quinta-feira, 14 de julho de 2016

O espantalho no milharal

Jorge Finatto
 
photo: j.finatto
 
Se parar de escrever na casa do labirinto, se o silêncio e o medo crescerem ao meu redor como um vasto milharal habitado por estranho espantalho vestido de negro, com grossas lentes nos óculos (que já não ampliam a progressiva e asfixiante pequenez das coisas), esse tal que desistiu do ofício de espantar, sendo ele próprio o contumaz espantado no oblíquo território do viver, se os amigos esquecerem de me visitar nas noites de inverno, se um pássaro soltar o canto no galho da araucária diante da minha janela, se as palavras que escrevi servirem, ao menos, pra distrair o leitor (?) do medonho problema da morte e da irrecusável falta de sentido das coisas, eu sentirei que valeu a pena.

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Araucária vista da janela, Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado em 13 de abril, 2011.

sábado, 9 de julho de 2016

Arte e transformação

Jorge Finatto

fragmento de Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch (1450-1516).
imagem: Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa¹

As obras de arte são de uma infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica. Só o amor as pode compreender e manter e mostrar-se justo com elas.²
Rainer Maria Rilke

A arte é uma maneira de suportar e reinventar a nossa passagem pela vida. Através dela temos a oportunidade de ver a recriação do mundo pelos olhos do artista. Chamo de arte todo fazer humano dotado de esforço criativo, senso estético e originalidade.

Um cesto de vime, um tecido rendado, um prato de comida, uma pandorga colorida, um pão caseiro, dependendo do esmero e capricho de seu fazedor, podem ser arte. A arte não é só aquilo que encontramos em museus, galerias, livros e monumentos. Está na vida, está no dia a dia.

Do mais delirante quadro de Hieronymus Bosch ao mais tocante poema de Rilke, o que vemos é o espírito humano se desvelando, mostrando seus interiores, anseios, medos, profundidades, alturas, indo em busca de transcendência e sentido.
 
Estou entre aqueles que acreditam que as grandes obras nascem do sofrimento, e da necessidade de superá-lo. Do confronto da consciência com a finitude. O contraste entre o estar vivo e o estar morto, entre o que é e o que deixa de ser. E o que virá depois de tudo.
 
Aí estão a música, a literatura, o teatro, o cinema, a pintura, a internet, os blogs e todas as manifestações do pensamento e da sensibilidade nos convidando a imaginar, pensar, sentir, mudar.

A arte é uma visão transformadora da vida e do real. A vida é escassa ante nossa sede de plenitude. É necessário mais. Mais silêncio, mais tempo, mais contemplação, mais estar em si, menos performance.

Viver é tudo que temos, e dura um instante. É preciso encontrar um pouco de felicidade naquilo que somos e fazemos. E encontrar outras pessoas nesse caminho.
 
E que a obsessão de perfeição não nos sufoque na hora de criar qualquer coisa, nem nos tolha o olhar na hora de admirar a criação dos outros.
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¹Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal
http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/pintura-europeia/tentacoes-de-santo-antao
²Cartas a um jovem poeta. Rainer Maria Rilke. p. 32. Tradução de Paulo Rónai. Editora Globo, 9ª edição, Porto Alegre, 1978.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Mulher preparando café

Jorge Finatto
 
Coral. photo by: Linda Wade. Wikipédia

 
A parede é espessa e fria. O tempo é circular e monótono como um carrossel. Ela escreve  no computador e faz desenhos na caverna moderna onde vive. Em volta do fogo, ela espera. 
 
Às vezes, penetra um vazio na alma, dá vertigem. Então ela bate com o nó dos dedos na parede, como se houvesse uma porta, alguma secreta passagem, como se existisse alguém do outro lado. Precisa acreditar que existe vida. Vida humana, vivente e cálida.
 
Um coração, uma pessoa como ela entre quatro paredes, quatro décadas, um coração partido em fatias igual o dela, como o bolo caseiro sobre a mesa. O silêncio caseiro. 
 
Nuvens de signos saem do teclado pelo espaço, um grito abafado pela solidão. Talvez exista alguém do outro lado, que também espere como ela, e sinta frio, e queira ir embora com ela dessa cidade trágica e deserta, fugir disso tudo, abandonar o mar morto das cavernas urbanas. Pobres corais sofrendo sozinhos e calados.

