sexta-feira, 4 de julho de 2014

Eu comecei a sair da mina

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
 
Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                    me abraçou
me desamarrou as mãos

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Do livro Claridade, J.A.Finatto, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A pele cor-de-rosa da chuva

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto


O ser humano tem direito constitucional de andar nas nuvens. Sentimental algaravia. Ah, um dia livre por aí. O que ela mais gosta.

As horas difíceis, cotidianas, que a vida tem. Poucos momentos de gozo. Vida bonsai. Um ermo. Os medos, medo, medo. Um dia se deu conta de que. Olhou no espelho, estranhou. Quem é essa? Deus!
 
Vivia no austero, secreto, precavido jeito.

Desde que ele se foi, enfim, aquela madrugada. (Por que tinha de ser justo de madrugada?) Adeus, adeuses. Casa abandonada. Depois só quireras, uns fanicos de dar dó, cacos quebrados. Ninguém mais.
 
Dia feriado, sábado, domingo, aniversário: nenhum fio de luz embaixo da porta, escuridão completa. Ninguém vem, ninguém nunca nada. Coração solitário de bandeja, corvos vorazes.
 
Noites em claro, sede. Janela aberta sobre a cidade e neons. Vazio. Invoca rezas antigas, banho de madrugada, copo dágua gelada, dorme diante da tv. Quem é essa?
 
A solidão de batom pintada na cara. Ocos dias de viver. Malezas.
 
Ah, bem-vindo, vento de maio. Chuva. Na chuva sente-se protegida, agasalhada. Sai a divagar caminhos molhados. Os longes habitam a sua alma. Peixes coloridos soltos no ar. Sopram presságios no voo de algodão das gaivotas. O rio escorrendo lentamente.
 
Moças saltam das janelas, invadem as ruas como ela. Anêmonas. Saias flutuam. Sombrinhas navegam no vento.
 
A esperança. Ninguém pode viver sem, nem ela nem. Se solitude fosse abraço.

Instantes migalhas de vida são. Breves eternidades. Venham os dias.

O amanhecer sobre nuvens. Venha esse novo amor de onde vier. 

Felicidade é relâmpago. Farândola no coração.

A pele cor-de-rosa da chuva.

Outono, outonos.
 
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Texto revisto, publicado antes em 9 de abril, 2010.

domingo, 29 de junho de 2014

Notícia do fim do mundo

Jorge Adelar Finatto
 
Campos de Cima do Esquecimento. photo: jfinatto


Uma voz disse a Juan Niebla que o mundo ia se acabar. Aí a história começou.

Eu estava apagando as luzes do escritório, às 3 da madrugada, quando ouvi batidas na porta. Pelo adiantado da hora pensei que tinha acontecido uma tragédia.
 
Lembrei que, na tarde anterior, Nefelindo Acquaviva saíra com seu dirigível em direção ao Contraforte dos Capuchinhos para visitar nosso amigo Claudionor, o Anacoreta, que vive em solidão no interior de uma caverna. O tempo não estava bom, havia espessa neblina e garoava. Recomendei-lhe cuidado ao navegar sobre o Vale do Olhar, travessia perigosa. Ali um dia azul pode transformar-se, de repente, em tempestade, sem nenhuma explicação.
 
Desci a escada o mais depressa que pude. Ao abrir a porta encontrei Juan Niebla quase sem fôlego. Segurava a bengala com as duas mãos e estava muito trêmulo. Tinha atravessado sozinho as ruas adormecidas, apesar da cegueira e dos 87 anos.
 
Trouxe meu amigo para perto da lareira da sala, acomodei-o no sofá entre os dois gatos. Fui preparar um chá de maçã, enquanto ele se aquecia e se acalmava. Secou nervosamente com o lenço o suor do rosto.

Os olhos azuis parados, olhando o indefinido. Juan é músico desde 1943, quando foi aprovado em concurso público da cidade. Naquele mesmo ano, aos 16 de idade, ficou cego. Seu posto foi sempre a estação de trem, tendo a função de receber e despedir os viajantes com a música do bandoneón.
 
