sábado, 18 de maio de 2013

Escrever em língua portuguesa

Jorge Adelar Finatto

photo: Fernando Pessoa
fonte: Casa Fernando Pessoa*
 

 
Um escritor disse que a língua portuguesa tem pouco alcance, é entendida por um número reduzido de leitores no planeta. Lamentou que estamos muito longe da realidade de quem escreve em inglês. Ficamos circunscritos aos países que têm o idioma de Fernando Pessoa como língua oficial, além de antigos enclaves portugueses como Goa e Macau.

Pois eu não sofro essa angústia. As minhas inquietações de escritor amador - no duplo sentido de quem ama o que faz e não sobrevive deste fazer - são mais modestas. Não me tira o sono a maior ou menor influência de escritores de dicção portuguesa no mundo. Não faço, aliás, distinção entre autores a partir do idioma em que escrevem ou da nacionalidade, mas a partir do sentido de suas palavras.

O português é a nossa língua do coração. É através dela que expressamos nosso ser no mundo. É um prazer imenso falar, ler e escrever na língua de Camões, João Guimarães Rosa, Cartola, dona Maria Antônia da floricultura.

Estou mais preocupado com o fato de viver num país com quase 200 milhões de almas e que tem tão poucos leitores. Me entristece não ser lido por pessoas que falam a minha língua e que moram na mesma rua que eu, no mesmo bairro, na mesma cidade e até no mesmo edifício.

A questão que me toca diz respeito à pouca participação, na vida cultural, das populações dos países de expressão portuguesa, fruto do atraso que também atende pelo nome de injustiça social nesses lugares.
 
Claro que gostaria de ser lido em Paris, Tóquio e Londres, mas já estou me preparando para não ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. A menos que haja uma revolução no mundo das letras, a começar pela descoberta, por parte de meus vizinhos, de que eu escrevo.

Tudo leva a crer que continuarei desconhecido no meu próprio idioma. (Mas se daqui a cinco minutos, ou três mil anos, alguém se debruçar sobre estas linhas, acho terá valido a pena.)

No fundo, no fundo, penso que livros e autores, como todo o resto, estão votados ao esquecimento, com raríssimas exceções. Mas ninguém deve desanimar por isso.

A língua portuguesa e seus escritores têm um lugar no mundo. Esse lugar será tanto mais importante quanto maior for nossa capacidade de formar cidadãos e leitores em nossas sofridas nações.
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Site da Casa Fernando Pessoa (Portugal):
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2233
Texto revisto, publicado antes em 6 de junho, 2011. 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

A sombra da esfinge

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

Como ele nunca teve pai para amar, sempre lhe pareceu que a coisa mais em falta no mundo não é dinheiro nem qualquer outro bem, mas um abraço de pai.

Quando menino, era difícil explicar aquela ausência para os outros. Na rua e na escola, as pessoas botavam olho, cara de admiração. Não ter pai era mesmo que não ter um braço ou uma perna.

A sombra da esfinge o perseguiu nos dias dos pais, aniversários, natais, páscoas, reuniões da escola, fins de semana, noites e dias sem fim. A falta projetou-se nos sonhos e pesadelos do menino.

O tempo passou. Um dia ele descobriu que outras casas também não tinham a figura misteriosa. Só que muita gente escondia isso. Estranho: escondiam um ser que não existia. Ocultavam o mito. Alguns possuíam apenas uma deprimente imagem de homem no sofá da sala.

Os sem-pai já não eram exceção. Talvez fossem maioria.

Ficou nele a idéia de que as mulheres, e não os homens, faziam o mundo funcionar.

Na verdade não era um consolo, mas a consciência de uma espécie de mutilação. Sempre faltava um pedaço.

A humanidade é toda seqüelada, ele pensa, enquanto caminha com o filho pela mão na praça do bairro, domingo à tarde. Pra ele agora todo dia é dia dos pais.
 

terça-feira, 14 de maio de 2013

Os fascistas

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto



Os fascistas
escolhem sempre
as prisões
à benignidade do sol

mas os poetas
continuarão
violando
as sombras


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Do livro O Habitante da Bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás e rosa o coração.

O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor pintou de azul e amarelo as flores do vaso da sala. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
 
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
 
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da remota ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o salvou da solidão de náufrago.  Ela foi a sua primavera.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele é muito certinho. A vida, não.
 
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
 
A família que, no passado, foi unida, agora vive dividida, os irmãos quase não se convivem.
 
A mãe, que em vida tecera com dedos de fada os frágeis laços do afeto familiar, também morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os cristais se partiram.
 
