sexta-feira, 7 de março de 2014

O e-mail do amigo morto

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: jfinatto
 
 
Tenho um amigo que morreu há alguns anos, mas que ainda está muito presente na minha vida. Um cara alegre, espirituoso, valente leitor. Aprendi e me diverti muito com ele.

Manuel gostava da vida e era forte. Por isso eu tinha a impressão de que ele viveria não menos do que 90, 100 anos. Viver era com ele mesmo. Não desanimava diante dos tombos.
 
Na verdade, nunca esqueço meus mortos. Trago-os sempre por perto, na memória e no coração. Às vezes pensam que estou em colóquio com as paredes, falando sozinho. Bobagem. É com eles que eu falo quando estou muito só (o que nem é tão raro assim).
 
O fato é que o e-mail do Manuel ainda está na minha lista de e-mails do computador. Nas ocasiões em que decido mandar algum texto e/ou photo para pessoas da lista, sempre me deparo com o e-mail do Manuel.

Me dá um arrepio de saudade, uma dor.
 
Um sentimento mais forte que a razão me diz que eu não posso deletar o e-mail do Manuel. Sinto que, se o fizesse, perderia mais ainda o Manuel. De uma forma que não entendo bem, acho que ele cairia mais fundo da ponte da memória dentro do abismo do esquecimento.
 
Pessoalmente estou farto de perdas, raro leitor. Por isso não vou apagar o e-mail do Manuel.

Sempre fica em aberto a possibilidade de comunicação entre nós. Quem sabe um dia ele ainda vai mandar uma mensagem me gozando por não ter coragem de retirá-lo da lista? Talvez dissesse, entre irônico e triste, olhando nos meus olhos:
 
- E-mails de amigos mortos são como folhas ao vento, não dá para escrever nada neles. Esquece e segue em frente.
 
Faria talvez uma graça com a tendência, tão minha, para a melancolia e para me agarrar ao perdido como um náufrago.
 
Como se eu próprio não fosse, qualquer dia desses, mera lembrança. Um e-mail deletado da lista. 
 

quarta-feira, 5 de março de 2014

O rumor do córrego

Jorge Adelar Finatto

Montreux. Lago Léman. photo: j.finatto
 

O seixo sobre a escrivaninha é cor de mel maduro e tem pequenas crateras na superfície. Elas lembram o território redondo e branco da Lua cheia. 
 
Antes de vir parar aqui, o seixo habitou outros lugares. Deve ter rolado por séculos no fundo das águas.

Provavelmente veio ao mundo antes das ondas do Dilúvio. A menos que seja o minúsculo fragmento pós-diluviano de uma estrela que despencou e esfriou.

O seixo faz parte agora do resumido mundo do escritório. Mergulhado nessas águas de estantes de livros e objetos que foram se chegando com o passar dos anos (enquanto eu próprio passava).

Cada objeto tem uma origem e uma história para contar, assim feito o seixo.

Como viajantes numa estação de trem.

Às vezes levo o seixo ao ouvido para escutar o rumor distante do córrego da minha infância na sua antiga viagem rumo do mar.

Ouço então a passagem do vento sobre as águas e o vôo das folhas quando se soltam dos ramos.

O escasso seixo é um pedaço do infinito universo que veio ao mundo para rolar e passar (tal como eu).

Uma singela lembrança do eterno. 
 

segunda-feira, 3 de março de 2014

Oscar Wilde em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto
 
A morte é um preço excessivo para dar por uma rosa encarnada.
Oscar Wilde* 


 
O guarda-chuva é um escudo existencial contra a tristeza e a pouca luz do mundo.

Um indivíduo deprimido e solitário não deve andar por aí sem guarda-chuva, mesmo em dias de sol. Não importa o tempo que faz lá fora.

A umbela traz consolo ao coração, além de proteger o esqueleto.

