domingo, 28 de fevereiro de 2016

Pegadas na neve

Jorge Finatto 

photo: jfinatto

Na tarde a neve cai mansamente na ruazinha. Espalho a cortina sobre as vidraças da mansarda. Desço a escada de madeira escura e entrego a chave na portaria da pousada. Uma lareira com chamas ocre-alaranjadas ilumina o ambiente. 
 
A senhora de cabelo branco, um pouco sonolenta, recebe-a e deseja um bom dia. Saio pelas vielas de Lucerna, ruminando névoa.

A tosse seca dos últimos dias amenizou. É preciso caminhar. Os flocos brancos se depositam sobre o capote e o chapéu.

Eu tenho amor pelos que partiram. Olho as pegadas no caminho. Nunca esqueço. Não fui feito para o esquecimento. Ninguém foi. Várias pessoas amadas morreram. Alguns amigos e amigas se dispersaram na nuvem dos dias. O sentimento ficou. Todos estão comigo. Somos como a bruma.¹
 
Se o pássaro imagina que é seu último voo, não vai sair do ninho. Se alguém pensa que é o último abraço, vai hesitar. Então é melhor viver o momento como se fosse eterno. Será que não é? E se Einstein estiver certo e a noção de passado, presente e futuro for só uma ilusão? E se, como querem os eternalistas, os três existirem simultaneamente?²
 
Na dúvida, devemos viver como se a morte fosse uma hipótese remota. Como se o fim já não existisse, pelo menos não agora. Como se viver dia após dia fosse tudo que nos resta. E seguir andando.

Caminhamos deixando pegadas na neve. 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Castelo dos Mouros, Palácio da Pena, Glauber Rocha, Café Saudade

Jorge Finatto
 
Palácio da Pena (fragmento). photo com celular: jfinatto, fev. 2016
 
Um passeio à cidade de Sintra, cercanias de Lisboa, poucos dias antes de voltar à Suíça. Levei o filho adolescente para conhecer o Palácio da Pena. Ele, depois, insistiu em me levar a subir as escadas escarpadas das muralhas do Castelo dos Mouros, coisa que nunca havia feito em visitas anteriores.
 
Resquício e testemunho da rica presença árabe na Península Ibérica, do castelo, construído no século IX, restaram as ruínas do que foi. Ruínas bem cuidadas, com espaços restaurados e história resgatada. Virou Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.

É o que sobrou depois de tantos séculos em que, além da vida cotidiana no escorrer da ampulheta, ocorreram batalhas e desastres naturais no local. Escavações arqueológicas identificaram objetos da Idade do Bronze, da Idade do Ferro e do Neolítico, entre eles um vaso cerâmico completo do 5º milênio a.C..

Judeus viveram no local, no século XV, até sua expulsão de Portugal.
 
Na metade da subida, pensei em desistir. É muito íngreme e é preciso ter sobra de fôlego paga chegar até a parte mais elevada das muralhas. Ao descansar entre as ameias, percorrendo o caminho das torres, procurei não olhar para baixo.

Castelo dos Mouros. photo com celular: jfinatto, fev. 2016
 
Mas Deus é pai e não abandonou este seu pobre servo. Deu-me forças para seguir adiante. Seria um vexame ficar cá embaixo vendo o filho subir sozinho às alturas (na minha cabeça, os filhos estão sempre necessitando de nós, embora isso não seja verdade). Por fim, a visão que se tem no alto compensa o esforço.

photo com celular: jfinatto, fev. 2016
 
O Palácio Nacional da Pena, construído no século XIX pelo rei Fernando II, é uma obra arquitetônica notável, no alto da Serra de Sintra. Vale a visita, mostrando como viviam os nobres. O lugar é rico em equipamentos, alguns avançados para a época. Os espaços são generosos e requintados. Um luxo. A realeza nunca passa mal, ao contrário do povo. A desgraça de sempre.

Palácio da Pena. photo com celular: jfinatto, fev. 2016
 
Um grande cineasta brasileiro viveu em Sintra seus últimos dias, Glauber Rocha. Imagino que ele talvez tenha feito imagens da bela pequena cidade. Se o fez, devem ser muito interessantes.
 