Ele voltou a viver no ermo distante da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, de bairro, cidade, país.

O seu mundo reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e às impiedosas tardes e noites de domingo.
 
Teve poucos relacionamentos depois, coisas entediantes, sem nenhuma importância. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos. E não os encontra.
 
Sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas e insignificantes memórias que o invadem, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, para ele é vertigem. Se ao menos não sentisse as coisas.

O lugar onde vive - a longínqua ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao tugúrio. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
 
As hortênsias acendem as manhãs de verão, iluminam a casa.
 
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
 
Dali pode ver a praça e as pessoas nela, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
 
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela tomando chimarrão. Só.
 
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
 
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
 
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
 
Se fez acompanhamento psiquiátrico para esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças dela. Vive de memória.
 
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
 
A praça está vazia agora. Recorda-se dos dias em que caminhavam juntos ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
 
Se ao menos tivesse um gato de verdade.

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Texto revisto, publicado originalmente em 17 de fevereiro, 2010.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Travessia da névoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Estou só e escrevo para minha alegria.*
                                               Matsuo Bashô (Japão, 1644 - 1694).
 
Vinha pensando nesse verso de Bashô enquanto ia pra casa, no fim da tarde de outono. Atravessei a ponte no meio da névoa fria, um leve vento nas folhas.

A vida é encontro, mas é também uma constante despedida. Dos outros e de nós mesmos.

O tempo foge a galope, vamos sumindo na bruma.

Alguém notará a minha ausência quando não estiver mais na paisagem de outono? Quando não estiver mais em paisagem alguma? Quem estenderá a mão quando chegar do outro lado da ponte?

Vinha eu pela ponte, pensando esse difícil pensar.

Trazia o calepino e o lápis no alforje. No coração, essas ruminações em torno do inefável.

Mas não é propriamente de solidão que a travessia da névoa fala. Não é bem disso que ela trata.

Há um caminho a percorrer no ermo, ela diz.

O que a ponte espera de nós é o gesto da passagem. O passo corajoso e humilde.

Um movimento além do medo. 

Os poetas constroem pontes através da névoa.

A palavra abre a picada na mata densa e escura. E por ali vamos, colonos do território despovoado, catando o farelo de beleza e mistério.
 
O vento leve toca o sino de bambu.
 
O visível e palpável é apenas um vestígio. Imenso é o que não se vê nem se toca.

Tem dias que habitamos a tapera. Tem dias que brilhamos ao sol.

Por isso gosto dos caminhos do outono, por isso me dei a travessia.

Gosto dessas horas de distância e dispersão.

Escuto a conversa do pássaro no galho invisível.

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*O Gosto Solitário do Orvalho. Matsuo Bashô. Antologia poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 1986.
O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html
 

terça-feira, 7 de maio de 2013

A casa do anjo

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. Colonia del Sacramento. Uruguai
 

Antes de começar a chover esta noite, arredaram uns móveis bem pesados lá no céu. Um barulho espesso e arrastado de trovões me fez pensar que era a mudança de um anjo.

Um anjo bom e humano com invisíveis asas de plumas perfumadas, levando com ele seu chapéu, suas estantes de livros, sua bicicleta e outros objetos pessoais.

Um anjo, quando se muda, deve ter muita coisa pra carregar: cartapácios com registros e fotografias de quem ele protege, cadernos de milagres, álbuns de recordações de pessoas que acompanhou um dia, armário onde guarda instrumentos do ofício, um piano, aquarelas com os campos do Senhor.

As roupas e as botas do anjo devem ser brancas como nuvem.

Gostava que o meu anjo da guarda viesse morar mais perto de mim.

Meu coração anda necessitado de amigo com sabedoria e consolação. Ele podia até ficar morando aqui em casa. Quando quisesse olhar o mundo pra ver como vão as coisas, podia subir no telhado e ficar perto da chaminé, lugar calmo e iluminado, de onde se tem uma boa vista.

O meu anjo da guarda. Há de expulsar a solidão que toma assento na sala. E nunca mais nenhum mal vai me acontecer.

Quando de noite o medo se acercar de mim, o anjo me dará sua mão forte. Então eu dormirei como um menino. E vou sonhar outra vez.

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Texto revisto, publicado originalmente em 10 de dezembro, 2010.
 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

O amor

 
 
photo: j.finatto



O amor suporta todas as coisas, acredita todas as coisas, espera todas as coisas, persevera em todas as coisas. O amor nunca falha.

                    
                                              1 Coríntios 13:7,8