Enquanto pensa essas coisas, ela prepara o café da noite.
 
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Texto revisto, publicado antes em 25.11.2010
 

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Violência na praça

Jorge Finatto
 
porto de Porto Alegre, vista parcial. photo: jfinatto

No sábado (25 de junho), fui ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul, na Praça da Alfândega, para o lançamento de um livro. Não costumo freqüentar o Casco Velho da cidade, perto do porto, por uma razão bastante triste: tenho medo de ser assaltado (o que seria de menos) e levar um tiro de bandidos que atuam na região.

A Praça da Alfândega e suas cercanias constituem cartão-postal da capital do Rio Grande do Sul, lugar histórico, berço social e cultural da cidade. Não por acaso ali estão órgãos importantes como o Margs e a Casa de Cultura Mario Quintana.

Naquelas ruas e passeios vi gente como Mario Quintana, Dyonélio Machado, Caio Fernando Abreu, Rubem Braga, Carlos Reverbel, Paulo Hecker Filho, Jorge Amado, José Cardoso Pires, entre tantos. Na praça se realiza, anualmente, na primavera, a Feira do Livro de Porto Alegre.

No entanto, nos últimos 30 anos o lugar vem se degradando, transformando-se na coisa lamentável que é hoje: uma área desumanizada e muito perigosa.
 
A motorista de táxi que me levou recomendou cuidado na travessia da praça até o museu. Disse que naquele trecho ocorrem diversos assaltos a cada dia, e que isto não espanta mais ninguém.
 
Fiquei uns 50 minutos no Margs, comprei o livro e fui embora. Com receio fiz o percurso de volta até encontrar um táxi numa rua próxima. Policiamento não vi nenhum. Encontrar policiais nas ruas é coisa raríssima em Porto Alegre.

O problema nem é ser despojado dos poucos bens materiais, mas perder a vida, como infelizmente tem acontecido diariamente nas ruas. Porque aqui os bandidos não se contentam mais em subtrair o patrimônio das vítimas, querem também a sua vida.

O mais perverso é que internalizamos o medo e perdemos a liberdade e a alegria de andar pela cidade. Difícil manter a saúde mental num ambiente assim. E desta forma vamos vivendo (?) no Brasil.
 

domingo, 26 de junho de 2016

Só, pero no mucho

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
Eu caminhava pela rua na noite de verão. Era numa praia do sul*, soprava uma leve brisa do mar. Muita gente nas ruas, casais de mãos dadas, casas com amplas varandas, pessoas conversando em cadeiras preguiçosas. Eu ia só, dando uma volta no quarteirão. De repente senti um solidão danada em meio a toda aquela beleza. Me deu um nó na garganta. Não sabia o motivo, afinal tudo estava bem.
 
Tive a viva impressão de estar só no universo, mesmo estando cercado de pessoas, num lugar de descanso e convivência. Havia uma paz sólida diante do mar. E eu numa solidão cósmica. Mas não era uma solidão triste. A vontade de chorar que eu sentia não era por estar sozinho. Mas por participar, de alguma maneira, da vida. Simplesmente isso.

Eu pertencia àquele grão de pólen chamado Terra, perdido na bruma de estrelas, com seus seres, suas histórias, seus destinos. Aí pensei nos poetas, músicos e em todos esses que fazem de sua solidão um hino de amor à vida para que outros dela possam participar com mais encanto e verdade. Sim, eu estava vivo.
 
A sensação de pertencer à raça humana me enchia de felicidade. As pessoas com suas diferenças, seus dramas, seus sonhos, seus defeitos, suas culpas, seus mortos, suas incríveis qualidades, suas mãos dadas, sua incontornável solidão.

Então segui caminhando pela rua e depois outra e mais outra e outra. Até que desapareci na paisagem. Feliz, sufocando de felicidade, cheio de gratidão por ser um a mais no cenário, andando numa noite de verão.
 
