no qual o sentimento não amadurece, tem pressa de mostrar-se ao espectador, e acaba não acontecendo, ao menos não como em O Artista, em que cada lágrima e cada riso têm sua razão e seu momento.

Os Oscars (a cerimônia avançou até o início da madrugada desta segunda-feira, no horário do Brasil) de melhor filme para O Artista e  o de melhor ator ao seu protagonista Jean Dujardin são, por todas as razões, mais do que merecidos (ganhou também os prêmios de melhor direção, figurino e trilha sonora). Pra não esquecer: a atuação de Bérénice Bejo, como Peppy, tem momentos inesquecíveis. 

Lavei a alma, porque as premiações a O Artista fizeram justiça.


As órbitas misteriosas

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


A coisa mais difícil do mundo é encontrar guarda-chuva perdido.

O meu guarda-chuva desapareceu num início de outono. Éramos inseparáveis até então.

Nos perdemos num dia de forte neblina nos Campos de Cima do Esquecimento. Tínhamos saído para dar uma volta aqui em Passo dos Ausentes, garoava.

Num momento em que me distraí, veio um pé-de-vento e o arrancou de minhas mãos, ele saiu voando alto, foi em direção ao Vale do Olhar, nunca mais voltou. Desnecessário dizer que deixou uma dor no meu coração.

Decerto ele agora anda em órbita em volta da Terra, como as bonecas de trapo das primas antigas e os borzeguins azuis do major.

Tudo que um dia perdemos vira um ponto de luz no espaço.

(As coisas perdidas deixam sempre algum rastro.)

Por isso, acredito que nada do que amamos se apaga simplesmente.

O meu guarda-chuva perdido era como amigo de infância.

A gente nunca esquece, mas não sabe ao certo para onde o vento o levou.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Efêmera canoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Diante da cidade cinza, atravessa indiferente uma canoa.
Vista assim parece cartão-postal. Uma recordação do passado distante.
De tantas pinturas concebidas, nenhuma será tão bela como a cidade e seu rio.


photo: j.finatto


A solidão da canoa desliza pelo retrato, em lenta e agonizante passagem rumo ao crepúsculo.
O homem atrás do peixe.


photo: j.finatto


O pescador e o peixe ao largo da cidade.
O observador, no continente, na sua ilusão de beleza e permanência.
Todos em direção ao oblívio.


photo: j.finatto

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O cenário é Porto Alegre; o rio, o Guaíba.
Fotos feitas em 22, fevereiro, 2012.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O escritor e seu carnaval

Jorge Adelar Finatto


pintura: Maria Machiavelli


O escritor sai pela rua no seu solitário bloco de carnaval.

Como será uma fantasia de escritor? A cara pintada de palhaço. Um enorme nariz de papelão. Nos olhos, grandes óculos redondos e pretos em forma de bicicleta. Um bigode de trilho de trem. Na cabeça, o chapéu de Napoleão, feito de folha de jornal.

Um par de borzeguins vermelhos desamarrados.

Na esquina, ele se mistura ao cordão de foliões, se deixa levar pelas ruas do bairro fantasiado da estranha criatura que, na verdade, é. Ele vai com o cordão pelo meio da praça, de mãos dadas com a alegre mascarada que encontrou pelo caminho. Ela tem pequenos olhos azuis e cabelos pretos escorridos nos ombros.

O escritor e a mascarada dispersam-se do grupo. O dia amanhece. Encostados nas costas um do outro eles descansam num banco da praça. Ele com um catavento na mão. Ela com um hibisco amarelo preso no cabelo.

Uma chuva de verão começa a cair. Eles correm e entram no Café da Aurora que àquela hora  abre a porta aos primeiros fregueses. Pedem uma taça de café preto, o pão ainda quente do forno.

Enquanto isso, lá fora, sob a chuva azul, arlequins, colombinas e pierrôs passam molhados na calçada, cantando As Pastorinhas.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No carnaval, olhando o mar

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Amsterdam

Estava na livraria, no sábado de carnaval, olhando a estante como quem mira o mar de dentro do seu barco, ávido por partir. Esse olhar nunca é inocente. Há uma busca de felicidade na mão que se eleva até a prateleira.

