quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O calepino de Dante

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto. Venezia


O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.
 
O VENTO geme como um bicho malferido nas esquinas, sacode as placas na rua, portas, janelas, enlouquece os ponteiros do relógio da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Um lamento emana do interior do sino da igreja da praça.

Um cenário de filme de assombração. Aqui acontecem coisas do outro mundo.
 
Os fantasmas somos nós, habitantes dessas terras frias e invisíveis situadas nos Campos de Cima do Esquecimento.

Lá fora, a chuva molha a solidão da rua. Somos peixes no aquário, nadando de um lado para outro dentro de casa, tentando enxergar, sentir alguma coisa nesse enorme vazio. Peixes à procura de qualquer coisa mais que silêncio e oblívio. Agora que o inverno chegou.
 
Vivemos nessas remotas e íngremes alturas, no sul do continente, entre inóspitas nuvens.

Este lugar é a última estação antes do fim do mundo.

photo: jfinatto. Venezia

Os poetas sabem do que eu falo, não digo coisas inaugurais (quem me dera). Digo o trivial da humana condição e não mais do que isso: quireras.

Neste território pequenino existem coisas de espantar.

Um dia, não me lembro quando, andava eu numa fondamenta (caminho que vai à beira de um canal) distante e perdida de Veneza. Caminhava do meu jeito naquela cidade, isto é, olhando as coisas de perto por causa da difícil visão (óculos fundo de garrafa).

Naquela cidade tudo é insondável, úmido labirinto, e eu, quase cego, gosto de me perder em labirintos.

As janelas das casas daquela fondamenta, onde cheguei não sei como, tinham flores e cordas com roupas estendidas secando, mas não havia ninguém morando nelas. Uma doideira. O vento percorria o canal assobiando uma canção terna e delicada, sem começo nem fim.

Descobri, então, o vetusto casarão de uma livraria abandonada. A livraria ficava mais ou menos perto da Ponte de Rialto, no Grande Canal. Entrei lá abrindo uma porta escura e muito pesada, difícil de empurrar.

Canal veneziano. photo: j.finatto

Sentei numa cadeira de couro marrom diante de uma mesa. Ao lado um pequeno vitral amarelo e azul deixava penetrar um sopro de luz solar. Estantes repletas de livros se projetavam para o interior.

Descobri sobre a mesa um calepino de capa lilás.

Abri o caderno, quase encostando os olhos nele. Na terceira página estava escrito: Dante Alighieri, 1319. Li sem fôlego as primeiras anotações do mestre florentino.

Só então percebi do que se tratava, o tesouro que tinha em mãos: eram esboços de poemas misturados a notas de diário, rascunhos de cartas e pequenos desenhos.

A música que o vento tocava lá fora, me dei conta quase sem poder acreditar, era a Valsa dos Ausentes, de Pixinguinha.

O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.

Antes de sair da estranha livraria, guardei o calepino de Dante no fundo do meu alforje. Desde aquele insólito evento nunca mais nos separamos. Nunca antes contei esta história.

(Às vezes me pergunto se isso de fato aconteceu ou terá sido um sonho, o espírito aturdido por esses ventos andarilhos de Passo dos Ausentes, nas longas e inóspitas madrugadas.)

O calepino de Dante é o consolo que trago na vida. Quando o leio, como nessa hora longínqua, sentado na cadeira de palha diante da mesa do escritório, tomando café preto com biscoitos de polvilho, esqueço tudo de ruim.

O medo de morrer não encontra asilo nessa hora quase solene.
 
Nem tudo é solitude nesses caminhos.

Passagens luminosas habitam o breu.

Tem orquídeas e magnólias povoando o jardim lá fora. Ramos novos brotam entre as folhas secas.

Um tempo de busca-vida, este.

Esta página, notícia do invisível.
 
__________________
 
Texto revisto, publicado anteriormente em 10/12/12.
 

domingo, 14 de agosto de 2016

A sombra da esfinge

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto, 14.8.2016
 

COMO ELE NUNCA teve pai para amar, sempre lhe pareceu que a coisa mais em falta no mundo não é dinheiro, nem ouro, nem diamante, nem qualquer outra, mas um abraço de pai.

Quando menino, era difícil explicar aquela ausência para os outros de sua idade. Na rua e na escola, as pessoas faziam perguntas, cara de admiração. Não ter pai era mesmo que não ter um braço, uma perna.

A sombra da esfinge o perseguiu pela vida. No dia dos pais, aniversários, natais, páscoas, reuniões da escola, fins de semana, noites e dias sem fim. A falta projetou-se nos seus sonhos e pesadelos.

Um dia descobriu que muitas outras casas também não tinham a figura misteriosa. Só que muita gente escondia isso. Estranho: escondiam um ser que, na realidade, não existia. Ocultavam o mito. Alguns possuíam apenas uma deprimente figura paterna, que mais atrapalha que ajuda.

Os sem pai já não eram exceção. Talvez fossem maioria.

Ficou nele a idéia de que as mulheres, e não os homens, fazem o mundo funcionar. São pais e mães de seus filhos.

Na verdade não chegava a ser um consolo, mas a consciência de uma espécie de mutilação social. Sim, falta o pai afetivo em grande parte das famílias brasileiras. Às vezes, havendo pai, é como se não existisse, por falta de aptidão para o papel.

Por causa disso, muita gente é seqüelada, inclusive eu - ele pensa enquanto caminha com o filho pela mão, na praça do bairro, na tarde de domingo.
 
Pra ele, agora, todo dia é dia dos pais.
 
___________
 
Texto revisto, publicado em 16 de maio, 2013. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Livro da solidão (parte I)

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
Solidão
não é
uma ilha

solidão
são muitas
ilhas

solidão
amarela
do girassol

solidão
verde
da couve-flor

solidão
indecente
do corpo

solidão
unânime
dos juízes

solidão
na fila
do amor

solidão
na fila
do pão

solidão
na fila
do emprego

solidão
na fila
da justiça

solidão
na fila
da fila

solidão
decomposta
do morto

solidão
batom vermelho
da garota de programa

solidão
manta de lã
na mansarda

solidão
mais real
do presídio

solidão
do radinho
de pilha

solidão
atrás
da porta

solidão
atrás
da janela

solidão
atrás
do óculos

solidão
em ascensão
no elevador

solidão
no fundo
do espelho

solidão
na tarde
de inverno

solidão
de quem ficou
na estação

solidão
do avião
sobre o mar

solidão
todas as cores
do domingo

solidão
do espanto
de existir

solidão
de quem diz
tchau

solidão
de quem ouve
adeus
 

domingo, 7 de agosto de 2016

A festa e a realidade

Jorge Finatto

Abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016. foto: Lucy Nicholson, Reuters.¹
A festa de abertura da Olimpíada Rio 2016 encheu os olhos e o coração. Me emocionei várias vezes, como a maioria dos brasileiros. Uma bela síntese do Brasil multirracial e multicultural, criativo, inspirador. O espetáculo mostrou um país rico em sua humanidade, capaz de notáveis realizações.
Ao mesmo tempo, é duro saber que o custo da festa, somado à de encerramento, será de R$ 270 milhões (cerca de 90 milhões de dólares), suportado pelos governos federal e municipal do Rio de Janeiro, conforme divulgado nos órgãos de imprensa.²
A rigor, o Brasil não poderia gastar com a realização dos Jogos Olímpicos neste momento. Poderia, talvez, se não tivesse afundado numa enorme crise provocada por péssima gestão e imensos desvios de dinheiro público com corrupção avassaladora dos últimos anos.

Em nenhuma hipótese, deveria ter assumido dois megaeventos, Copa do Mundo e Olimpíada, em curtíssimo espaço de tempo (2014-2016). Enquanto isso, "faltam recursos" para coisas essenciais. Grande parte dos brasileiros padece sofrimentos intoleráveis. 

As populações do Rio e do Brasil (somos 205 milhões de habitantes) trocariam de bom grado as cores e o brilho dos Jogos Olímpicos por mais saúde, segurança, educação, bem-estar social, emprego, saneamento (a poluição assustadora da Baía de Guanabara é nosso cartão de visitas). A realidade brasileira é desumana.

Evidente que a Olimpíada não é culpada de nada. É apenas um passo errado no momento errado, que encerra um custo altíssimo e espelha uma nação sem rumo.
  
De modo que, junto com lágrimas de emoção, correm lágrimas de tristeza por constatar, mais uma vez, que, depois da festa, a casa voltará à sombra.
 _________ 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

O palhaço fugiu do circo

Jorge Finatto

cena veneziana. Itália. photo: jfinatto
 
O pequeno circo Il sorriso della vita passa por momentos difíceis. Motivo: o palhaço Gilles resolveu abandonar a companhia. 2º Motivo: foi atrás da mulher que o abandonou, a trapezista Lara.

Don Sigofredo de Alcantis noticiou o fato na semana passada, durante reunião da Sociedade Literária, Filosófica, Histórica, Geográfica, Artística, Astronômica, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes. Todos ficaram surpresos e abalados com a notícia. A aldeia não será a mesma sem o circo mambembe de lona vermelha, que se aquerenciou por aqui faz cinco anos. As crianças, os velhos, todo mundo ia lá para ver as momices de Gilles, os saltos e a graça de Lara.

A assembleia deliberou enviar pombos-correio às três cidades mais próximas (São Francisco de Paula, Canela e Gramado), solicitando que procurem o palhaço e a trapezista nas ruas, praças e telhados. Se alguém os encontrar, peça que voltem logo a Passo dos Ausentes.

A estrada de chão que nos liga ao resto do mundo está intransitável depois das últimas chuvas de julho. Ninguém pode descer a serra, serpenteando pelas encostas das montanhas do Contraforte dos Capuchinhos, pena de cair em algum dos inúmeros abismos.