Na volta, paramos no Café Saudade, perto da estação de comboios. O lugar é perfeito para provar as iguarias locais, doces ou salgadas; tem conforto, o atendimento é bom e os preços são bem razoáveis. E, como diz o nome, deixa saudade.

Café Saudade, fachada. photo: Saudade.pt*

Sintra vale o olhar. Com sua gente, vielas, casario, monumentos e palácios, além da serra, donde se avista o mar. Fica a um pulo de Lisboa, passeio de trem. Uma viagem no tempo e na beleza.

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*Café Saudade:
http://saudade.pt/en/contact_us/
 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Coruja: o retorno ao ninho

Jorge Finatto

trem suíço. fonte: swisstravelsystem*
 
Pois fui ao escritório dos Caminhos de Ferro Suíços, no aeroporto de Zurique, conforme e-mail que me mandaram, a fim de buscar a Coruja, ex-máquina fotográfica, quase um ser humano.

Tinha perdido dentro de um trem em Berna, conforme já aqui relatado. Dentro do estojo tinha canetas, carregador, cabo usb, um calepino.

Estava tudo como quando perdi. Paguei 20 francos suíços, cumprimentei-os pelo trabalho e fui comemorar com um café ao lado, feliz da vida. Agora ando com a Coruja a tiracolo. A partir de hoje paro de fotografar com o celular.

Viver numa sociedade regrada pelo princípio da confiança e da solidariedade social faz toda a diferença. E como faz bem ao coração.

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Swisstravelsystem:
http://www.swisstravelsystem.com/pt/highlights-pt/rotas-panoramicas.html
 

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Outros olhares

Jorge Finatto
 
photo com celular: jfinatto. Alpes suíços, fev. 2016
 
É preciso ver além do olhar. Há algo nisso tudo (gente, natureza, coisas) que só se enxerga com a lente do sentimento. São os olhos interiores, as visões subjacentes, aquilo que só a intuição desvela. Olhos invisíveis, olhos de dentro.
 
Como disse Antoine de Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe, pela boca da sábia raposa: "Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos".
 
Lisboa, manhã de sol. Sol frio, depois de vários dias de chuva, vento e neblina. Uma luz azulada toca os telhados ocres, as paredes, as ruas. Do quarto de hotel, avisto o Tejo.
 
Após o pequeno almoço (café da manhã), vou ao shopping Amoreiras comprar dois livros que ficaram faltando durante esta passagem por Portugal. São eles: Lisboa by sketchers, desenhos de vários autores do coletivo Urban Sketchers Portugal, e Lisboa, modos de habitar, poemas de Domingos Lobo.

Há três boas livrarias no Amoreiras, além de bancas de jornais e revistas: Bulhosa, Bertrand e Fnac. Fiz meu farnel de livros nelas, na Casa Fernando Pessoa, na Livros Cotovia e na Livraria Sá da Costa, da Rua Garrett, no Chiado, hoje um alfarrabista.

Livraria Sá da Costa. photo: jfinatto
 
No aeroporto, tomo um café no Starbucks. Lá escuto uma música que me passa profunda doçura. Pergunto quem canta. Um dos atendentes (todos muito gentis) vai lá dentro e traz por escrito:  conjunto The Stylistics, disco Round 2, 1972, e a música é You're as right as rain* (de Thom Bell e Linda Creed, na interpretação maravilhosa de Russell Thompkins Jr. A letra fala num encontro em que a pessoa amada é tão certa, tão suave (faz tão bem) como a chuva num dia de verão).
 
O avião aproxima-se de Zurique. Pela janela vejo a majestade do Matterhorn tapado de neve e com os últimos raios de sol do entardecer.

Uma pintura inesquecível. Retorno à mansarda na álgida montanha. Vou beber um vinho, ler um pouco diante do fogo.