A simples procura faz alguém feliz, essa transitória felicidade que, às vezes, nos habita em meio ao tumulto.

A velha angústia de saber que não há tempo pra ler nem a metade dos livros que gostaríamos torna a escolha um momento difícil. Mas não desanimo nem estou preso ao cânone, à obrigação de ler certas obras só porque alguém disse que tem de ser assim. Não.

Estou diante da estante, olho o mar de histórias.

Esse instante deve ser, acima de tudo, lúdico. Afinal, não bastasse a brevidade das coisas, hoje é carnaval.

Quero a leveza do barco ancorado na beira do canal. Quero um livro profano, desses que ensinam a arte de andar de bicicleta pelas ruas do bairro sem ser atropelado por isso.

Ou um que enuncie o nome dos pássaros dessa cidade, ou traduza a forma das nuvens nos céus de fevereiro. 

No movimento das águas desse mar, escolhi alguns títulos que prometem boas fugas do território das ilhas: O Cemitério de Praga (romance, Umberto Eco), Um Pai de Cinema (fábula, Antonio Skármeta) e Chamadas Telefônicas (contos, Roberto Bolanõ). Pelo que li, em voo de gaivota sobre as ondas, são profanos o suficiente para alegrar o meu carnaval.

Diante da estante, sábado, olhando o mar.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Anne Frank, para não esquecer

Jorge Adelar Finatto


Anne Frank. Fonte: Fundação Anne Frank
http://www.annefrank.org/

Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda.
(O Diário de Anne Frank, 12 de junho de 1942)

Um domingo de outono em Amsterdam, fim de novembro, 2011. O vento corre sobre os telhados e canais, enquanto a garoa cai gelada. O fato de ser domingo, muito frio e úmido, não afasta as cerca de 200 pessoas que aguardam na fila para entrar na casa-museu onde viveu Anne Frank (1929-1945) nos últimos dois anos de sua vida, antes de morrer no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha. Estou no fim da fila. Poucos minutos depois outra extensa fila se forma atrás de mim. São pessoas de todas as idades e nacionalidades.

Anne escreveu nesta casa o famoso diário no tempo em que aqui esteve mergulhada com a família no Anexo Secreto, durante a ocupação nazista da Holanda, na Segunda Guerra Mundial. Pelo fato de serem judeus, os Frank, como milhões de outros, foram implacavelmente perseguidos pelo nazismo alemão. Em 1933, haviam se mudado da Alemanha, seu país de origem, para Amsterdam, a fim de fugir do regime de Hitler.

Otto Frank construiu este refúgio na parte dos fundos do imóvel onde funcionava sua empresa, situada na rua Prinsengracht, 263, à beira de um canal. Fez isso prevendo o dia em que teriam de mergulhar (sumir) para não ser presos e assassinados. Em 6 de julho de 1942, trouxe a família para cá. O esconderijo foi chamado de Anexo Secreto. Deixaram para trás o apartamento onde viviam ele, a esposa Edith e as duas filhas, Anne e Margot.  Na parte da frente da casa continuou o negócio, comércio de alimentos, cuja propriedade Otto passou para o nome de outros (os judeus não podiam exercer atividade empresarial), embora, na prática, continuasse a dirigi-lo.  Mais quatro pessoas juntaram-se a eles no anexo. Amigos fiéis se encarregaram de levar alimento e outros produtos ao grupo. Com o passar dos dias, tudo foi escasseando.

Em 4 de agosto de 1944, o esconderijo foi denunciado (nunca se soube quem foi o delator). As oito pessoas foram presas, levadas para campos de concentração e todos, com exceção de Otto, morreram. Anne e sua irmã morreram de tifo no campo de Bergen-Belsen no fim de fevereiro ou em março de 1945, poucos dias antes da libertação deste. Provavelmente foram enterradas em valas comuns. Além delas, outras 28 mil pessoas perderam a vida naquele campo naquele mês, em função da fome, do frio e das doenças. A maioria dos prisioneiros, nos últimos seis meses, era de mulheres. Edith morreu em Auschwitz. Otto sobreviveu a Auschwitz. Em 1947, publicou o diário de Anne, que havia sido encontrado na casa depois da invasão dos nazistas e da prisão dos oito. Anos mais tarde, o prédio transformou-se na Casa de Anne Frank, museu que guarda a memória daquelas vidas e daquele terrível período.

