sábado, 23 de junho de 2012

Cartas a um jovem poeta

Jorge Adelar Finatto

photo de Rilke, 1900.Fonte: Wikipédia.

"As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. " ¹

Dois livros do poeta Rainer Maria Rilke (Praga, na época Áustria-Hungria, 4/12/ 1875 - Valmont, Suíça, 29/12/1926) marcaram para sempre a minha sensibilidade. São eles Cartas a um jovem poeta e Elegias de Duíno.

Rilke foi um escritor vigoroso, trabalhador, solitário e paciente, que experimentou, em toda profundidade, as dificuldades e alegrias do ofício de escrever. Construiu uma das obras mais importantes da literatura em língua alemã. Seu legado é universal e atrai leitores em todos os lugares do planeta.

Para ele, nada mais estranho ao universo da poesia e da criação do que a busca por notoriedade, a sede insaciável de autopromoção, o culto despudorado do próprio umbigo. Isto não produz a verdadeira obra de arte, mas a massa informe e pretensiosa de objetos que apenas simulam uma aproximação com o ato criador.

Para Rilke, que considerava indispensáveis a Bíblia e os livros do poeta e escritor dinamarquês Jens Peter  Jacobsen, é necessário mergulhar na introspecção e no silêncio como alguém que vê, sente e nomeia o mundo pela primeira vez.

Nessas breves linhas, quero me deter um pouco em Cartas a um jovem poeta. É um livro composto por dez cartas que enviou, entre 1903 e 1908, ao jovem poeta Franz Xaver Kappus, que lhe pediu conselhos. Ao invés de deter-se na análise crítica dos textos - a que era avesso - procurou abordar questões concernentes à formação do indivíduo, ao mergulho na condição humana, ao convívio com a própria e irrenunciável solidão na busca de respostas.

assinatura do poeta

Diz-nos o autor:

"O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação."²

É um livro que se destina não apenas a pessoas que se interessam por poesia e literatura. Fala da vida em sua dimensão mais secreta e profunda, fala de circunspecção para tentar entender as coisas do mundo, os outros, para compreender melhor a si mesmo e talvez criar.

Não se trata de um professor que fala ao aprendiz, mas de um ser humano sensível que se dirige a outro e compartilha o que reuniu de melhor, de forma humilde e sincera.

As reflexões de Rilke sobre o fazer literário são preciosas: escrever só quando sentir necessidade, não dar muita atenção à opinião da crítica, evitar assuntos sentimentais, cuidar da linguagem, voltar-se para seu interior, sem deixar de observar o ambiente no qual se vive.

Mas não há receitas. Cada um faz o próprio caminho, é o que nos ensina o poeta.

Nestes tempos em que tudo tem sua expressão medida pelo valor comercial e midiático, a palavra de Rilke continua viva e fecunda, mostrando-nos que pode haver algo além da vaidade estéril e do entretenimento barato:

"A arte também é apenas uma maneira de viver. A gente pode preparar-se para ela sem o saber, vivendo de qualquer forma. Em tudo o que é verdadeiro, está-se mais perto dela do que nas falsas profissões meio-artísticas. Estas, dando a ilusão de uma proximidade da arte, praticamente negam e atacam a existência de qualquer arte. Assim o faz, mais ou menos, todo o jornalismo, quase toda a crítica e três quartos daquilo que se chama e se quer chamar literatura."³

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¹Cartas a um jovem poeta. Rainer Maria Rilke. Tradução de Paulo Rónai. Editora Globo, Porto Alegre, 1978, pág. 21.
² Idem, pág. 55.
³ Idem, págs. 75/76.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

La vieja de atrás (A velha dos fundos)

O Cavaleiro da Bandana Escarlate

Marcelo e Rosa

Está em cartaz em Porto Alegre La vieja de atrás (A velha dos fundos), um belo filme argentino (mais um). Um trabalho delicado, que trata de solidão, anonimato, dificuldade de fazer amigos na grande cidade e, também, de solidariedade. Um filme que enche o coração e faz pensar. O comentário a seguir escrevi no blogue em 10 de agosto de 2010, logo após assistir a sua exibição no Festival de Cinema de Gramado daquele ano. Revi agora o filme e continuo achando que vale muito a pena.

