sexta-feira, 18 de maio de 2012

Um mundo invisível

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto



O inconsciente é como o fundo de certos rios.

Sob a tênue linha que o protege do mundo, existe um espaço habitado, povoado de seres, histórias, descobertas, sentimentos. Há lugares ocos também, medos do escuro, sonhos que não viram a luz do sol.

Somos filhos da claridade atravessando a sombra.

Não existe outra saída além de abrir as janelas para a aurora entrar, tirar a casa da escuridão. Raízes profundas nos ligam ao intangível.

Aqui um riacho com água corrente, seixos, vozes; ali o pássaro, uma borboleta; adiante um pinheiro, um plátano, depois uma ponte de pedra. Depois, a névoa.

Magnólias e buganvílias habitam o jardim.

O passado imóvel, o tempo amarelecido nos retratos. 

A lágrima quente verte no escuro.

Como o fundo de certos rios, carregamos tesouros secretos, peixes vivos. Andorinhas cruzam a altura dos penhascos submersos.

A luminosidade oblíqua clareia o recanto onde o menino sonha.

Não há escuridão indevassável. O medo da travessia é só um breve instante.

A palavra salva o que ficou calado no porão.

Nunca se esquece o vento esculpindo a dura face do basalto. Nunca se olvida a partida da cidade pequena.

No alforje do coração, todos os que ficaram caídos no alçapão do oblívio. 

Entre ruínas procuramos o menino que respira sob destroços.

Esse que a tortuosa estrada jogou na cidade grande. Esse que perambulou por ruas mortas, entre desvalidos, que habitou quartos fétidos e sinistros, em longas noites de espera.

É preciso acolher o menino que se levantou da noite fascista, esse que pensávamos afundado no esquecimento.

Um círculo de luz ilumina a sombra da sala.

O presente é infinito, gosto de nuvem na boca, porcelana côncava azul acima da cidade e seu cais.

É tarde de outono. O mergulhador sai do fundo do rio. O lampião ainda quente nas mãos.

O caderno escrito com o toco do lápis.

Vida, teu sopro é agora.
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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Um blogue de capa e espada

Jorge Adelar Finatto
 
Guy Williams, como o Zorro
 
 
Um dia desses alguém escreveu que os blogues fazem parte da pré-história da internet. É sempre assim. Quando acho que estou fazendo algo moderno, esse algo ou não existe mais ou saiu de moda. 

Pensando bem, porém, o blogue tem ainda lá seu interesse. Se tiver um conteúdo honesto, pode atrair leitores. Uma apresentação legal também ajuda.

Um leitor imaginário enviou-me um e-mail. Observa que este é um blogue primitivo, não tem filmes, nem sons, nem recursos técnicos que o tornem atrativo. Os textos não comentam fatos do momento nem são de autoajuda.

Tem razão. O que sei fazer, mal e mal, é publicar algumas linhas, em geral acompanhadas de fotos. As matérias tratadas não destacam temas específicos nem obedecem a critérios de atualidade, nascem da subjetividade do autor. No mais, não sei ou não quero fazer outras coisas.

Um autêntico blogue de capa e espada, que acredita na luta do bem contra o mal, da beleza contra a fealdade, do sentimento e do pensamento contra a brutalidade, bem ao estilo do velho e invencível Zorro, interpretado pelo notável ator americano Guy Williams.

As pessoas não vêm aqui para ver as últimas novidades. Uma razão que não alcanço faz com que visitem esta página. De qualquer forma, a presença é um estímulo.

Tenho o hábito do silêncio e aprecio o texto impresso. O notebook, pra mim, é uma velha máquina de escrever com luzinhas. Mas o fato é que escrever no blog tem sido uma boa experiência.

A internet é um território trevoso, pelas armadilhas que esconde. Mas é, sobretudo, uma alternativa democrática, uma porta que se abre para a comunicação e a liberdade de expressão. Como tudo na vida, o que é bom acaba permanecendo, e o ruim desaparece no buraco da própria ruindade que semeia.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Colonia del Sacramento. Uruguai



Hoje, antes de começar a chover, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso me fez pensar que talvez fosse a mudança de um anjo. Um anjo bom e humano com suas asas de perfumadas plumas, levando com ele seu chapéu, suas estantes de livros, bicicleta, cama, armários.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra carregar: cartapácios com registros e fotografias de quem ele protege, cadernos de milagres, álbuns de recordações, aquarelas com paisagens dos campos do Senhor.

As roupas do anjo devem ser brancas como nuvem, inclusive as suas botas.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse mais pra perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui comigo. Se quisesse, podia subir no telhado, sentar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista do mundo.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. Nunca mais nenhum mal vai me acontecer. Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Texto publicado em 10 de dezembro, 2010.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Juiz e réu, encontro extra-autos

Jorge Adelar Finatto


Era quase meia-noite quando saí do consultório do dentista. Tinha viajado cerca de 500 quilômetros até Porto Alegre, dirigindo o valente Monza. Cheguei e fui direto para a consulta.

Na época, 1996, jurisdicionava a vara criminal da comarca de Santo Ângelo, na Região das Missões do Rio Grande do Sul, perto da Argentina. Os compromissos e a grande distância da capital faziam raras essas viagens.

Tinha deixado o carro no estacionamento de um posto de gasolina, do outro lado da rua. Era preciso encher o tanque. Havia apenas um funcionário àquela hora tardia e ele veio me atender. 

Enquanto o veículo abastecia, ele se aproximou e disse que me conhecia. Ah, sim?, de onde - perguntei-lhe.

- O senhor é o juiz que me julgou e me condenou no processo criminal em que fui réu.

Era tarde, uma noite fria de agosto, quase ninguém na rua. Eu não sabia o rumo que aquela conversa ia tomar. Não recordava daquele rosto, por mais que me esforçasse. O homem falava pausadamente.

Não sabia o que dizer, então falei:

- Mas então, como vai a vida? Vejo que estás trabalhando, isso é muito bom.

Impassível, ele limpava o vidro dianteiro. Continuou:

-  Eu andava perdido, tinha problema com drogas, vieram os furtos. O senhor não se lembra de mim. Sabe por que eu não esqueci? Porque me tratou com respeito nas audiências, durante todo o processo. Me tratou com educação. Quando alguém na sala começou a me agredir com palavras, mandou que cessassem as agressões e que todos ficassem calmos. Nunca vou esquecer.

Depois, paguei a gasolina, agradeci o serviço, desejei-lhe sucesso na vida e fui embora.

Este fato me impressionou pelo tipo de percepção que revela. O que mais marcou aquele indivíduo não foi tanto a condenação (talvez esperasse o resultado), mas a maneira como foi tratado no ambiente judicial.

A instrução de processos criminais costuma ser penosa para os acusados e especialmente dolorosa para as vítimas.

O processo é instrumento de realização de justiça e, portanto, de humanização da sociedade. Nele não pode haver espaço para vingança, humilhação, maus-tratos. O que se busca é a aplicação da lei e dos princípios que movem o Direito, visando restaurar a ordem jurídica.

Nesse sentido, o respeito entre todos os envolvidos na relação processual é fundamental.

Para muitos dos que chegam ao Judiciário na condição de réus, em ações penais, a sala de audiência é a escola que faltou lá atrás, infelizmente. O dever mínimo do Estado, em tal situação, é garantir um tratamento digno às pessoas, respeitando cada uma nas suas circunstâncias.

O modo como nos tratamos uns aos outros define o tipo de sociedade em que queremos viver e o país que estamos construindo.

O fato de sentir-se respeitado durante o andamento do processo talvez tenha contribuído para aquele homem refletir e mudar seu comportamento. É o que espero, do fundo do coração.


terça-feira, 8 de maio de 2012

Meu encontro com Walt Whitman

Jorge Adelar Finatto

 photo: Walt Whitman, em 1887 . Autor: George C. Cox.
Fonte: Wikipédia.


O trabalho mudou minha vida de lugar  muitas vezes. Faz muitos anos morei numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. O lugar se resumia a uma igreja católica e outra protestante, duas escolas, um hospital e pouca coisa mais nas ruas e casas. Em volta, a mata. Em certas tardes, eu saía a andar por estradas de chão, solitárias e com aroma silvestre.

Caminhar assim é como andar dentro de si mesmo.

Num dia de sol e frio, eu percorria um desses caminhos. Um córrego prateado corria na margem. Numa curva em frente, entre os altos plátanos que se erguiam nos dois lados da estrada, apareceu um homem. Quando nos cruzamos, ele me cumprimentou, em silêncio, fazendo um gentil aceno de cabeça, que eu retribuí. Ele tinha uma barba branca abundante, uns olhos pequenos muito azuis, o cabelo na altura dos ombros. Usava um chapéu escuro com largas abas, a face um tanto rosada. Vestia um velho casaco, a camisa abotoada até o pescoço. Trazia um livro na mão esquerda.

Eu tive certeza de que se tratava do poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892).

Fiquei orgulhoso e feliz de estar ali, pisando o mesmo chão que o grande Walt.

Seria o espectro do poeta que eu vira? Seria alguém muito parecido?

Encontrei-o em outras duas ocasiões. Como da primeira vez, éramos só nós, a estrada verde, a brisa e o rumor do córrego. Fiquei observando o poeta. Ele entrava num desvio lateral da estrada, subia uns cinquenta metros em direção a uma pequena casa de madeira.