Autenticidade

Houve quem duvidasse da autenticidade do diário. Argumentou-se que uma menina entre os 13 e os 15 anos não teria conhecimento nem maturidade suficientes para escrevê-lo com tal profundidade. Na apresentação do livro*, informa-se que após a morte de Otto Frank, em 1980, aos 91 anos, os documentos (diário e outros papéis que o integram) foram entregues ao Instituto Estatal Holandês para Documentação de Guerra, em Amsterdam. Consta que o referido instituto mandou fazer uma profunda investigação a respeito, a qual concluiu por autênticos os documentos.

O texto passou por revisões gramaticais e, quiçá, de estilo antes da publicação. Houve seleção do que seria publicado, o que, em princípio, é natural: apenas uma parte do que se escreve se transforma depois em livro.

Realmente chama a atenção que uma pessoa tão jovem tenha escrito essas páginas. Todavia, cada indivíduo é um universo e talentos há que se revelam muito cedo. Por outro lado, é sabido que o sofrimento acelera ferozmente o amadurecimento do ser humano, que em condições tais queima etapas e se vê obrigado a antecipar uma visão adulta do mundo.

Sobre o diário manifestaram-se com admiração pessoas como o ex-presidente americano John F. Kennedy, o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela e o escritor italiano e ex-prisioneiro de Auschwitz Primo Levi.

O testemunho

O relato de Anne Frank é, antes de tudo, bem escrito. Prende a atenção do leitor pela forma como é construído e pela matéria-prima com que trabalha. Anne conta como eram os dias no Anexo Secreto, as angústias, os conflitos, as perplexidades, tristezas, pequenas alegrias, esperanças e o medo sempre à espreita.

O texto surge como exercício de liberdade (a única possível naquelas condições) e resistência num ambiente absolutamente adverso. O confinamento de mais de dois anos num espaço pequeno, a convivência difícil de pessoas fragilizadas física e psiquicamente, o cerceamento da individualidade e dos sonhos, o desespero, a ausência dos direitos mais elementares, tudo isso faz do diário um documento único.

O testemunho de Anne Frank conta uma história que jamais poderá ser esquecida. Vale para todos nós. O nazismo continua atuante, seja através de organizações clandestinas, seja em coisas como o racismo e o ódio aos direitos humanos. Existem os que acreditam na superioridade de algumas pessoas, nações e culturas em relação às outras. Esse tipo de gente acha que os 'inferiores' precisam ser submetidos a qualquer custo. Contra essa barbárie aniquiladora do outro precisamos ficar atentos.

A palavra de Anne Frank, no seu apelo à dignidade da vida em contraste com a brutalidade diabólica e insana do totalitarismo, nos ajuda a refletir e a nos posicionar. E, sobretudo, a não esquecer.

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* O Diário de Anne Frank, tradução do inglês para o português de Ivanir Alves Calado, Edições BestBolso, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2010.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A rua antiga me atravessa

Jorge Adelar Finatto


Colonia del Sacramento, Uruguai. photo: j.finatto


A vida se esconde na rua antiga.
A saudade mora aqui desde antes do mundo ser inventado.
Os passos dos habitantes se ouvem na longínqua estrela.
Quem nos vê, quem nos vale nesse labirinto?
A vida inteira no postigo.
Tantas coisas eu sonho.
Tantas coisas eu sinto.
As pedras da rua antiga são diamantes do oblívio.
O tempo nela escorre feito lágrima.
Ninguém vê essa cicatriz aberta na face do planeta.
Calado observador do fim do mundo.
A rua antiga me atravessa.

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Do livro Calado Observador do fim do mundo, Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2010.