sexta-feira, 29 de março de 2013

A princesa africana

Jorge Adelar Finatto

Princesa africana. Escultura em basalto
de João Bez Batti Filho
photo: j.finatto.


O escultor Bez Batti pediu-me certa vez para dar nomes (sugestão de nomes) a algumas de suas esculturas. Confiou-me a honrosa tarefa numa das minhas visitas a seu ateliê nos Caminhos de Pedra, interior de Bento Gonçalves, na Serra gaúcha. Em breve haveria uma exposição de suas obras em Porto Alegre.
 
Gosto de dar nomes às coisas. A começar pelos títulos de textos e livros (poucos). Mas é árdua a missão de nomear. Tem a ver com penetrar na alma do objeto. É preciso querer descobri-la, e entendê-la com sentimento (a só razão, neste caso, não leva a lugar nenhum).
 
O escritor é, a seu modo, um escultor de palavras, trabalha uma a uma, até que ganhem uma estrutura de texto capaz de provocar emoção. Escrever e esculpir exigem grande dose de paciência, humildade e persistência.

Dar um nome, enfim, é assunto de responsa. O nome jamais pode diminuir o ser ou a coisa nomeada.


photo: j.finatto
 
A uma das esculturas dei o nome de Princesa africana. Era uma linda cabeça de mulher negra com vistoso turbante. Uma obra construída em basalto sangüíneo, extraído do Arroio Tega.
 
No dia da inauguração da exposição, fui disposto a adquiri-la, pois a princesa conquistara meu coração desde o momento em que a vi pela primeira vez. Havia nela um significado ancestral para mim, um retorno à beira do Arroio Tega, onde nasci, e à mãe África.
 
O Tega da minha infância corria pela montanha, atravessava pinheirais, divagava entre casas de madeira. Na sua margem, mulheres lavavam trouxas de roupa que nunca terminavam. A nossa casa ficava a poucos metros de seu curso. Do meu quarto eu podia ouvir o rumor do Tega em sua louca ânsia de conquistar o mundo. Conhecia-lhe o cheiro e os céus azuis que trazia espelhados dentro de si.
 
Bez Batti, além de encantador de pedras (conforme já foi chamado com sabedoria), é estudioso de geologia. Disse-me que no leito do Tega repousa a única jazida de basalto sangüíneo de que se tem notícia. No cerne da rocha cascuda e impenetrável (trabalhado pelo cinzel na mão firme e talentosa do artista), dorme o belo minério cor de vinho, vermelho-coração, originado de imemoriais derramamentos vulcânicos, descoberto por Bez Batti.

João Bez Batti Filho. photo: Divulgação RBS-TV
 
Mas então eu cheguei à exposição para buscar a minha Princesa africana. Ocorre que diante dela já havia uma placa indicando que fora vendida. Por alguns minutos, perdi-a. Perder faz parte da vida, mas desistir de um sonho ninguém deve.

Encomendei ao escultor uma outra princesa africana. Passaram-se uns dois anos e nada. Achei até que ele tinha esquecido, tal o volume de pedidos que seu ateliê recebe.

Mas Bez Batti não é homem de esquecer um sonho. Em fevereiro último voltei aos Caminhos de Pedra para buscar a minha Princesa africana, bela e altiva, em fino basalto negro. Está aqui em casa comigo. Valeu a pena esperar.

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* Bez Batti, o homem que tira sentimento de pedra:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/10/o-homem-que-tira-sentimento-de-pedra.html
 

quinta-feira, 28 de março de 2013

Série Retratos 15 (Adeus a uma gaivota)





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photo: Jorge A. Finatto
Rio Guaíba, Porto Alegre
A gaivota está no ponto mais alto do barco
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail

quarta-feira, 27 de março de 2013

Visão

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: Rio Guaíba. j.finatto
 
 
Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega
 
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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Lugar da photo: Veleiros do Sul, Porto Alegre.
 

segunda-feira, 25 de março de 2013

Recuerdo do rio Uruguai

Jorge Adelar Finatto

Rio Uruguai. photo: Wikipédia



 
 
A recordação mais antiga que eu tenho de um rio é do rio Uruguai. Por algum motivo que desconheço, meus avós - com quem vivia - foram morar na cidade de São Borja, na fronteira com a Argentina, quando eu tinha dois anos.
 
O rio Uruguai corria (e corre ainda) largo e murmurante em São Borja, mais unindo que separando o Brasil da Argentina.
 