A casa era muito branca e delicada. Sozinha, lá no alto, mostrava cortinas azuis nas janelas abertas, e flores, muitas flores da estação no breve jardim em volta.

Walt entrava pela porta dos fundos e desaparecia.

Uma chaminé de alumínio saía pelo telhado.

Pensei em conversar com o poeta na última vez em que o encontrei. Talvez ele até dissesse alguns versos de Folhas da Relva, sua obra-prima. Mas não. Achei melhor não incomodar. Afinal, os poetas trabalham enquanto caminham em silêncio por estradas de chão.

Um dia chegou a hora de ir embora da cidade pequena.

A vida seguiu, muitos caminhos eu percorri depois. Mas nunca esqueci que, em certas tardes, numa cidadezinha do interior, eu caminhei na mesma estrada por onde andava Walt Whitman.

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Transbordante de Vida
Walt Whitman


Agora, transbordante de vida, sólido, visível,
No ano quarenta de minha existência, no ano oitenta e três dos Estados,
A alguém que viverá dentro de um século, ou em qualquer número de séculos,
A vós, que ainda não haveis nascido, dedico estes cantos, esforço-me por
alcançar-vos.
Quando lerdes, eu que sou agora visível, hei-de ter-me tornado invisível; então sereis vós, denso e visível, quem lerá os meus poemas, quem se esforçará por compreendê-los,
A imaginar quão felizes seríeis se me fora dado estar ao vosso lado e converter-me em vosso camarada;
Que seja, pois, como se eu estivesse. (Não duvideis demasiadamente que não esteja então ao vosso lado).

Poema extraído de O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, coletânea de poemas organizada por Oswaldino Marques, edição bilíngue, Ediouro, tradução de Manuel Ferreira Santos.

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Texto publicado no blog em 17, abril, 2010.

domingo, 6 de maio de 2012

Pintura de outono

Jorge Adelar Finatto

photos: j.finatto. Passo dos Ausentes, Rio Grande do Sul


Um leve sol espalha transparência na viva aquarela.

Caminho entre árvores na pintura da tarde de maio. Sou um traço de luz em composição à beira de um lago.

Faço parte da paisagem que o outono pintou.

Não tenho pressa. Habito a efêmera cena que brilha por um instante e depois se apagará.

A branca borboleta navega pelo ar em seu silencioso voo e atravessa o lago.

A impossível quimera: transcender o transitório, entender o suave movimento das águas, nunca mais sair desta pintura à margem do tempo.

Como a borboleta, sinto que é belo estar vivo nesse momento único, entre a eternidade do céu e o agora do lago. Sim, é belo.

photo: j.finatto


quinta-feira, 3 de maio de 2012

Os buquinistas de Paris

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Catedral Notre-Dame

Jamais me senti solitário nas margens do Sena.*
Ernest Hemingway

Um belo passeio, em Paris, pra quem gosta de livros, é sair a pé pelas margens do Sena. Gosto de começar na altura da Notre-Dame em direção ao Museu do Louvre, com tempo para ir parando nas bancas de livros dos buquinistas (bouquinistes), os conhecidos vendedores de livros usados.

photo: j.finatto

Eles são muitos e estão instalados ao longo dos muros nas margens do rio, com sua cor verde. Dizem que eles estão ali desde o século XVIII.

photo: j.finatto

Os alfarrabistas da beira do Sena fazem parte do cartão-postal da cidade. Seu pequeno comércio de livros velhos, cartazes e souvenirs habita a paisagem parisiense e se apresenta ao olhar atento ou distraído de qualquer pessoa, nativo ou turista. Em geral são gentis e há entre eles alguns que gostam de uma conversa à toa, dessas que fazem a gente se sentir em casa.

photo: j.finatto

O que se procura no buquinista? Ora, vamos ali buquinar, verbo que, no Aurélio, significa procurar livros em sebo, catar obras literárias. Uma busca que, às vezes, rende preciosidades. Um bouquin (livro) raro, talvez.

photo: j.finatto


Numa caixa encontrei e adquiri um pequeno e encantador exemplar do livro Une Saison en Enfer (Uma estação no inferno), de Arthur Rimbaud, publicado em 10 de fevereiro de 1945, pela Mercure de France, trigésima primeira edição. As 90 páginas estão já um tanto amarelecidas, mas em bom estado. A capa está coberta por um delicado e fino plástico incolor. O antigo proprietário tinha um carinho especial pelo volume. Um achado.

photo: j.finatto

Vale a pena passar uma tarde na beira do Sena, sem pressa, intercalando o passeio com um cappuccino e uma baguete, na mesa de um aconchegante café, na calçada de preferência, se não fizer muito frio.

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*Paris é uma festa. Ernest Hemingway. Tradução de Ênio Silveira. Editora Bertrand Brasil, 15ª edição, 2011, Rio de Janeiro.