domingo, 3 de março de 2013

Relâmpago Basquiat*


Jean-Michel Basquiat, sem título, 1981.
Direitos: The estate of Jean-Michel Basquiat.


*Texto do escritor espanhol Antonio Muñoz Molina, publicado no caderno Cultura do jornal El País, nesse sábado, sobre Jean-Michel Basquiat:

http://cultura.elpais.com/autor/antonio_munoz_molina/a/

sábado, 2 de março de 2013

Um amor

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


La speranza di pure rivederti
m'abbandonava.
                         Eugenio Montale


No mais remoto deserto
- o sal e o labirinto do tempo
amadureço o poema

E parece que para encontrar-te
tinha de perder-te um dia

Colho no caminho as pétalas
da rosa que não te dei
e distraída desfolhaste


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Poema do livro O Fazedor de Auroras, JAFinatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990
A esperança de ver você de novo me abandonava, tradução livre do verso de Montale.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Peixe vivo

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto. Rio Guaíba
 

Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.

Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.

Esse tempo ficou adormecido como um pôr-do-sol no fundo do rio.

O tempo era noite calada.

A ditadura maltratava os corpos e o pensamento, a livre circulação da emoção, das idéias. Manchava com tarjas pretas a verdade nas bocas e nos jornais.

Mas havia gente que não desistia.

Os pássaros resistiam na praça.

Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.

Eu trazia na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.

Existia um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros, uma saia azul adolescente. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz. Habitavam um lugar claro na escuridão.

O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.

Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.

Havia aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos, do medo.
 
Coração aberto, peixe vivo.

O azul e branco do céu desenhado nas águas e naqueles olhos.

Um peixe voava entre as nuvens. Perdoai.

Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na ilha de pedra enquanto a cidade dormia.

Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.

A luz amarela do sol escorria entre as folhas e os galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases habitavam as flores dos jacarandás.

Havia uma promessa de primavera. Eu tinha menos de 20 anos.

De passo em passo o tempo se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.

Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.

O coração colado à esperança.

Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte de mar, o líquido azul infinito.
 
O sentimento navegava ao largo da cidade, seus medos e seus mortos.

O tempo era noite calada.

Tinha menos de 20 anos, a vida saltava feito peixe vivo.

A estrela brilhava em meu caminho. Perdoai.
 
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Texto publicado em 22 de dezembro, 2009 (primeiro texto do blog).
 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A hora do beija-flor

Jorge Adelar Finatto

beija-flor com névoa. photo: j.finatto
 
Observando com atenção, há um beija-flor na ponta do ramo de magnólia. Ele está pousado no galho pensador, os olhos semicerrados, pensando na sua vidinha. Um momento de pausa no seu dia. Ninguém é de ferro.

Há de ter lá os seus compromissos o beija-flor, uma casa pra voltar, filhos pra criar, contas a pagar, preocupações de quem vive neste mundo difícil.

Mas nesse momento ele precisa ficar sozinho e em silêncio. Precisa disso pra saber quem ele é. Porque, às vezes, na dura faina da sobrevivência, a gente esquece quem é.

A nossa face perde-se na multidão. Um estranho passa a viver através de nós.

Na maior parte da vida cumprimos deveres, tarefas, horários, saímos e chegamos apressados, dormimos sonos interrompidos por relógios e pesadelos, sonhamos um sonho alheio, corremos todo o tempo até a exaustão, e agradecemos por não perder o emprego nem levar um tiro.

Austeras solidões nos habitam. Rígidos papéis nos aguardam todos os dias, implacáveis, inadiáveis.

O mundo espera que ponhamos a máscara de granito ao nascer e não a retiremos nunca mais. Haja Deus!
 
No caso do beija-flor, querem que ele seja sempre e eternamente a mesma ave descrita nos manuais: apodiforme, penas pequenas, úmero robusto e cúbito curto, que se alimenta do néctar das flores e de insetos minúsculos. Igual a milhões de outros beija-flores que vivem no planeta, também conhecidos por nomes estranhos como binga, chupa-flor, chupa-mel, cuitelo, guainumbi, pica-flor. E por aí.