Infinitamente só e acompanhado, irmão das estrelas, dos que conversam nas varandas, dos que andam de mãos dadas, dos que caminham sozinhos pelas ruas, irmão de todos os seres que respiram no mundo. Parte de tudo isso, membro da grande família das coisas criadas. 
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quinta-feira, 23 de junho de 2016

A felicidade do outro

Jorge Finatto

photo: jfinatto

É impossível ser feliz sozinho.
                                        Antonio Carlos Jobim, na canção Wave 
 
Num café li a seguinte frase, numa placa pendurada na parede (transcrevo de memória): "Torço muito pela felicidade dos outros, porque gente feliz não enche o saco". Não havia menção do nome do autor. De qualquer maneira, vale a pena pensar nisso.

Estou inteiramente de acordo. Sempre quero ver gente feliz por perto. É a melhor coisa. O Maestro Tom Jobim disse tudo no seu verso: É impossível ser feliz sozinho.
 
Quanto mais gente feliz está ao nosso redor, melhor é a vida. A felicidade é um negócio que se espalha, como corrente elétrica pelas lâmpadas da casa escura. A pior coisa é viver perto de pessoas infelizes, sem esperança, negativas e sem alegria. Uma nuvem negra as acompanha. É um fardo difícil de suportar.

Mas quem não tem seu dia infeliz ou seus momentos de tristeza e preocupação? O importante é não deixar que esses sentimentos sejam predominantes. Sentir um pouco de inveja da felicidade alheia é até normal, quando não é demais. Mas não leva a lugar nenhum. A chance de realizar coisas, e ser mais, vivendo perto de pessoas batalhadoras e otimistas é muito maior.

Felicidade pra todos já. Esse é o grande lema. Sem  esquecer as lições de dois filósofos do cotidiano brasileiros. O cantor e compositor Odair José ensinou: "Felicidade não existe; o que existe na vida são momentos felizes". E a atriz Tônia Carrero declarou, quando perguntada se era feliz: "Sou feliz algumas vezes durante o dia". Isto que é sabedoria, não é mesmo?

Fazer algo pela felicidade do outro, no dia a dia, é condição essencial para viver melhor e para um planeta mais feliz. Isso poder ser feito de várias maneiras, a começar por executar com esmero e dedicação o nosso trabalho. É o que faz rodarem para frente as rodas dessa velha carroça a que chamamos mundo.
 

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Caderno de inéditos de Van Gogh

Jorge Finatto

A casa amarela (Arles), Van Gogh, Museu Van Gogh, Amsterdam

A grande notícia da última semana foi a descoberta de um caderno com desenhos inéditos do pintor holandês Vincent Van Gogh (1853 - 1890). O anúncio foi feito há poucos dias pela editora francesa Éditions du Seuil.
 
Encontrado recentemente, a editora não precisou o número de desenhos existente no carnet. Assegurou, no entanto, que sua autenticidade foi verificada por especialistas.

O  conteúdo será publicado em novembro, em vários países, com o título de Vincent Van Gogh, Le brouillard d’Arles, carnet retrouvé (Vincent Van Gogh, A névoa de Arles, caderno reencontrado).
 
Bernard Comment, responsável pela publicação, asseverou que ninguém, além do proprietário, da editora e dele próprio, tinha conhecimento da existência desse material. "É espantoso, fulgurante", declarou à AFP.
 
Morto na miséria aos 37 anos, em Auvers-sur-Oise (França), em 1890, Van Gogh é um dos pintores mais importantes de todos os tempos.  Portrait du Dr. Gachet (1890) atingiu 82,5 milhões de dólares num leilão da Christie’s de Nova Iorque em 1990; em maio do ano passado, L’Allée des Alyscamps foi adquirida por 66 milhões de dólares num outro leilão.

Van Gogh criou uma obra original e maravilhosa, oposto de sua existência repleta de crises psíquicas, afetivas e materiais. A solidão foi o pano de fundo da vida deste artista genial e incompreendido, que legou à humanidade um patrimônio espiritual sem igual na história da pintura.

Sabe-se lá as maravilhas que haverá neste caderno, não só em desenhos como em anotações. Van Gogh escrevia com raro talento e profundidade, conforme se vê de suas numerosas cartas ao irmão Theo.

Para os que amam sua pintura e admiram o ser humano que foi, como eu, a descoberta do caderno tem valor inestimável e é motivo de grande emoção.

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Post com base em informação publicada pelo jornal Público de Portugal: