quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A Coruja caiu do ninho

Jorge Finatto

uma das últimas fotos com a Coruja, em Jungfraujoch
 

Raro leitor, uma nota melancólica. Perdi a Coruja, ex-máquina fotográfica, quase um ser humano. Foi dentro do trem, na estação de Berna, cidade onde o linguarudo Albert Einstein formulou a Teoria da Relatividade, e onde existe hoje o seu museu. Me dei conta um tempo depois, já no caminho para Zurique.
 
Companheira de muitos anos, muitas histórias e viagens, perdi a graça e continuo meio perdido, embora saiba que a vida é feita também de perdas. No caso, um objeto material, mas cheio de prosopopeias e significados. Ela era uma extensão do meu olhar e do meu sentimento. Não sei se o serviço de trens da Suíça encontrará e me devolverá a Coruja.
 
Ela deve estar profundamente desapontada comigo, e eu também estou. Sabe-se lá onde está, com quem está agora (como na letra de Chove lá Fora, do grande Tito Madi).
 
Se for pra ficar na Suíça, que seja ao menos com uma boa pessoa, é o que espero. Neste momento, não ouso sequer cogitar trocá-la por outra.
 
Faz frio e sinto saudade, olhando a neve da mansarda. A esperança continua.

uma das últimas fotos com a Coruja
 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Caminhos brancos

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
As paisagens da Suíça chegam a doer nos olhos de tão belas. Este é o país dos rios e lagos abundantes, das fontes de água potável nas cidades. O país das montanhas verticais tocando o céu, da neve espalhada no inverno, das casas em estilo relógio cuco. Da cortesia, da familiaridade. Onde as coisas públicas são feitas para funcionar para todos, e bem.

A Suíça dos trens, sim, dos trens coloridos que parecem de brinquedo, circulando em toda parte, ondulando nos alpes e vales, cruzando pontes, encostando nas nuvens. Um país simples de se percorrer, pois tudo é bem explicado, pontual e, se o cristão se atrapalha, há sempre alguém por perto para tirar a dúvida, com educação e quase sempre com simpatia.

Passei o dia fazendo um passeio à montanha de Jungfrau, onde se situa a estação de trem mais alta da Europa, Top of Europe, em Jungfraujoch (passo entre as montanhas de Mönch e Jungfrau). A elevação alpina tem mais de 4 mil metros de altura. A estação está a 3.454 metros.
 
Chega-se lá depois de pegar três trens a partir da cidade de Interlaken onde estou. Como os suíços conseguiram construir estradas de ferro na borda de abismos desta magnitude é algo que espanta. Uma maravilha tecida por mãos e mentes obstinadas. Um prova de que o querer é a arma mais poderesa que um indivíduo e uma sociedade têm a seu dispor. E um monumento ao espírito humano.
 
Existe, nestas alturas solitárias, na imponência destas montanhas tapadas de chantili, uma ideia de que homem e natureza devem conviver e respeitar-se. E que ambos perdem o sentido quando rompem o pacto.
 

sábado, 30 de janeiro de 2016

Lucerna, für dich

Jorge Finatto

photo. jfinatto, 30/1/2016. Ponte da Capela
 
Lucerna é uma luz transparente se derramando no ar, é a velha Ponte da Capela (Kapellbrücke, de 1332), de madeira, atravessando o lago, com a Torre da Água ao lado, são as montanhas cobertas de neve no entorno azul e branco que emoldura a cidade.

Uma passagem de luz (como diz seu nome), um presente para os olhos e o coração. Um pedaço. Como dizem por aqui, onde se fala o alemão, um lugar für dich (para você).
 