Recordo que aquela foi a primeira vez que viajei de avião. Tenho a longínqua lembrança de olhar através de uma janela redonda. Estava no colo da avó.

Partimos da Serra para o ancestral território das Missões Jesuítico-Guaranis. São Borja foi um dos povos missioneiros. Moramos por lá cerca de dois anos e depois regressamos às montanhas.

Lembro-me muito vagamente de passeios ao rio, onde as pessoas faziam piqueniques e tomavam banho na praia. Na beira do Uruguai havia conchas e pedras, em meio à areia e vegetação. 
 
Luminosos dias missioneiros, ao menos para o menino que nada sabia de coisa nenhuma. Tenho uma foto de época vestindo pala, bota, chapéu e bombacha. Acho que foi a única vez na vida que usei indumentária de gaúcho (com muito garbo, diga-se de passagem...).

O tempo passa num doido galope.
 
Com os cacos da felicidade de um dia, a gente vai compondo um vaso de rara porcelana que, por falta de peças, nunca se completa. Mas o rio Uruguai está desenhado com sua cor, sua luz e seu som no mosaico daquele tempo feliz. 
 

sábado, 23 de março de 2013

Somos todos de uma distante galáxia

Jorge Adelar Finatto
 
Imagem da galáxia espiral NGC 1637, divulgada nesta semana.*


A idéia de que alguém na Islândia ou na galáxia espiral NGC 1637, a cerca de 35 milhões de anos-luz da Terra, na constelação do Rio Erídano, pode estar lendo estas linhas dá o que pensar. Revela também o poder da palavra na internet, capaz de estreitar distâncias, suavizar o tempo e mitigar solidões.

Se é verdade que somos todos estrangeiros neste inóspito universo, resta ao menos a esperança de encontrar pelo caminho pessoas para partilhar a vida, tornando a viagem menos árdua e solitária.

Escrever num blog, raro leitor, é como escrever em direção a uma nuvem de estrelas. Ninguém sabe no que vai dar. 

A palavra impressa passa o sentimento físico de permanência, ao contrário do ciberespaço, no qual domina a sensação de extrema fugacidade.

Estamos acostumados a pensar no papel como se nele a palavra estivesse a salvo do tempo, do desaparecimento.

Mas a impressão de perenidade é uma quimera.

A imensa maioria dos livros está condenada ao esquecimento por falta de leitores. Sobrevivem fisicamente nas estantes, mas é uma existência sem brilho. Na verdade, vivem no escuro. A luz não ilumina suas páginas fechadas.

Só está vivo o texto, virtual ou impresso, quando encontra um leitor que o acolhe e retira da escuridão.

O resto é poeira e sombra na biblioteca (ou na tela do computador).

O blog é uma esquina onde amigos invisíveis se encontram pra conversar. Um meio de comunicação aberto a todos, lugar de partilha, região de claridades.
 
Escrever na nuvem, portanto, é uma maneira de resistir. Uma ilusão quem sabe, mas ajuda a viver.

Estou falando essas coisas talvez porque é madrugada de sábado, faz muito frio lá fora e eu olho para o céu limpo deste início de outono, tentando descobrir uma janela aberta na NGC 1637.
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*Imagem produzida e divulgada pelos astrônomos do Observatório Europeu do Sul, no norte do Chile, nessa 4ª feira, 20 de março.
 

sexta-feira, 22 de março de 2013

Série Retratos 14 (Outono, outonos)







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photo: Jorge A. Finatto
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail
 

quinta-feira, 21 de março de 2013

O bandoneón de Jorge de la Brume

Jorge Adelar Finatto 
 
bandoneón. fonte: Wikipédia
 

No fundo da cegueira pode haver muita luz. Foi o que pensei enquanto ouvia Juan Niebla tocar Adiós, Nonino, de Piazzolla, no seu velho bandoneón argentino. Perguntei-lhe de onde vinha a afinidade com o instrumento.

Isso foi ontem, quarta-feira, primeiro dia do outono, chuvoso e gelado outono. Ficamos na mesa com vista para o Vale do Olhar, no Café da Ausência, que fica na estação de trem. Conversamos até o entardecer. Conversa regada a bule de café preto com pão torrado passado em geléias de laranja, framboesa, figo e uva.
 
Disse ele que três anos depois de tornar-se músico da cidade, por concurso público, e assumir o posto na estação de trem, recebeu um convite. A jovem e bela viúva Alberta de Montecalvino pediu que fosse com ela a Buenos Aires.