Em Passo dos Ausentes, existe o Sindicato dos Fazedores de Guarda-Chuvas, Chapéus, Bengalas, Luvas e Mantas. A cidade, hoje habitada por muitos fantasmas e poucos seres humanos, foi importante centro produtor e exportador desses produtos. Consta nos registros do sindicato que, entre 1890 e 1939, a Inglaterra importou a quase totalidade da produção.

O cliente mais famoso, na área das artes, foi ninguém mais, ninguém menos, do que o escritor irlandês Oscar Wilde (1854 - 1900). Dizem os antigos que ele chegou a ter perto de 20 chapéus-de-chuva (nome pelo qual também é conhecido o guarda-chuva ) e cerca de 10 bengalas confeccionados na Terra dos Ausentes.

Numa secreta viagem, o autor de O Retrato de Dorian Gray esteve em Passo dos Ausentes, em 1891. Veio a nossa pacata aldeia a fim de mandar fazer, pessoalmente, um modelo exclusivo de guarda-chuva. O artefato tinha, num canto da parte externa do tecido azul-claro, as iniciais D.G., em tom rosa, as mesmas que foram gravadas, em prata, no cabo de osso de anta.

Oscar ficou durante 40 dias por aqui, conforme está registrado no livro de hóspedes da pensão Ao Viajante Solitário. Foi tempo suficiente para encantar a todos. Ganhou o título de cidadão honorário e sua despedida, na estação de trem, foi um dos maiores acontecimentos da cidade em todos os tempos.

 

 
Tal impressão causou em nosso meio que, desde então, quando pessoas de Passo dos Ausentes viajam à Inglaterra e à França, fazem uma espécie de peregrinação sentimental atrás de Dorian Gray, quer dizer, Oscar Wilde.

Muitos dos bilhetes apaixonados colocados (todos os dias) junto ao túmulo do escritor, no cemitério Père Lachaise, em Paris, são de gente dos Campos de Cima do Esquecimento.

Entre os políticos que adquiriram as nossas obras de arte, estão Getúlio Vargas e Winston Churchill. Na Terra da Rainha como em São Borja, são tratados como relíquias e viraram peças de museu. Em diferentes países do mundo, os guarda-chuvas aqui produzidos transmitem-se através das gerações na condição de finas joias de artesania.

Faz 40 anos que Guilherme Baden-Baden, o químico de Passo dos Ausentes, não sai à rua sem carregar o enorme Morcego Negro, espécie de capacete protetor que se afeiçoou a ele como se fosse a extensão de seu esquerdo braço.

Homem pequeno, Baden-Baden quase desaparece sob o para-sol (outro nome do objeto pluvioso). Enquanto estiver com o guarda-chuva aberto, afirma ele, nada de ruim poderá lhe acontecer. Não se trata de vã filosofia, diz o sábio:

- É uma intuição ancestral, uma maneira de ver e sentir a existência.

Nunca ninguém, em qualquer tempo, foi abandonado por um guarda-chuva. O contrário, porém, é muito comum.

Uma das grandes invenções da humanidade, cuja origem se perde na noite dos séculos, o guarda-chuva é, ao lado do cão e dos diários das moças, o melhor amigo do homem.

___________

Fotos: 1) Oscar Wilde, 1882. Autor: Napoleon Sarony. Fonte: Wikipédia. 2) Guarda-chuva nos jardins da Praça da Ausência. Autor: J. Finatto.
Texto revisto, publicado em 18 de abril, 2011.
Leia também, sobre Oscar Wilde e o beijo proibido:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/06/oscar-wilde-e-o-beijo-proibido.html
*Pensamentos, Oscar Wilde, p. 202. Relógio D'Água Editores, 2011, Lisboa.

domingo, 2 de março de 2014

Os mascarados


Carnaval de rua em Olinda, Pernambuco.
 

Os mascarados. Autor: Passarinho. Fonte: site da Prefeitura de Olinda:
www.olinda.pe.gov.br

 

sábado, 1 de março de 2014

O peixe e seu carnaval

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto
 

A imagem dos peixinhos brilhando no fundo azul, e as outras, eu pesquei no Oceanário de Lisboa. É uma visita que não dá para perder em Portugal, conforme já registrei aqui.* Além de peixões, como tubarões, e peixinhos, como cavalos-marinhos, existem muitos outros seres que habitam no interior e fora das águas oceânicas, e são mostrados no oceanário.
 
Há um universo de vidas que não conhecemos, nas profundezas e na superfície. Um mundo que, por ironia, depende da boa vontade do ser humano para não ser destruído, o que, convenhamos, é uma temeridade.

photo: j.finatto
 
Resta esperar e acreditar que teremos o bom senso de não acabar com os oceanos, pois neles reside talvez a nossa única chance de sobrevivência no planeta diante do colapso alimentar que se avizinha.

Não existe beleza nem alegria na morte, apesar do que vemos na televisão diariamente. A estética da violência e da destruição, presente no noticiário e em grande parte da programação, desde filmes até grotescas lutas entre pessoas que se ferem bestialmente (a que chamam esporte), só faz alimentar a nossa desumanização.

photo: j.finatto

Preservar a vida enquanto há vida dentro e fora de nós.
 
Durante a folia oficial, artificial e midiática do carnaval (tudo é espetáculo...), eu prefiro o mundo silencioso, natural e colorido dos cavalos-marinhos e anêmonas-do-mar. O carnaval dos peixes.
 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Escritores fantasmas reúnem-se em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


Uma tapera solitária, à beira da ruína, será o local de reuniões do Congresso dos Escritores Fantasmas de Língua Portuguesa, a realizar-se nos primeiros dias do outono em Passo dos Ausentes.

O evento é uma das principais atrações culturais dos Campos de Cima do Esquecimento, ao lado do festival Música do Fim do Mundo, que acontece em junho, e do Teatro Kabuki na Névoa, em novembro. A sessão de abertura ocorrerá no dia 22 de março próximo.

O fantasma de Álvaro de Campos está entre nós e falará na abertura do encontro. Foi o que declarou ontem Heitor dos Crepúsculos, poeta suicida, assombração-mor da cidade, organizador do conclave. Disse, ainda, que o bardo português é o anfitrião designado este ano para o congresso. Também já chegaram os fantasmas de Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke, Bashô, Heitor Saldanha e Henrique do Valle, convidados especiais que serão homenageados nesta edição.

Estão todos hospedados na pensão Ao Viajante Solitário, com ampla vista para o Vale do Olhar. O atual administrador do estabelecimento, António Alto da Noite, afirma que os literatos fantasmas não são maus hóspedes:

- Não comem nem bebem nada. Não usam o banheiro nem tomam banho. Em geral fazem silêncio. Às vezes arrastam móveis, principalmente nos dias de chuva (neste lugar chove pelo menos uma vez ao dia). Materializam-se a qualquer momento, mas não costumam demorar.

- É gente do sossego, leitura. São sentimentais, são estranhos. Mas cada um no seu cada qual. No café da manhã, sentam-se calados ao redor da mesa, olhando um ponto invisível à frente. De repente, desaparecem. É o jeito deles.
 
fachada da pensão Ao Viajante Solitário.
photo: j. finatto

A solidão da escrita será um dos temas do encontro, que terá ainda a leitura de textos pelos próprios autores na biblioteca da cidade, programa aberto ao público.

Mocita de La Vega, diretora da biblioteca e única funcionária, organiza o Salão dos Passos Perdidos para receber os poetas, escritores e convidados. Está tirando o pó dos móveis e livros e organiza o fichário, um tanto abandonado nos últimos 30 anos devido à falta de leitores (a população reduziu-se pela metade, a juventude não fica mais aqui). A diáspora dos ausentes.

Revelou a bela bibliófila que, ao passar o espanador numa mesa, ficou surpresa ao ver o fantasma do poeta Rilke sentado na poltrona diante da janela dos vitrais roxos. Vestia casaco e calça de lã cinza-escuros e uma gravata lilás sobre a camisa branca.