No meio da tarde, ouço uns batuques de tambor e alguns instrumentos de sopro. Vou ver. É um pessoal jovem fazendo seu carnaval na rua. Carnaval de suíço, discretíssimo. Mas as fantasias são ótimas. 

photo: jfinatto, Lucerna, 31/1/2016
 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Viagem a Jungfrau (e a uma cidade secreta)

Jorge Finatto
 
montanha e vale de Jungfrau, Suíça*
 
Como em toda véspera de viagem, há uma ansiedade diante do desconhecido, embora a mala esteja pronta e tudo ou quase tudo esteja planejado. A sequência dos movimentos, como em uma sinfonia, ou num bom samba, está descrita nas páginas brancas do calepino. Mas há espaço para o inesperado e algum improviso.
 
Há algo que escapa ao controle numa viagem, felizmente. Na verdade, o controle é mais ilusório que real. E nisso muitas vezes residem as descobertas e alegrias do viajante. O avião levanta voo à noite. Depois de 11h35min pousa em Zurique. Zurique do Cabaret Voltaire onde nasceu o Dadaísmo há 100 anos, movimento artístico que hoje retorna.
 
Então fui ontem à livraria buscar leitura para as horas entre nuvens até a Suíça. Resolvi comprar outro livro de Oliver Sacks, tal a impressão que me causou seu Gratidão aqui comentado esses dias. Desta vez pesquei da estante O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Relatos de casos curiosíssimos envolvendo o cérebro humano. Nos ensaios o autor transcende o fato médico, dando-lhe feição literária. Acima de tudo, uma visão humana de pacientes e seus dramas. Para Sacks, o doente é sempre um ser humano e não uma coisa.
 
Levo também Como curar um fanático, de Amós Oz. E a indefectível Coruja (ex-máquina fotográfica, quase um ser humano).
 
No caminho uma parada na montanha de Jungfrau, perto da cidade de Interlaken, onde se situa a mais alta estação ferroviária da Europa Ocidental, a 3.571 metros de altitude.
 
E a visita a um amigo que vive numa cidadezinha alpina quase secreta, cuja população é de 156 almas! Ele me pergunta se eu viveria num lugar assim. Mas é claro. Nada de muito diferente para quem vive em Passo dos Ausentes.
 
Carrego na bagagem olhos de observador ávido e um coração disposto a sentir. Deus vai junto, claro.
 
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*site da photo:
 

sábado, 23 de janeiro de 2016

O salto no perau

Jorge Finatto

photo: jfinatto

A história de voar pendurado num guarda-chuva é muito antiga nos Campos de Cima do Esquecimento. Começou muito antes do livro e do filme de Mary Poppins.

Criou-se entre nós uma modalidade de voo que só existe nessa região do mundo: o salto de guarda-chuva no perau. Acontece há séculos no mês de novembro, com a chegada dos ventos de Finados com sua capacidade de sustentação de objetos voadores.

Os praticantes do salto não são poucos. Dirigem-se ao Belvedere da Ausência com suas umbrelas construídas por mestres na arte de fazer guarda-chuvas flutuantes.

Os umbreleiros verificam então as varetas, a lubrificação das junções, a higidez do material, o tecido e a segurança da estrutura. É necessário apresentar também um atestado de saúde. Uma vez aprovados piloto e objeto, segue-se a  apresentação ao supervisor de rampa para o pulo.

Depois, é só aguardar a autorização e lançar-se no espaço com as duas mãos seguras ao cabo. A flutuação é pra ser suave e dura cerca de 20 minutos até o Campo dos Girassóis no Vale do Olhar. No transcurso o piloto percorre 1,5 km precipício abaixo. Dizem - eu nunca experimentei, não sou louco - dizem que  a visão de quem faz o trajeto é maravilhosa, inesquecível.

Numa aldeia com poucas opções de lazer como a nossa, o salto no perau é certamente uma das atividades mais cultivadas. Além disso, é imemorial o apreço dos ausentinos pelos chapéus-de-chuva. 
 
Entre nós, um guarda-chuva fechado é sinônimo de mau agouro. É como uma pintura de Van Gogh virada contra a parede. É a Gioconda, de Leonardo, sem o famoso sorriso. É Dom Quixote indo sozinho pela estrada sem o Sancho.
 
Ninguém deve andar pela vida sem a proteção física e filosófica de uma umbrela. Nos dias de chuva e tristeza, porque chove e estamos tristes; nos de sol, porque faz sol e viver é o melhor que existe.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Gratidão

Jorge Adelar Finatto
 
Oliver Sacks. photo: Jurgen Frank/Corbis. The Guardian¹ 

Não consigo fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca, li, viajei, pensei, escrevi. Tive meu intercurso com o mundo, o intercurso especial dos escritores e leitores.
 
Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal que pensa, neste belo planeta, e só isso já é um enorme privilégio e uma aventura.²
                                
                                          Oliver Sacks
 
A descoberta do escritor e médico neurologista britânico Oliver Sacks (Londres, 1933 - Nova Yorque, 2015) aconteceu na semana passada. Estava na livraria quando vi na estante seu livro Gratidão. Comecei gostando do título e de sua capa branca, enlaçada com uma linda ilustração em forma de cinta.
 
O formato delicado e as letras de bom tamanho (para quem usa lentes de fundo de garrafa é uma bênção) fizeram com que abrisse e lesse algumas linhas. Foi o quanto bastou para lê-lo de um só fôlego nos dias seguintes, sorvendo cada palavra com calma e meditação. Como passei tanto tempo sem conhecer este autor?
 
Continua em seguida (agora vou sair e dar uma caminhada neste fim de tarde).

Voltei. A obra compõe-se de quatro ensaios publicados originalmente no jornal The New York Times, entre 2013 e 2015, ano de sua morte, em 30 de agosto. Escritos nos últimos dois anos de sua vida, Oliver Sacks reflete sobre a vida, a velhice, a doença terminal e a morte. E o faz com sentimento, lucidez e generosidade, sabendo que estava próximo da maior perda que um ser humano pode experimentar, a própria finitude.
 
Não há melodrama nestas linhas, nem vulgar apelo à emoção do leitor. Mas o autor tampouco sonega seus sentimentos, não tem vergonha deles. Escreve com naturalidade, sinceridade, como se estivesse conversando com as pessoas no sofá de sua casa, a bela casa de sua alma.

São pensamentos de quem sabe que se despede da vida e que, tudo somado, só tem gratidão em suas derradeiras palavras. Não omite a dureza do vivido, mas sente que, acima de tudo, houve troca, gentileza, amor e dádivas recíprocas com seus semelhantes. Viveu e viver valeu a pena.

Com várias obras publicadas, professor emérito em sua especialidade, este cientista-poeta abriu caminhos. O livro Tempo de despertar, de 1973, inspirou o filme homônimo com Robert De Niro e Robin Williams (fazendo o papel do Dr. Sacks num hospital, história real e extraordinária).

A luz que dimana das páginas de Gratidão é daquela espécie que nos faz bem, que nos sereniza, que nos faz querer ser o nosso melhor, sabendo que cada um é único em sua passagem pela vida e tem uma contribuição importante a dar.

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¹ The Guardian
 
² Gratidão. Oliver Sacks. Tradução de Laura Teixeira Motta. pág. 30. Companhia das Letras. São Paulo, 2015.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Coração e vento

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 

Para onde vão esses ventos andarilhos?

Depois do mergulho no Contraforte dos Capuchinhos e das subidas vertiginosas pelos paredões de basalto, onde se aninham esses pobres ventos desamparados?

Os sonhos que sonhamos, nos aposentos secretos da noite, e que, ao amanhecer, nos deixam, onde vão habitar?

E a página do caderno antigo onde escrevemos o mais puro verso, em que perdida gaveta se escondeu?

Em que caverna dormem as estrelas cadentes, depois que sua luz e seu calor desaparecem?

Para onde vai meu coração quando não estás mais aqui, quando as luzes da rua se apagam e não consigo mais sonhar?