Seres devastados por uma irremediável solidão. A incomunicabilidade das pessoas em suas vidas pequenas e sofridas. As difíceis relações de afeto num mundo em que não se para para olhar e sentir o outro. A busca dolorosa, às vezes desesperada, de alguém para compartilhar a vida e amenizar o deserto.

La Vieja de Atrás (A Velha dos Fundos), dirigido por Pablo Meza, que também assina o roteiro, foi exibido no Festival de Gramado, na noite de domingo (o8/08/2010). É mais um bom exemplo do tipo de cinema que se faz hoje na Argentina. Um filme que apanha o indivíduo no ato difícil de viver,  que se preocupa em desvelar a vida interior dos personagens, com os pensamentos e sentimentos que os movem e lhes dão uma face.

Rosa (atriz Adriana Aizenberg) é uma velha senhora, na volta dos oitentanos, viúva há muito tempo, sem filhos, que vive sozinha num pequeno e obscuro apartamento numa rua movimentada de Buenos Aires. Marcelo (ator Martín Piroyansky) é um jovem tímido, vindo do interior, de la pampa, para estudar medicina na capital. De família pobre, sobrevive de fazer biscates, como distribuir papéis com anúncios, de mão em mão, pela calçada. Até que o dinheiro de Marcelo acaba e ele não consegue mais pagar o aluguel do apartamento em que mora, localizado no mesmo andar que o de Rosa. Um belo dia entram no elevador, que em seguida tranca. São obrigados a conversar, olhar-se. Rosa interessa-se em ajudar o rapaz e o convida a morar com ela. O mais que se passa daí em diante é pura condição humana.

Diferentemente de certos filmes brasileiros que tenho visto, em que há uma forte tendência para o documentário naturalista, percebo nos filmes dos vizinhos do Rio da Prata uma "ocupação" sensível e delicada do assunto humano. Não se nega a realidade, mas esta se coloca enquanto cenário ou circunstância na qual os personagens existem e agem como seres pensantes, emocionalmente vivos. Não são meros marionetes manipulados por um destino implacável, supostamente realista.

A impressão que se tem, ao final, é de que Rosa e Marcelo vão sair da tela caminhando em direção à plateia, tal sua verdade emocional e complexidade psicológica. Um belo filme.
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Foto: personagens Marcelo e Rosa. Divulgação (cinema.cineclick.uol.com.br)
O Cavaleiro da Bandana Escarlate é comentarista de cinema do blogue. No momento, prepara a bagagem para a cobertura do 40º Festival de Cinema de Gramado, edição 2012, a realizar-se entre os dias 10 e 18 de agosto próximos.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O cinamomo

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


Existe um edifício na rua Dona Eugênia, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que tem um pequeno jardim na frente. Neste jardim vive um velho cinamomo.

Passei por lá no último sábado, o tempo estava um pouco nublado e frio. Me dirigia à banca de jornal que tem ali perto, onde costumo ir quando estou pela cidade.

Sempre que passo naquele lugar olho para o meu amigo cinamomo. Às vezes me pergunto se ele ainda se lembra de mim. Eu jamais pude esquecê-lo. Morei naquele edifício quando tinha nove, dez anos.

O cinamomo fazia parte das brincadeiras da meninada do prédio e da rua.

Pouca gente sabe - até porque existem hoje poucos cinamomos - mas essa árvore tem minúsculas flores que, na primavera, produzem um dos mais doces e suaves perfumes que conheço.

O meu velho cinamomo está lá, florido, soltando seu perfume em mais uma primavera das nossas vidas. A todos distribui seu aroma generosamente.

De certa forma, somos sobreviventes de um tempo e de um jardim.

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Texto publicado em 27 de setembro, 2010.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Evocação de Rilke

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Quem tomará a minha mão
na noite de vermes
quando o asco me derruba
feito cão pela esquina

quem de coração amigo
chegará para beber a gota
de ternura estrangulada

quem me chamará de irmão
na dor imensa
quando o medo me acerta
com suas espadas de fogo


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Poema do livro Claridade, Jorge A. Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.

sábado, 16 de junho de 2012

Uma viagem sentimental

Jorge Adelar Finatto



Possuo uma pequena coleção de discos de vinil. Estão comigo há muito tempo. Entre eles, alguns que considero preciosos: Homage to Erik Satie, Erik Satie, The Utah Symphony Orchestra, 1968; Urubu, Tom Jobim, 1976; Chet on poetry, Chet Baker, 1989.

Fazia mais ou menos vinte anos que esses discos estavam calados. Com a invenção do cd, o vinil quase virou peça de museu. Os toca-discos não foram mais fabricados e certos componentes, como agulhas, também não.

A simplicidade da nova tecnologia e as dificuldades de manter o antigo sistema de som levaram-no ao desuso. Acabei me desfazendo do antigo equipamento. Uma razão afetiva, porém, fez com que guardasse os discos. 

Agora, eles estão de volta. E a boa notícia é que estão fabricando outra vez os toca-discos. Os valores, por enquanto, ainda são elevados.

A saudade de escutar os velhos discos me levou a garimpar, até encontrar, um desses novos aparelhos a um preço razoável. Tem a forma de um gramofone, com a trompa que projeta o som no ar. Uma coisa bonita que permite ouvir os registros sonoros como foram concebidos.

Chet on poetry tem para mim um apelo especial. Me leva a reencontrar, como da primeira vez, a voz cálida, sofrida e quase sumida de Chet Baker e seu trompete, instrumento que com ele ganhou um novo significado.

Além de tocar e cantar de modo intimista, como alguém que nos conta um segredo, ouvimos Chet dizendo poemas, sim, belos e tocantes versos que nos levam a uma viagem sentimental por sua alma devastada e, ao mesmo tempo, povoada de delicadeza.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Pessoa plural


foto: Fernando Pessoa. Casa Fernando Pessoa


Pessoa Plural é uma revista académica internacional, dedicada a estudos sobre Fernando Pessoa, editada pelo Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros de Brown, pelo Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Utrecht e pelo Departamento de Humanidades e Literatura da Universidad de los Andes.

Está aberta à publicação de ensaios e documentos e a recensões críticas. Estas últimas são solicitadas. Após uma avaliação inicial da pertinência dos textos submetidos, os directores iniciarão o processo de arbitragem duplamente anónima comum em revistas congéneres.

A revista tem como objectivo a publicação dos melhores estudos sobre Fernando Pessoa, independentemente de qualquer perspectiva teórica, metodológica ou ideológica.

Eis o acesso à publicação virtual:

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Eugénio de Andrade

Jorge Adelar Finatto


Na vida, ter talento só não basta, é preciso trabalhar muito para chegar a algum lugar. Muitos talentos se perdem, nas mais diversas atividades, por falta de entrega e persistência.

Existe um poeta pouco conhecido no Brasil, que é dos grandes que temos na língua portuguesa: Eugénio de Andrade. Nasceu em 19 de janeiro de 1923, em Póvoa de Atalaia, centro de Portugal, e morreu em 13 de junho de 2005, na cidade do Porto, onde hoje existe a fundação que leva seu nome.

Lê-se pouca poesia no Brasil e no mundo, de modo geral. Os tempos são duros. A poesia é o gênero literário que pede um leitor sensível, atento à beleza da palavra e da composição no seu grau mais elevado de elaboração (o poema), e, sobretudo, um leitor dotado de espiritualidade.

Um brutamontes dificilmente terá afeto pela poesia.

Eugénio de Andrade é um belo poeta. Lida com o poema de forma rigorosa e, ao mesmo tempo, com notável simplicidade. A simplicidade que só os mestres alcançam como resultado da dedicação cotidiana e obstinada ao trabalho da escrita.

Na vida, ter talento só não basta, é preciso trabalhar muito para chegar a algum resultado. Muitos talentos se perdem, nas mais diversas atividades, por falta de entrega e persistência.

A poesia de Eugénio de Andrade nos traz emoção e esperança. Como nestes dois poemas.

O SORRISO

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

A obra do poeta é rara. Para melhor conhecê-la é interessante uma visita ao site da Fundação Eugénio de Andrade¹ e, claro, a leitura de seus livros.

Entre nós, onde Eugénio, infelizmente, é quase desconhecido, existe a antologia Poemas de Eugénio de Andrade², que oferece uma boa visão do conjunto de sua obra.

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¹Fotos e poemas de Eugénio de Andrade reproduzidos do site da Fundação Eugénio de Andrade:
http://www.fundacaoeugenioandrade.pt/
² Poemas de Eugénio de Andrade, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999.
Texto publicado em 18 de maio, 2011.