Após a extinção da estrada de ferro, na década de 1950, continuou trabalhando naquele lugar. No amplo espaço destinado à venda de bilhetes, instalou-se o Café da Ausência que é o ponto de encontro de quem curte arte e música. Tem, além das mesinhas com toalha xadrez, um pequeno palco e uma grande vidraça lateral com vista para o Vale do Olhar. As quintas-feiras são reservadas aos concertos de Juan Niebla e seus convidados, em geral músicos da Orquestra de Câmara de Passo dos Ausentes. 
 
Depois de beber o chá, acalmou-se. Perguntei-lhe o que havia acontecido:
 
- Eu estava deitado, no entressono, meio lá, meio cá, já tinha rezado o Pai Nosso, quando ouvi uma voz de homem que parecia vir do sótão. Disse a voz:

- Juan, o mundo vai ser destruído em breve. A coisa vai começar por Passo dos Ausentes. A aldeia vai ser varrida em poucos segundos. Fortíssimos ventos virão roncando pelas encostas dos chapadões de basalto. Não vai sobrar nenhuma casa em pé nem ninguém. Eu vim da esfera superior com ordem expressa de te avisar, porque és a pessoa mais desprotegida deste povoado. O Homem resolveu te poupar do desastre. No dia 26 de junho próximo, vá para a beira do Perau das Vozes Caídas e aguarde o nascer do Sol. Uma nuvem dourada virá te buscar. 
 
- Eu nunca tinha ouvido uma voz tão fria, côncava. Parece que vinha de dentro de um tonel oco, sei lá. Num ímpeto saltei da cama e abri a janela pra respirar, pois tinha impressão de que me faltava o ar. Coloquei as botas e o capote e saí. Viver só é difícil. Com vozes no sótão é ainda pior. Se o fim do mundo está chegando, eu quero ficar perto dos amigos. E amanhã vou avisar todos que puder. Depois quero que me leves para o mosteiro no Contraforte dos Capuchinhos.
 
Juan dormiu na minha casa e, no outro dia, bem cedo, saiu para contar por aí o que a voz lhe dissera.

A cabeleira branca do velho músico desfiava-se no ar gelado da manhã de junho, a bengala percutia no chão, o capote preto se inflava ao vento. De tanto andar pelas ruas da cidade, ele conhece todos os buracos e esquinas.

A maioria das pessoas não deu importância à história. Os mais antigos, porém, ficaram aflitos. Essa aflição tem nome e sobrenome: Eleutério Ombra

Em 1755 o padre jesuíta italiano Eleutério Ombra, também ele cego e quase nonagenário, teve uma visão dias antes de São Miguel das Missões ser invadida e destruída pelos exércitos de Espanha e Portugal. Disse ele, durante o cerco, na última missa, que uma nova São Miguel se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor, após o massacre dos Sete Povos Missioneiros.
  
Todavia, advertiu o sacerdote, uma tenebrosa sombra rondaria o lugar e poderia devorá-lo, porque a injustiça cometida contra as Missões atravessaria os séculos e perseguiria os descendentes de São Miguel.
 
- O território permanecerá a salvo enquanto se mantiver invisível, envolto nas brumas glaciais da ausência.
 
O documento com essa profecia se encontra arquivado na Sociedade Histórica.

Atendendo o pedido de Niebla, coloquei algumas tralhas no Jeep (modelo 1947), junto com o livro de contos do uruguaio Juan José Morosoli, e rumamos para o mosteiro dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer.

O superior do convento, cujo nome é, por acaso, Dom Eleutério, nos recebeu com gentileza. Fomos para nossas celas e depois ouvimos sua orientação, na palração noturna do refeitório:

- Já que o mundo vai acabar, segundo informa nosso irmão Juan Niebla, convém que reflitamos um pouco sobre a vida que temos levado. E tratemos de endireitar o torto nesses dias que nos restam (dia mais, dia menos, o mundo acaba pra todo mundo, não é mesmo?) Aqui no mosteiro, como se sabe, cumprimos tarefas também. O senhor Jorge vai trabalhar por esses dias na horta, longe da biblioteca. Vamos deixar os livros, nesses dias, para os irmãos que se envolvem na faina diária de produzir o nosso alimento. Juan Niebla irá ensaiar As quatro Estações Portenhas, de Piazzolla, e nos dará o prazer de ser o solista no concerto de sexta-feira à noite, ao lado do nosso Conjunto Barroco. Os monges, somos 24 no momento, ficaremos muito agradecidos.

Passei os dias lidando na horta, plantei 4 canteiros de alface e outros cinco de feijão e tomate. Alvorada às 5h. Ao retornar para a cela, de noitinha, depois da singela refeição, mal conseguia abrir o livro de Morosoli à luz das velas. Caía logo no sono.

Juan Niebla acalmou-se, dividindo o tempo entre as orações na capela e os ensaios com os músicos. Disse-me Dom Eleutério:

- O Juan anda muito atormentado com a idéia da morte próxima. Mas ele tem boa saúde e pode passar bem dos 100. Fizeram o certo vindo pra cá. Os dias no mosteiro vão serenizá-lo.

Uma madrugada de rebuliço no céu, com raios e trovões, abri a janela. Queria ver as imagens do fim do mundo. Choveu uma chuva espalhada, a terra exalou um cheiro bom. De manhã, abriu um dia azul e lavado como depois do Dilúvio. Voltei pra lida na horta.

Ficamos 15 dias no mosteiro. Não ouvimos explosão, fumaça ou qualquer coisa que indicasse o fim do mundo. Resolvemos agradecer a hospitalidade dos monges e retornamos.

Subindo pelas curvas da estrada de terra e pedra, indaguei de Juan se, afinal, aquela voz foi mesmo real.

- Não sei, não sei, tive sonhos naquela noite. Num deles até minha falecida mãe conversou comigo. Não sei, tudo parecia tão real...

Quando chegamos em Passo dos Ausentes, a vida seguia no costume. Estacionei na praça. Foi bom ver a barbearia aberta, os pássaros funcionando nos galhos. O velho carteiro João Francisco dormia no cubículo do correio. As casas com as janelas abertas, as magnólias em flor nas calçadas, as chaminés fumegando.

O dirigível de Nefelindo Acquaviva estava no mesmo lugar, amarrado no Cedro do Líbano perto da estação de trem.

Palomar Boavista, o astrônomo, cruzou conosco, lançou um olhar de deboche e perguntou:

- Mas então, como foi o fim do mundo? Aqui como podem ver correu tudo bem. Estamos ansiosos por ouvir os detalhes da aventura na próxima reunião da Sociedade Histórica.

Deixei Juan Niebla na casa dele, voltei pro meu canto. Pra distrair e purificar o espírito, comecei um canteiro de couve.
 

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sótão, porão e assombração

Jorge Adelar Finatto

Vale do Olhar. photo: jfinatto
 

Leitores costumam perguntar se os textos que escrevo sobre Passo dos Ausentes têm um fundo de realidade ou são apenas páginas mal ajambradas de ficção.
 
Suspeitam que os Campos de Cima do Esquecimento são um território mítico, habitado por seres imaginários que brotam de uma mente que funciona aquecida à beira do fogão a lenha e que se deleita no estranhamento.

Passo dos Ausentes é um lugar abandonado ao sul do mundo, que nem sequer está no mapa do Rio Grande do Sul. Somos poucos. Somos invisíveis. Temos uma história que começa com a destruição dos Sete Povos das Missões.

Algumas famílias de índios guaranis e uns poucos jesuítas fundaram o povoado. As casas eram de pau a pique e barro, cobertas com capim-santa-fé. Vieram fugindo do massacre movido contra os missioneiros por espanhóis e portugueses, em 1756, durante a Guerra Guaranítica, de tristíssima memória.

Depois dos fundadores aqui chegaram pessoas de outras etnias (africanos, judeus, árabes, ciganos, etc.),  todas tendo em comum uma história de violência e perseguição.

Quem se importa com isso, raro leitor? Nem o governo tampouco, que se nega ao reconhecimento político da cidade (por sem-razões que maltratam a inteligência e a sensibilidade das pedras).

E assim vamos vivendo. Os jovens cedo vão embora em busca de um futuro. Os vetustos resistem. A solidão nos devora e nos une. Mas não perdemos tempo com lamentações, porque amamos a vida assim mesmo com suas trampas e lágrimas.

A cidade existe e, apesar de tudo, nela ninguém passa necessidade, pelo contrário. Os serviços básicos nos orgulham. A estação de trem está abandonada desde 1950. Mas nela está localizado o famoso Café da Ausência onde se toma o melhor café colonial da serra gaúcha.

A Sociedade Filosófica, Literária, Histórica, Geográfica, Artística, Antropológica, Astronômica, Geológica, Esportiva, Recreativa e Antropofágica é nosso órgão de governo e deliberação.

Não temos aviões, mas temos alguns balões e até dirigíveis. Lampiões de gás alumiam as ruas esquecidas. Somos poucos.

As nuvens são nossas testemunhas.

Ingmar Bergman esteve aqui em 1958 após filmar Morangos Silvestres. Fez amigos, como não? Ficou três meses. Dizem os mais velhos que chorou na hora de partir, do mesmo modo que Oscar Wilde, conforme aqui já relatado. Disse que ia voltar, mas isso não aconteceu.

A casa que o cineasta sueco ocupou, com a frente voltada para o Contraforte dos Capuchinhos, está como ele deixou. Com vários de seus pertences, inclusive a câmera que ele utilizava e três latas de filmes filmados nessas montanhas. Ninguém toca em nada. É patrimônio espiritual.
 
Quem dera tudo isso não passasse de um delírio de uma mente carcomida pela invenção! Uns transportes d'alma, como diz o nosso poeta Farandolino Brouillon. Mas não, ai de nós.
 
Ficção, estimado leitor, é o que se vive na duríssima realidade.  
 
Passo dos Ausentes, território de gentes e voláteis falantes, perdido nas álgidas alturas dos Campos de Cima do Esquecimento. Esta é a cidade. Somos invisíveis.

Os fantasmas andam sobre os telhados,  sentam nas soleiras das velhas casas. Caminham pelas ruas e praças com suas roupas antigas, suas mantas, seus olhares distantes, seu silêncio. Aqueles que gostam de ler e filosofar passam as tardes no Café da Ausência, conversando entre si sem dizer palavra e mirando o Vale do Olhar.
 
Este é o mundo onde vivo e escrevo, raro leitor. Recolho as histórias dos seres que povoam esse pequeno universo. Sou apenas o confidente de um mundo em extinção e seus habitantes.

Escritos disparatados em que almas do outro mundo conversam com os vivos, afirmam com galhofa os doutos e os de pouca fé. Pois é o que eu digo: todas essas criaturas pertencem ao mundinho que é, afinal, toda a Terra.
 
Sou apenas o interlocutor, o escrevedor, a antena torta que capta essas vibrações. Se não resgatar esse mundo da sombra e do oblívio, quem o fará?
 
O único personagem de ficção que povoa essas histórias é o autor dessas mal traçadas.

O inverno é feito de espessas neblinas, vultos, remorsos, folhas secas, memórias. E esperança. Sim, esperança. E uma pitada de canela no chá de maçã.

O que não está escrito não existe. É o que me dizem as estrelas no seu infinito, é o que eu sinto vivendo no farelo das horas. Como se alguém se importasse com essas migalhas. 
 

terça-feira, 24 de junho de 2014

Por quem choras, Maria Filipa?

Jorge Adelar Finatto 

photos: j.finatto. Amsterdam


Por quem choras, Maria Filipa?

Quem mastigou teu coração e depois cuspiu no fundo das águas?

Estás sentada ainda à beira do canal, na tarde de outono, em Amsterdam?

Me olhaste com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco casual, numa cidade distante e povoada de ausência, eu nada fiz naquela hora.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um canal e outro, um deserto e outro.
 
Devia ter me jogado nas águas turvas da tarde de domingo. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

photo: j.finatto.

Devia ter ficado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada esperar. Exceto talvez dizer e receber um pouco de consolo.

A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes do mundo, me olhaste.
 
Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz, egoísta. Por um instante tuas lágrimas diminuíram e pude perceber que teus olhos me seguiram. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde as mãos pálidas repousavam.

O barco sumiu sob as pontes atravessadas pelos ventos de novembro. Eu dentro dele.
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
 
photo: j.finatto
 
 
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Texto revisto, publicado antes em 16 de outubro, 2012.

domingo, 22 de junho de 2014

O Lobo Antunes perdido

Jorge Adelar Finatto

 
E aqui ando eu, todo arrepiadinho, a esgalhar uma crônica. Estamos em janeiro, este lugar é frio como o caraças, tenho as mãos geladas. As pernas também. Não despi o sobretudo. De vez em quando o telefone aos gritos: não atendo. Se calhar morri.

António Lobo Antunes, Quarto Livro de Crônicas, p.  325, Publicações Dom Quixote, Portugal, 2011.

Tem gente que passa a vida a ler livros. Eu não alcancei essa ventura. Sempre li quando pude, nos interstícios entre o trabalho, o cuidado da família, os estudos, a leitura de livros técnicos a que a profissão obriga. 
 
Li obras importantes enquanto levava os filhos pequenos na pracinha. Meu filho mais velho aprendeu a andar de bicicleta enquanto eu lia A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e Angústia, de Graciliano Ramos. A filha brincava na areia com baldinho e pá enquanto eu lia O Nome da Rosa, de Umberto Eco.
 
Inventava tempo para ler. Valeu a pena, e como! As horas mais intensamente vividas foram essas com os filhos e os livros.
 
Levo sempre um livro comigo. É um antídoto para o tédio e a angústia das salas de espera, das filas, dos aviões. E uma boa companhia no território republicano dos cafés. Raramente sento à mesinha sem um livro.
 
Por conta desse hábito, sofri um duro prejuízo há uma semana. Fui a um café na cidade de Gramado. Antes de entrar resolvi pagar uma conta no caixa-eletrônico do banco. Coloquei o livro sobre a máquina enquanto manuseava o cartão e o documento. Pendurei ao lado o guarda-chuva (chovia bem naquele sábado, 14/6/14). Fiz o pagamento e saí.
 
Sentei à mesa perto da janela, um vasinho de violeta ao centro, pedi um cappuccino. O costume. No instante em que fiz o gesto de abrir o livro, o quinto volume das crônicas do António Lobo Antunes (que trouxe de Lisboa, não existe no Brasil), me dei conta de que o esquecera na agência bancária.
 
Abandonei o cappuccino fumegando na xícara e me fui rua afora, apressado no frio e na chuva,  com o coração aflito. Inútil. O livro não estava mais lá. Não havia ninguém na agência (fechada no fim de semana).
 
Nos poucos minutos que durou o meu esquecimento, alguém tomou o Lobo Antunes e escafedeu-se. Aquilo estragou meu dia. Durante a semana, fiz contatos com o banco para saber se a criatura tinha devolvido o livro. Não.
 
Em suma, perdi o Lobo Antunes que busquei do outro lado do Oceano Atlântico. Não tenho sentimentos negativos em relação a quem me levou o livro, mas também não vou testemunhar a seu favor no Juízo Final, pelo contrário. O mínimo que lhe desejo é um judicioso purgatório.
 
Como diz o ditado, mais tem Deus a dar que o diabo pra tirar. Trouxe na mala, também, o volume 4 das crônicas. Isso serve de algum consolo. Tenho lido vários livros nos últimos tempos, mas sempre, no intervalo entre uns e outros, pego na estante as crônicas do Lobo.
 
Criou-se entre mim e esse autor - um animal solitário na floresta de palavras a percorrer iluminadas trilhas e a descobrir cálidas fontes - um encantamento, uma cumplicidade, que só a literatura consegue explicar. E nisso ninguém toca.
  

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O aborto e o Papa

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto, janeiro, 2010
 
O presente artigo foi escrito e publicado em março de 2010. Pelas questões que suscita, republico-o, acreditando que vale a reflexão sobre um tema tão importante quanto delicado. Observo que em dezembro de 2012 o Uruguai aprovou a lei que autoriza a interrupção voluntária da gravidez no prazo de até doze semanas de gestação ou 14, em caso de violação. Foi o segundo país a descriminalizar o aborto na América Latina; o primeiro foi Cuba.
 
A frase na parede de um prédio público, quase à beira do Rio da Prata, me fez parar sob um sol forte, a poucas quadras do belo e tradicional Teatro Solis, em Montevideo, em janeiro passado.
 
O Uruguai é um país de gente que lê, opina, discute, participa. O que me motivou a fotografar?
 
Primeiro, o argumento. Se o Papa fosse mulher, uma papisa, portanto, a questão do aborto teria mesmo outro tratamento? Será que a compreensão do problema do aborto é uma questão só de gênero?
 
Segundo, eu não tenho opinião definitiva sobre o assunto e não faço julgamento moral a respeito. O que eu queria é entender.
 
O grafite montevideano expressa a opinião de milhões e milhões de mulheres no mundo inteiro.

O aborto é, com efeito, uma questão de gênero. Mas não só. Gerar ou não uma vida no próprio ventre é, em boa medida, uma decisão da mulher, por diversas razões.
 
A rejeição da gravidez ou a omissão dos homens em relação ao fato é uma delas.
 
A legalização do aborto é uma das faces de um problema maior, mas está longe de ser a principal.
 
A afetividade, a sexualidade e a responsabilidade pela geração da vida estão intimamente ligadas. Fazer sexo, sexo casual, é diferente de fazer amor.
 
A indústria da propaganda, em geral, separa o corpo e o sexo do resto. Existem corpos lindos, mas não existe espírito nesses corpos.
 
Corpos maravilhosos de mulheres são utilizados para vender qualquer coisa. O mesmo também acontece agora com corpos masculinos.
 
A erotização começa na infância, através dos comerciais, filmes, programas, séries e novelas de televisão.
 
Coisas como compromisso nas relações, autoestima, estima e respeito pelo outro são tratadas de maneira residual.
 
Em vários países o aborto foi legalizado.
 
No Brasil, a discussão permanece e sua prática ainda é crime, salvo nos casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resultar de estupro (desde que precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal).
 
Dizem os defensores da legalização que mulheres pobres, que não querem mais ter filhos, muitas vezes são levadas a fazer aborto em condições sub-humanas, longe do sistema público de saúde, com elevado índice de letalidade, enquanto mulheres com boas condições econômicas pagam por procedimentos particulares e recebem melhor atendimento.
 
Informação do Ministério da Saúde estima em 1,4 milhão de abortos clandestinos no Brasil por ano, conforme dado colhido do site Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
 
Dizem também os defensores do aborto que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo.
 
Os que são contra a autorização afirmam que a mulher não pode interromper uma vida que já não lhe pertence, mas é de outra pessoa depois da concepção.
 
Eu não sou especialista no assunto, mas também não sou hipócrita.
 
O aborto é um tema a ser tratado por toda a sociedade, mulheres e homens.
 
Tratado, sim, mas num espectro mais amplo do que a mera legalização, que, pelo que vejo, acabará acontecendo.
 
Está na hora de pensar a sexualidade humana de modo mais responsável, penso eu. Isso é mais do que simplesmente distribuir milhões de camisinhas (preservativos) no carnaval e achar que está tudo certo (como órgãos de saúde pública costumam fazer no Brasil).

Creio que se faz necessário criar redes de apoio a gestantes, substituindo a ameaça da criminalização pelo diálogo acolhedor, pela orientação assistencial. E o Estado deve preparar o sistema de saúde para receber e tratar situações de aborto a fim de evitar que tantas vidas sejam perdidas ou mutiladas,
 
Este grafite na parede de um edifício, em Montevideo, sob o sol escaldante do Rio da Prata em janeiro de 2010, me fez parar e tentar entender.

 
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Texto atualizado, publicado anteriormente em 9 de março, 2010.