A Dama da Biblioteca queria companhia para visitar a capital portenha, onde tinha um encontro marcado com um certo senhor Jorge De La Brume, com quem se correspondia há alguns anos.
 
- Acontece - afirmou Niebla, acomodado dentro do grosso capote azul-marinho - acontece que a intimidade dos missivistas transbordou das cartas para a vida. Alberta e este senhor descobriram que havia entre eles um mundo de coisas em comum, que não se resumia ao interesse pelos livros.

- O senhor De La Brume, que era escritor, teve a iniciativa do encontro. Mas havia um entrementes. Ele era cego, não podia viajar sozinho até Passo dos Ausentes para conhecê-la.

Continuou Niebla:
 
- Ele tinha muita vontade de conhecer Passo dos Ausentes, a cidade do fim do mundo, de que já ouvira falar. Ficou interessadíssimo nas histórias que Alberta contava nas cartas. Chamou-lhe especialmente a atenção o caso dos espelhos espirituais. (Nossos espelhos não refletem a imagem da pessoa, mas sim seus sentimentos.)
 
- O ano era 1956. Tirei férias, pegamos o trem e iniciamos a longa viagem ferroviária que durou oito dias até Buenos Aires, com várias baldeações pelo caminho.

- Numa terça-feira, Alberta e eu fomos, enfim, ao apartamento onde o escritor residia na companhia da mãe, uma senhora mui gentil. Então conversamos muito, De La Brume e eu, conversa de cegos.

- Alberta ficou numa outra sala com a mãe dele. Ele era um homem afável, recitou alguns textos que tinha na memória. Coisas dele e de outros. Disse que lia e escrevia com os olhos da mãe e de amigos. Ouvia a leitura de livros e ditava seus textos.

- Aquela foi uma tarde inesquecível. Ele estava absolutamente fascinado com a história dos espelhos. Expliquei que era verdade, eu muitas vezes ficara diante do espelho olhando as imagens dos meus sentimentos, antes de perder a visão. Eram pinturas iridescentes. Um bosque, um córrego esperto entre árvores, pássaros, vultos esgueirando-se em corredores escuros, pessoas solitárias sentadas na praça, um banco vazio, um homem partindo, uma mulher chorando, uma boneca queimada. E muitas outras imagens indecifráveis.

- Jorge de La Brume ficou enlouquecido com aquilo.

- Antes de nos despedirmos naquele dia, La Brume presenteou-me com este bandoneón, dizendo que seria meu companheiro. "Este bandoneón é irmãos dos livros da minha biblioteca, mora lá com eles. Agora ele será teu irmão", falou.

- Pediu-me que tocasse alguma coisa. Foi o que fiz, improvisando Les chemins de l'amour, de Francis Poulenc, num arranjo inspirado por aquele encontro mágico. Acho que nunca toquei tão bem uma peça de Poulenc. Contou-me Alberta, depois, que, enquanto eu tocava, uma lágrima escorreu na face do escritor (apoiava as mãos sobre a bengala, sentado na poltrona bege de couro).

- Nos três dias seguintes, ele e Alberta saíram a caminhar pelas ruas da cidade, foram a cafés, bibliotecas, livrarias, bosques. Fizeram muitas coisas juntos naqueles poucos dias. Alberta era elegante, culta e discreta (como é até hoje). Eu passei as tardes com a mãe do escritor, ouvindo casos, histórias, e provando o delicioso chá que ela servia. Toquei algumas músicas também. 

- Jorge de La Brume e sua mãe fizeram questão de despedir-se de nós na estação de Buenos Aires. Lembro do cálido abraço que ele me deu. Uma tarde de outono muito fria como essa. Eu era jovem. Um cego emocionado com seu novo amigo e com o bandoneón.

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Juan Niebla, 88 anos, é músico da estação de trem de Passo dos Ausentes desde 1940, ano em que ficou cego aos 15 anos. Vice-presidente da Sociedade Histórica, Geográfica, Antropológica, Astronômica, Geológica, Artística e Antropofágica.

Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A estação de Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/12/a-estacao-de-passo-dos-ausentes.html
Música na estação de trem:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/05/musica-na-estacao-de-trem.html
A claridade do coração:
 http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/04/claridade-do-coracao.html
Les chemins de L'amour, na voz de Véronique Gens:
http://www.youtube.com/watch?v=ex-IxBQndqM