sábado, 14 de março de 2015

L'autre à Mont (Lautréamont em Montevideo)

Jorge Adelar Finatto

Río de La Plata entre edifícios, Montevideo. photo: jfinatto
 
Sí, cuál es el más profundo, el más impenetrable de los dos: el océano o el corazón humano? ¹

                           Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont
 
UMA viagem só é boa quando voltamos diferentes pra casa. Quando algo bom, novo ou há muito esquecido, passa a respirar na nossa sensibilidade.
 
A arte é um tipo particular de viagem. Como as viagens reais, tem poder transformador. De um jeito ou de outro, é preciso viajar, deixar-se tocar: mudar. Tirar o coração e o pensamento do lugar-comum.
 
Em Montevideo, fiz uma expedição à rua onde viveu - até os 13 anos - o Conde de Lautréamont, nom de plume de Isidore Lucien Ducasse (1846-1870), poeta de vida obscura, futuro papa profano do Surrealismo. Ele é autor do estranhíssimo, belo e terrível Les Chants de Maldoror (Os Cantos de Maldoror). Filho de pais franceses que foram trabalhar e morar no Uruguai, nasceu em Montevideo, em 4 de abril de 1846, tendo ali vivido até o início da adolescência.

Única photo conhecida de Isidore Lucien Ducasse,
fonte Wikipédia

Uma tarde de sol, lá me fui a bordo do chapéu de palha encontrar o jovem bardo na Calle Camacuá, 544.

A rua Camacuá é pequenina. Diante dela estende-se, a perder de vista, o Río de La Plata. Fica na ciudad vieja. Chegando ao local, constatei que não existe mais a casa 544 onde ele morou. Em seu lugar apenas um edifício modernoso. Nenhuma placa alusiva ao imaginário conde. Do outro lado da rua, um terminal de ônibus e, depois dele, a Praça Espanha com suas palmeiras conversando com o vento, e logo adiante o rio.

No fim da Camacuá, bifurcam-se velhas ruas e, nelas, habitam prédios muito antigos. Por elas certamente andou o jovem Ducasse quando, aos 21 ou 22 anos, retornou a Montevideo para visitar o pai que o sustentava enquanto vivia, estudava às vezes e escrevia na França. Provavelmente nessa época já tinha concluído Les Chants. De sua vida pouco se conhece.

Eu sei muito pouco a respeito do estranho Isidore: a mãe morreu quando ele contava cerca de um ano. Ele gostava muito de ler na ampla biblioteca do pai. É certo que leu os principais autores de seu tempo. Eis o que diz dos Cantos:

Cantei o mal como fizeram Misçkiéwickz, Byron, Milton, Southey, A. de Musset, Baudelaire, etc. Naturalmente exagerei um pouco o diapasão para fazer algo novo em relação a esta literatura sublime que não canta o desespero senão para oprimir o leitor, e fazê-lo desejar o bem como remédio. (Eu cantei o mal...) ²

Era um rapaz alto, magro, vestia-se bem, carregava muitas coisas dentro da cabeça. Coisas pouco corriqueiras, de espantar. Uma revolta contra Deus, e uma náusea de viver e da humanidade que não se sabe qual a origem.

Río de La Plata. photo: jfinatto. vista da Calle Camacuá

O pseudônimo teria sido inspirado pela obra Lautréamont, de Eugène Sue; outros acreditam que significa o outro em Montevideo  (L'autre à Mont (evideo). Um mistério entre tantos.

O seu texto jorra do inconsciente.

Seriam os Cantos a antevisão literária dos tempos sombrios que vinham pela frente com suas guerras sangrentas (Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Guerra do Vietnã), tiranias terríveis (Stalin na União Soviética, ditaduras sul-americanas) e violências rotundas contra o ser humano (todos os dias em todas as cidades do mundo)? Seriam a consciência crua e desesperançada da presença do homem na Terra? Quem sabe?

De qualquer forma, alguns o consideram mais importante do que Arthur Rimbaud.

Na livraria Más Puro Verso, na Peatonal Sarandí, comprei uma edição espanhola dos Cantos pra reler no hotel. Não lia Lautréamont há mais de 30 anos.

Depois de não encontrar a morada do fictício Conde, fiquei um tempo observando a expansão azul do rio. Imaginei-o caminhando pelas calçadas, à sombra de escuras paredes, sonhando em fugir da cidade, do mundo, de si mesmo. Mastigando seus desertos e sua triste poesia.

Por fim, entrei num restaurante e bebi um Medio y medio (vinho branco suave, frisante, tradicional do Uruguai), em memória do poeta Lautréamont, morto em solidão e anônimo, às 8 da manhã da quinta-feira, 24 de novembro de 1870, na rua Faubourg-Montmartre, 7, Paris, ninguém sabe de quê, aos 24 anos.
 