O beija-flor personagem deste texto tem vida interior, seus próprios sonhos e pensamentos, não quer ser igual a nenhum outro existente no mundo.

No fundo, é um poeta o nosso beija-flor. Passa o dia procurando quintais, praças e jardins, não só para alimentar-se, mas para fugir dos predadores e da loucura das pessoas, e para ter um momentozinho de contemplação.

Sim, a nossa pequena ave interioriza-se para poder melhor observar as coisas e os seres, senti-los, talvez escrever alguma coisa.
 
Agora, calado e enovelado em si mesmo, no repousante galho da magnólia, o que o beija-flor quer é ficar só, distante, tentando reunir os fragmentos, reconstruir-se com o que sobrou (se é que ainda existem asas e cores suficientes do pássaro que um dia ele foi), longe dos olhares intrujões, das mesquinharias cotidianas e do fotógrafo abelhudo.

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Heráclito e o espelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/heraclito-e-o-espelho.html
Texto revisto, publicado antes em 27 de fevereiro, 2013.
 

Série Retratos 11




 
 
 
 
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photo: Jorge A. Finatto
Cais da cidade de Rio Grande
Clique sobre a imagem
Pedidos de cópia ou reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail j.finatto@terra.com.br
 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Um poeta chamado Antônio Carlos Arbo

Carlos Alberto de Souza


Antônio Carlos Arbo. photo: acervo da família
 
 
O mistério dos quintais
 
Existe um mistério
No fundo dos quintais!
Ainda mais
Nos quintais
De casas muito antigas...
Deve ser a alma da infância
Que ficou presa ali
- qual balão cativo -
Esvoaçante no tempo...

Nascido em Palmeira das Missões em 1935, o menino cresceu no velho casarão que abrigou seus pais e avós. Ginasiano, estudou em Cruz Alta e Passo Fundo; no Clássico já estava em Porto Alegre, onde avançou para as Artes Dramáticas, na UFRGS. Foi editor de texto da Cia. Cinematográfica Wilkens Filmes. O percurso revela tratar-se de um homem em busca de realização, dotado de sensibilidade, ligado às letras.
Antônio Carlos Arbo radicou-se em Santa Maria em 1965. Realizou o sonho de trabalhar na então recém-fundada UFSM. Depois de passar por vários setores, fixou-se como jornalista da instituição. Atuou na Rádio Universidade e paralelamente na TV Imembuí. Já casado com a sua Yolanda, teve os filhos Negendre, Dimítri e Marjoleine. Quando na adolescência os filhos homens formaram o Quintal de Clorofila, compunha com eles, exímios instrumentistas.
Mudanças de casa também servem para encontrar perdidos que são um achado.

Eis que recupero, depois de muitos anos, Tempoema (Imprensa Universitária – UFSM – 1979), livro de Antônio Carlos Arbo, com uma dedicatória: “Uma lembrança do primo e colega de profissão, 19-03-80”.

Não lembro o ano em que, ainda jovem para os padrões atuais, Antônio Carlos morreu. Penso em investigar. Desisto. Faz de conta que ele ainda vive. E de fato vive nas coisas belas que legou, como, por exemplo, O mistério dos quintais (dedicado a Mario Quintana) e A viagem.

A viagem

O pó levanta dos meus passos
Sem destino,
Do andar, andar, no quarto quente.
O calor podre desprende um ar
Viscoso e irrespirável,
Como o fundo de um lago de petróleo...
E as malas estão ali,
Recebendo o pó de minhas viagens
Circulares ao redor de mim mesmo.
Elas foram feitas para partir
Mas estão ali
Inertes à espera do viajor.
Somente os passos viajam
E o pó levanta no quarto quente,
Enquanto o tempo viaja nos meus passos.

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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br 
(A voz de Antônio Carlos Arbo recitando O mistério dos quintais:
http://www.youtube.com/watch?v=-aoYBcJrGWk)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Os direitos humanos em Cuba

Jorge Adelar Finatto
 
 
Yoani Sánchez. Fonte:Wikipédia
 

As ditaduras são feitas de cadáveres e prisões. Não existe a figura do bom ditador.

Sejam de direita ou de esquerda, ditaduras são igualmente infernais. As pessoas da minha geração, que sofreram na pele a falta de liberdade e de perspectivas durante o período ditatorial brasileiro, sabem o que isso significa.
 
Depois de muitas e frustradas tentativas, a filóloga, jornalista e blogueira cubana Yoani Sánchez, nascida em 4 de setembro de 1975, conseguiu autorização para viajar para fora do seu país. Chegou ao Brasil há alguns dias, o primeiro país que visita.
 
Yoani é alguém com coragem para criticar o sistema político e social em seu país. Criou, em 2007, o blog Generación Y. Por conta disso, é perseguida. Não é inimiga de Cuba, pelo contrário. Quer mudanças, quer mais participação do povo e melhores condições de vida. Deseja, enfim, o que qualquer pessoa razoável sonha: uma existência melhor para todos.
 
O tratamento agressivo que Yoani vem recebendo no Brasil, por parte de alguns defensores do regime ditatorial cubano, é desrespeitoso não apenas com ela como em relação à sociedade brasileira, que não aceita o cerceamento à liberdade de expressão.

A visita da jornalista tem sido marcada por manifestações antidemocráticas e grosseiras contra ela, por parte dessa minoria extremista que nem de longe representa o povo brasileiro, por "ousar" criticar o regime.

Os irmãos Fidel Castro Ruz, ex-presidente, e Raúl Castro Ruz, atual líder político de Cuba, não se mostram dispostos a permitir a democratização e nem a rever a forma de tratar os opositores do regime de partido único (Partido Comunista de Cuba).

A Revolução Cubana, vitoriosa em 1959, liderada por gente como Fidel Castro e Ernesto "Che" Guevara, combateu a ditadura do general Fulgencio Batista, que, entre outras violências, tratava com brutalidade os inimigos políticos.

Uma vez no poder, os dirigentes cubanos repetem a intolerância contra os adversários.

Informações divulgadas ao longo das últimas décadas mostram que a revolução trouxe avanços, principalmente em áreas como educação e saúde. É um país pequeno, que tem hoje cerca de 12 milhões de habitantes.

O embargo econômico imposto pelos Estados Unidos só tem colaborado para a falta de avanços sociais e políticos em Cuba. A posição americana é um obstáculo ao fim da ditadura e fortalece o discurso persecutório dos governantes. Yoani, por sinal, é contra o embargo.

Fidel Castro, seu irmão e sequazes cometem o erro essencial de todos os ditadores: acham-se insubstituíveis, e não admitem a transição democrática do poder. Consideram-se melhores e mais preparados do que todos os outros cidadãos e só eles sabem o que é bom para o país.

O governo que se diz revolucionário não reconhece a existência de perseguições por razões de consciência e afirma que o que há são mercenários a serviço dos Estados Unidos, alegação que não convence a mais ninguém.

O que se pergunta é quantas prisões e até mortes serão ainda necessárias para que se estabeleçam o diálogo e o respeito aos que pensam diferente do governo em Cuba.

É uma violência aos direitos humanos um mesmo grupo manter-se no poder por tanto tempo, afastando a população da democracia, negando-lhe direitos políticos e condenando gerações ao silêncio e ao atraso.

Não existe justificativa, do ponto de vista ético, político e humano, para essa eternização, que só é possível mediante a eliminação da liberdade e, às vezes, da própria vida de quem é contrário ao sistema.

O que se espera do governo brasileiro é uma posição firme e clara contra a falta de democracia naquele país e contra a perseguição movida aos que se manifestam por mudanças.
 
É incompreensível e inaceitável o longo e pesado silêncio das autoridades brasileiras em relação aos direitos humanos e à escuridão política em Cuba.
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A blogueira cubana e o blog do juiz:
http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2013/02/24/a-blogueira-cubana-e-o-blog-do-juiz/

O testemunho dos livros:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/o-testemunho-dos-livros.html

Generación Y:
http://www.desdecuba.com/generaciony/

De Cuba, com carinho (livro de Yoani Sánchez):
http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/707897-em-de-cuba-com-carinho-yoani-sanchez-questiona-ideologias-latino-americanas.shtml

A arte de ser juiz:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/07/arte-de-ser-juiz.html

jfinatto@terra.com.br