Ao ser descoberto, o poeta de Praga descruzou as pernas, esboçou um meio-sorriso e, levantando-se, convidou-a pra dançar. O vate das Elegias de Duíno segredou-lhe coisas à concha do ouvido.

- Um perfeito sedutor na palavra escrita como na falada, disse Mocita.

E saíram os dois a rodopiar entre as estantes, sob os lustres de cristal, bailarinos de um tempo fora do tempo, ao som de uma inaudível melodia sentimental de Amadeus Mozart.

Heitor dos Crepúsculos, acolhedor-geral do encontro, é a alegria em pessoa nos últimos dias, voa de um lado para outro, toma mil providências, fazendo esvoaçar sua echarpe cor-de-rosa. Materializa-se e desmaterializa-se com grande animação em toda parte, deixando no ar um pó branco cintilante.

Quando menos se espera, Dos Crepúsculos aparece sobre a copa de uma árvore estendendo um tecido de seda. Outras vezes, espalha bandeirinhas coloridas nos portais das casas ou desfia novelos amarelos de lã em torno dos bancos da Praça da Ausência.

Todos notamos um certo exibicionismo da parte de Heitor, mas afinal é o momento dele. E fantasmas são, por natureza, exibidos, do contrário não seriam fantasmas.

Passo dos Ausentes engalana-se para receber os voláteis escrevinhadores. Até jornalistas do Japão estão chegando para acompanhar o fantasmagórico congresso.

Desde que a cidade foi fundada por alguns padres jesuítas e famílias de índios guaranis sobreviventes do massacre de São Miguel das Missões, em 1756, não se via tanto entusiasmo por estas bandas.

O blogue acompanhará de perto o encontro, que já tem confirmadas as palestras de Machado de Assis, Lima Barreto e Eugénio de Castro. A programação completa bem como o nome dos participantes serão divulgados nos dias vindouros.

Um painel que promete, segundo alguns comentam, é aquele sobre os escritores mortos-vivos, isto é, os que estão vivos mas não têm leitores. Cerca de 1.200 mortos-vivos já se inscreveram para este dia. A este respeito, assim se manifestou Heitor dos Crepúsculos:

- A parte do esquecimento que nos cabe, nesse mundo de ruidosas vaidades e egos exacerbados - o velho mundinho da literatura -, é pequena se comparada à dos escritores mortos-vivos. Nós, pelo menos, não temos contas pra pagar nem espelho em casa.
Texto revisto, publicado em 04 de março, 2013.
 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

As últimas cores

Jorge Adelar Finatto 
 
photo: j.finatto, 24.01.2014
 

No itinerário que faço durante a caminhada polifônica, há sempre uma claridade que me faz parar na beira do caminho. É uma hortênsia que reúne na sua floração diversas cores e texturas. Há anos que a observo durante os meses de verão.

Paro para olhá-la de perto e sempre a fotografo, impressionado com sua exuberância. Como quem quisesse proteger contra o esquecimento imagem tão bela.

Não conheço outra hortênsia com tal diversidade e luminosidade.
 
A sua pintura se compõe e decompõe em inumeráveis tons, dos quentes aos frios, ao longo do período que começa lá por novembro e vem até finais de fevereiro. Sempre variando nas tintas.

Não resisti e fotografei-a mais uma vez em busca dessas que são, provavelmente, as últimas composições de sua mágica paleta. Essas photos testemunham as cores finais que ela emite nesse verão.

photo: j.finatto, 24.01.2014

Em breve ficarei sem essa beleza na beira do caminho. 
 
Mesmo agora, no momento em que se despede para hibernar por muitos meses (tempo no qual vai fabricar novas tintas), a hortênsia não priva o caminhante dos seus derradeiros instantes de beleza. Faz ainda o seu melhor. Um exemplo para nós.

A hortênsia, no seu encanto humilde e sereno, é só visão e dádiva.

photo: j.finatto, 24.01.2014