Felicidade é um abraço cálido (e o resto não importa).  
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You're as right as rain:
 

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Um passeio de coche

Jorge Finatto
 
Museu Nacional dos Coches, Lisboa. photo com celular: jfinatto, fev.2016
 
Eis algumas fotos de carruagens do Museu Nacional dos Coches, em Lisboa. Fiz com o celular depois que perdi a Coruja num trem em Berna. Boa viagem!
 
photo com celular. jfinatto, fev. 2016
 
photo com celular: jfinatto, fev. 2016
 
photo com celular: jfinatto, fev. 2016
 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Fernando Pessoa viajando no elétrico em Lisboa

Jorge Finatto
 
pintura: Mário Linhares. foto com celular: jfinatto
 

Estive revisitando o Museu Nacional dos Coches, em Lisboa (fui lá pela primeira vez em 2002), sempre um programa interessante. São carruagens muito antigas, com exemplares a partir do século XVI em diante. Pelo que li, não existem iguais em nenhum país da Europa. Na França, por exemplo, teriam sido destruídas durante a famosíssima Revolução de 1789.
 
Certos coches são tão formosos que dá vontade de sentar neles e sair rodando pela cidade, como faziam os nobres e prelados daqueles tempos. Existem alguns construídos especialmente para crianças. Não estou a justificar a monarquia nem privilégios (ainda em voga em várias repúblicas atuais). Penso na beleza e técnica construtiva dos objetos em si, produtos da criatividade humana. Numa época em que motores estavam longe, muito longe de existir, e o transporte de tração animal era a regra, andar de coche era uma necessidade e um luxo. Mais adiante publicarei imagens que colhi no local.
 
No mesmo museu, visitei a exposição de pinturas do artista português Mário Linhares, as mesmas que ilustram o livro de Fernando Pessoa intitulado Lisboa, o que o turista deve ver. São desenhos de fino traço e sensibilidade, dignos de figurar na obra do genial poeta que Portugal deu ao mundo.
 
Dois ou três dias depois, estava no agradável Café Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos (situado no largo com o mesmo nome, onde nasceu, aliás, Fernando Pessoa, no quarto andar de um edifício situado no lado oposto ao teatro), quando, ao manusear o cardápio, me chamou a atenção a pintura na capa e contracapa, que ilustra este post (e a capa do blog nesta data). De quem era? Mário Linhares. A foto (feita com o celular) saiu meio sombreada.
 
Gostei tanto que enviei um e-mail ao artista solicitando autorização para publicar aqui no blog (ele gentilmente atendeu o pedido). Retrata Pessoa viajando na porta de um elétrico, observando a cidade que tanto amou/amamos. Um momento precioso. Ao Mário, cumprimentos pelo trabalho e um abraço agradecido.
 
pintura de Mário Linhares na contracapa.
em cima, poema de Fernando Pessoa
 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Coruja: esperança de reencontro

Jorge Adelar Finatto
 
fachada de casa, Tomar. foto-celular, jfinatto
 
O destino colocou a pedra no caminho: precisei perder a Coruja - ex-máquina, quase um ser humano - pra ver o quanto dói uma saudade. Recusei-me a comprar outra durante a viagem, embora recebesse orientação dos filhos, no Brasil, para que assim fizesse.
 
O fato é que decidi fotografar com o celular, coisa que nunca havia feito. Estou aprendendo. Não é a mesma coisa. É difícil se adaptar à nova maneira. Mas estamos na luta. Há gente que faz tudo com o celular. Não é o meu caso.
 
As fotografias são muito diferentes. O meu celular é bastante simples, já fez mais de quatro aniversários, não se pode comparar com o que existe por aí. Mas o despertador funciona e uma vez por semana recebo uma chamada, em geral do telemarketing...
 
Acho que melhorei um pouco, comparando com as primeiras fotos. Na véspera de retornar à Suíça, talvez reencontre lá a Coruja. Recebi um e-mail dos Caminhos de Ferro dando conta de que a encontraram (contei aqui como a perdi no trem, em Berna). 
 
Será mesmo? Haverá precisão suíça na informação? Terei de volta a velha amiga? Andaremos outra vez juntos, catando coisas no ar, em caminhadas pelos Campos de Cima do Esquecimento? Saberei em breve.