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¹Los Cantos de Maldoror - Poesías. Isidore-Lucien Ducasse, Conde de Lautréamont. Editorial Gredos, Madrid, 2004. Introducción por Luis A. de Villena. Trecho da pág. 59.
² idem, pág. 8, tradução livre de JA Finatto. Fragmento de Carta do poeta ao editor Verboeckhoven.
Leia também "Lautréamont y el surrealismo", por Mónica Marchesky:
http://www.monografias.com/trabajos75/lautreamont-surrealismo/lautreamont-surrealismo2.shtml
 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Jasmim do meu jardim

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
O jasmineiro é a prova viva de que nem tudo está perdido. E de que pode haver vida em meio ao caos. Ninguém está livre de encontrar uma flor de jasmim pelo caminho e salvar o seu dia.

É preciso resgatar alguma coisa viva entre os escombros.

Do meu jardim vem esse perfume. As pequenas flores brancas gostam de subir pelo tronco das árvores junto ao escritório.
 
Em tempos de crise profunda, o jasmineiro funciona normalmente, suas flores espalham aroma e graça, sem nada exigir em troca.

Bem-vindas, criaturas de luz e bondade!

É talvez egoísta falar do próprio jardim num momento desses. Mas hoje eu não consigo falar de outra coisa. O mundo está nublado. Por aqui, o Brasil derrapou na curva e saiu da estrada.

Há um sentimento estranho no ar. Não consigo vislumbrar claridade e esperança. Só vejo breu.

Mas o tempo ensina que tudo passa.
 
Enquanto não, eu falo de flores. Desculpem. Se aí do outro lado você consegue sentir um pouco desse perfume e dessa frescura, eu me dou por satisfeito.

O sujeito pode andar desiludido, cansado, revoltado com tanta corrupção no país e com tanta falta de vergonha na cara, pode até querer ir embora ou partir num foguete para as estrelas, mas ainda assim nunca poderá ignorar o perfume etéreo do jasmim (serve ao menos de consolo nessa hora tremenda).

O jasmim é a clara evidência de que, apesar de tudo, ainda há validade na vida. Ele existe para nos levantar do subsolo, iluminar esses dias cinzas e repletos de incerteza. 
 

segunda-feira, 9 de março de 2015

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
A rua São João era a nossa Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o nosso destino era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.

A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa, quando era menino, e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, migalha a migalha, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia como acontecia com freqüência com os familiares de carne  e osso.

Os livros retirados da biblioteca pública, por empréstimo, eram parentes longínquos. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham freqüentado.

Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

De uma espécie particular de eternidade eram feitos os livros.

O mundo de tinta e papel espantava os fantasmas que habitavam o sótão. O menino sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.
 
Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas velhas eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas, "o pai dos pobres", ocupava o centro da parede da sala de jantar.

A janela do quarto de dormir olhava o mundo e o mundo era um lugar muito distante.

João era o nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus. Nela escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a ilha do nosso apocalipse.

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Texto revisto, publicado no blogue em 27, out, 2011.

sábado, 7 de março de 2015

Até que a morte nos separe

Carlos Alberto de Souza

pintura de Graça Craidy 
 
 
O feminicídio (assassinato de mulher por razões de gênero) já foi aprovado pelo Congresso Nacional para constar como homicídio qualificado no Código Penal, aumentando a pena e tirando privilégios dos agressores. A matéria agora aguarda apenas a sanção da presidente da República. Neste Dia Internacional da Mulher, a questão é abordada na exposição Até que a morte nos separe, da artista plástica gaúcha Graça Craidy.

No domingo (8/3), no Centro Cultural Zona Sul (Rua Landell de Moura, nº 430, bairro Tristeza), em Porto Alegre, ela expõe 18 pinturas (acrílica sobre papel) de mulheres que um dia sonharam com a felicidade no casamento, mas acabaram mortas pelos maridos ou ex-companheiros. Graça, que está selecionada para o Salão de Arte do tradicional Atelier Livre de Porto Alegre, retrata e denuncia essa situação. “Fui movida pela indignação, pela dor da injustiça e por imensa solidariedade a todas as mulheres imoladas em nome de um machismo arcaico”, diz ela, que se baseou em fotos publicadas das cenas dos crimes para produzir suas obras.

No Rio Grande do Sul, em 2013, a cada quatro dias uma mulher foi assassinada; em 75% dos casos, os autores tinham relação de afeto com elas; em Pernambuco, em 2006, 291 mulheres foram mortas, conforme dado publicado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria. O Estado nordestino é apontado pelo Cfemea como o que mais acumula casos de feminicídio no país. Mas, como se sabe, o problema, mais aqui, menos ali, é mundial.

pintura de Graça Craidy
 
Graça Craidy é publicitária por formação, com carreira desenvolvida em Porto Alegre e São Paulo, entre os anos 1970 e 2000. Começou a desenhar em São Paulo e, de volta à capital gaúcha há cerca de dez anos, lecionou a cadeira de Criatividade na ESPM e depois passou a dedicar-se às artes plásticas, ingressando no Atelier Livre de Porto Alegre. Seu trabalho tem sido elogiado por artistas consagrados. Com curadoria de Márcia Morales Salis, essa é a sua primeira exposição individual, depois de ter participado de coletivas.

A exposição será montada em um dos casarões em estilo colonial espanhol do Centro Cultural Zona Sul, que receberá decoração alusiva ao casamento, com metros de tule branco recobrindo suas paredes externas e internas, além de flores, música nupcial e incensos.

Serviço:
O quê: Exposição Até que a morte nos separe
Onde: Centro Cultural Zona Sul (Rua Landell de Moura, nº, 430, bairro Tristeza, Porto Alegre)
Dia e hora: domingo (8/3), das 9h30 às 18h
Entrada franca

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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br

Graça Craidy:
gcraidy@gmail.com

sexta-feira, 6 de março de 2015

A história das bananas (e a tristeza do Brasil)

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
O que restou da esperança em um país melhor e mais justo? O que vemos, nos últimos tempos, é mensalão, petrolão, apenas para ficar entre os escândalos de corrupção mais noticiados.

Será que é isso o que a sociedade brasileira merece? O que será do futuro das nossas crianças e dos jovens diante de tamanha desestruturação ética e econômica?

Não tenho nem nunca tive partido político. Votei algumas vezes no PT, porque admirava sua generosidade e suas bandeiras, entre elas a da honestidade e a do combate às causas da pobreza e das injustiças. Muita gente boa fundou e construiu o partido, muita gente idealista, sonhadora, batalhadora. Mas o ideal daquelas pessoas ficou para trás.

Os tempos mudaram. O PT mudou para pior. É claro que não é só o partido do governo que levou o país a essa triste realidade, há também os outros partidos e todo o desvalor na maneira de fazer política.

Mas do PT se esperava, por históricas razões, um comportamento diferente, uma práxis política alternativa ao sempre foi assim.

O país cai cada dia mais fundo. Ver uma empresa como a Petrobras, orgulho do Brasil, nessa situação calamitosa é um negócio muito sério e deprimente.

O que vai sobrar da empresa estratégica criada por Getúlio Vargas e construída por várias gerações de trabalhadores? Restará alguma coisa aos brasileiros ou tudo será vendido ou simplesmente entregue para cobrir o descalabro gerado pela corrupção?

As conquistas sociais dos últimos doze anos vão desaparecendo diante dos abismos criados pela má gestão. Os efeitos nefastos sobre a economia mal começaram e já se revelam insuportáveis, atingindo principalmente os mais pobres.

Na casa em que fui criado havia algumas regras. Claras, simples, peremptórias: não matarás, não roubarás, não praticarás  falso testemunho, e outras. Os velhos e bons preceitos derivados dos Dez Mandamentos. Deles dimanavam normas de natureza caseira (casa de gente pobre e honesta): por exemplo, eu não podia apanhar bananas do aparador sem pedir autorização. Se o fizesse, o castigo era certo.

Exagero? Pode ser. Mas sou grato por isso. Nunca me passou pela cabeça apropriar-me de qualquer coisa que eu não conquistasse através do esforço, do trabalho, do sacrifício e do mérito.

Não consigo entender como é que alguns se sentem autorizados a lesar milhões e milhões de pessoas se apoderando de dinheiro que não lhes pertence, do que é patrimônio público de uma sociedade que precisa e merece ser respeitada.

Que tipo de educação receberam esses indivíduos, em que valores foram criados, quem foram seus pais? Como conseguem se olhar no espelho e para seus filhos?

Nessas horas, a gente precisa se agarrar em alguma coisa pra suportar. Eu me agarro à história das bananas.

Nos momentos de grave crise, como o presente, o que nos resta são os valores em que acreditamos.

A honestidade, a responsabilidade social e o amor ao país precisam, urgentemente, retornar às práticas do nosso dia a dia. Sob pena de não sobrarem nem as bananas no aparador.
 

terça-feira, 3 de março de 2015

Cinema ou sardinha

Jorge Adelar Finatto

Kodak Kodascope¹
 
Na minha cidadezinha, quando éramos crianças, minha mãe perguntava a mim e a meu irmão se preferíamos ir ao cinema ou comer, com a frase festiva: Cinema ou sardinha? Nunca escolhemos a sardinha. 
                                    Guillermo Cabrera Infante


Quando o Dr. Fredolino Lancaster foi a um congresso de medicina em Londres, no distante ano de 1942, não sabia que, ao regressar, provocaria um grande alvoroço na vida da cidade. Na volta, ele trouxe no baú um projetor para filmes de 16mm em silêncio.

A paixão pelo cinema do médico-mor de Passo dos Ausentes transformou a história da nossa  aldeia.

Ainda não conhecíamos a magia da sala escura e da tela grande. A tela, naqueles dias inaugurais da sétima arte entre nós, era um lençol branco estendido com devoção na fachada de basalto da casa do sábio esculápio.

Eu nem era nascido naquele tempo. Ouvi essa história do próprio Dr. Lancaster, que conta 96 anos e está em plena atividade (doença que ele não cura, esqueça, ninguém mais dá jeito).

O primeiro filme a passar no lençol imaculado foi The kid (O garoto, de 1921), obra do nunca suficientemente lembrado Charlie Chaplin. As sessões aconteciam sempre aos domingos, na rua, ao anoitecer, e cada um levava sua cadeira de casa.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada, nunca perdeu um só filme. Alguém descrevia para ele o que se passava na tela (ou melhor, no lençol).

Anos depois, com a inauguração da Sociedade Filosófica, Histórica, Geográfica, Artística, Antropológica, Astronômica, Geológica, Alquímica e Antropofágica, as projeções começaram a ser feitas na sala escura. Introduziram-se na antessala a pipoca, os sucos, os licores, os doces, e as pessoas iam mais cedo para trocar revistas em quadrinhos e livros. Antigos tempos, bons tempos.

Quando escrevi que Ingmar Bergman passou uma temporada em Passo dos Ausentes muitos estranharam. O fato é que ele era amigo do Dr. Lancaster, sabia do amor do médico pelos filmes e era fascinado pelas histórias que este lhe contava sobre a cidade. A casa em que Bergman viveu aqueles dias permanece como ele a deixou. As três latas com os filmes que fez por aqui estão lá, nunca foram abertas.²

Essas recordações surgem agora porque ando lendo Cinema ou sardinha,³ livro sobre a arte do cinema escrito por Guillermo Cabrera Infante. É uma rara iguaria na qual o grande escritor nos oferece sua paixão ancestral pelos filmes servida num texto delicioso. Um livro rico sobre a história do cinema e sobre obras cinematográficas, tudo temperado com o olhar e o sentimento do notável autor cubano.

Vejamos um trecho:

(...) o resultado final de uma filmagem, o filme, a fita, seja qual for o nome que se dê, é um esforço coletivo, antes de tudo do fotógrafo (não há filme sem fotografia), do diretor, que pode ser um gênio, um megalômano obtuso ou um simples artesão, dos atores e dos técnicos atrás da câmera, do assistente de câmera firme, sagaz, até os anônimos eletricistas, as cuidadosas maquiladoras e os homens e mulheres dos camarins e do guarda-roupa, todos, todos colaboram para fabricar o mesmo produto, que até então era um projeto e agora pertence ao produtor e talvez ao público. p. 3

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¹Projetor Kodak Kodascope para filmes 16mm em silêncio:
http://institutoroquearaujo.blogspot.com.br/2011/05/kodak-kodascope-modelo-b-projetor-16.html
²Sótão, porão e assombração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/12/sotao-porao-e-assombracao.html
³Cinema ou sardinha. Parte 1. Pompas fúnebres. Guillermo Cabrera Infante. Gryphus Editora, Rio de Janeiro, 2013. Tradução de Carlos Ramires

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Peixe vivo

Jorge Adelar Finatto

Guaíba e a cidade. photo: jfinatto
 

Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.

Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.

Esse tempo ficou adormecido como um pôr-do-sol no fundo do rio.

A ditadura civil-militar maltratava os corpos, o desejo, o pensamento. Era noite calada. Proibida a livre circulação da emoção, das idéias. A verdade manchada com tarjas pretas nas bocas e nos jornais.

Mas havia gente que não desistia.

Os pássaros resistiam na praça.

Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.

Eu trazia na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.

Existia um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros, uma saia azul. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz.

Habitavam um lugar claro na escuridão.

O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.

Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.

Tinha aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos, do medo.
 
Coração aberto, peixe vivo.

O azul e branco do céu desenhado nas águas e naqueles olhos.

Um peixe voava entre as nuvens.

Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na Ilha de Pedras Brancas enquanto a cidade dormia.

Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.

A luz amarela do sol escorria entre as folhas e os galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases resplandeciam nas flores dos jacarandás.

Havia uma promessa de primavera. Tinha menos de 20 anos.

De passo em passo o sentimento se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.

Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.

O coração voava colado à esperança.

Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte de mar, o líquido azul infinito.
 
O amor (palavra proibida) navegava ao largo da cidade, sobrevivia ao medo e à morte.

O tempo era noite calada.

Eu tinha menos de 20 anos.

A vida saltava feito peixe vivo.

A estrela brilhava em meu caminho.
 
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Publicado em 22 de dezembro, 2009.