Gilles é um palhaço triste. Levou a tristeza para dentro do casamento, deixou a alegria no picadeiro. Lara é leve como o vento e quer alegria na vida. Quer um homem que saiba rir. Como era Gilles quando o conheceu. A tristeza sem nome que ele trouxe da infância tomou conta de seu coração de menino que não cresceu. Tornou-se calado e distante. Lara quer o Gilles que conheceu outrora de volta. Ele não vem. Ela vai embora. O mundo do palhaço desaba. Ele parte à procura da mulher. O circo desce a lona.

Como um abandono leva a outro, a maior atração cultural da nossa aldeia está à beira de nos abandonar. O que será uma tristeza nesse cenário de frio, neblina e ausência.

Volta, Gilles! Volta, Lara! Tragam outra vez o sorriso da vida para nossas vidas!
 

sábado, 30 de julho de 2016

Nara Leão, opinião e arte

Jorge Finatto
 
Nara Leão. fonte: site oficial da artista*

Há muito tempo quero escrever alguma coisa sobre Nara Leão (1942-1989), a quem acompanho desde sempre ouvindo seus discos. Tenho grande estima pela obra que construiu, pela grande arte que legou ao Brasil e ao mundo.

Por alguma razão que não sei bem, toda vez que ponho um disco de Nara para tocar, vivo um instante de emoção e elevação espiritual. A voz linda e a interpretação personalíssima nos dizem que viver vale a pena, que a existência é muito mais bonita do que isto que se vê nos noticiários todos os dias.
 
Toda vez que cantou uma canção, Nara Leão criou uma obra de arte. Na sua voz única e delicada, algo sempre nasce, diferente e melhor. Porque ela fazia um trabalho de recriação quando cantava e tocava seu violão. Uma coisa é a música na voz de outros. Outra, diversa e extremamente refinada, é a que ela nos transmite com seu dom, sua alma e seu sentimento.
 
Da bossa nova ao samba do morro, tudo que cantou foi com absoluta verdade e sensibilidade. Mulher de opinião, corajosa na oposição ao autoritarismo, não deixou de se posicionar contra a ditadura e contra a pequenez das mentes e dos gestos. Talentosa e discreta, avessa a frivolidades, sua presença qualificou e arejou nosso ambiente social e cultural.
 
Nara Leão faz parte de um Brasil em que a arte, a dignidade e a justiça devem ser partilhadas entre todos. Um país que ainda não existe, por certo, mas com o qual sonhamos e pelo qual lutamos inspirados no seu exemplo.
 
___________ 
 
*Nara Leão:
 

terça-feira, 26 de julho de 2016

A arte de Custodio Coimbra

Jorge Finatto
 
foto: Custodio Coimbra. barcos coloridos separados por píer, maré baixa,
São Gonçalo, Rio de Janeiro. Agência O Globo
 
Dizer que Custodio Coimbra é só um fotógrafo comum de imagens do cotidiano seria equívoco. Algo como afirmar que Chopin é apenas um tocador de piano, ignorando que, na verdade, é um gênio do instrumento e da composição.
 
Custodio é um artista que vai além do prosaico. O trabalho que produz tem força estética, conteúdo social, valor documental e, além de tudo, está carregado de poesia.
 
Ele transita numa esfera de delicadas composições visuais, que destacam as verdades imanentes que cada objeto encerra. Quando fotografa, sempre ou quase sempre nasce uma obra de arte.
 
Esta obra concilia, com maestria, denúncia e beleza. Isto ocorre, por exemplo, quando aborda a degradação do meio ambiente. A sua fotografia não nos diz que tudo está perdido, mas recorda que há muito a pensar e fazer para salvar a natureza. 

A alma dos seres e das coisas transparece nas imagens de Custodio Coimbra, aproxima e comove o leitor, retirando-o da indiferença.

foto: Custodio Coimbra. golfinho com lixo na cauda. Agência O Globo
 
Falo estas coisas após ler, na Revista O Globo, encartada na edição dominical (24/7/2016) do jornal, uma matéria sobre o trabalho do grande fotógrafo. Na capa uma bela imagem captada por ele: barcos separados por píer durante maré baixa em São Gonçalo. São dezenas de barquinhos coloridos num fundo escuro. Uma beleza rara.
 
A reportagem (escrita pela jornalista Joana Dale) traz outras fotos e dá conta da produção do artista. Ele trabalha nO Globo desde 1989. Anuncia-se para hoje (26/7), o lançamento de seu livro Guanabara, Espelho do Rio, FGV Editora, com 170 imagens da Baía de Guanabara, abarcando 20 anos de fotografias. Aves, cavalos-marinhos, pescadores, rios, botos-cinza, matas, barcos, poluição, lixo, etc., compõem o belo e inquietante mosaico.

O livro traz textos da jornalista Cristina Chacel, enfocando aspectos históricos, ambientais e culturais. O evento ocorrerá na Folha Seca, centro do Rio
 
A publicação deve chegar às livrarias em agosto. Antes que algum aventureiro lance mão do meu exemplar, já mandei e-mail a minha livraria, solicitando encomenda urgente. 

imagem: Custodio Coimbra. foto aérea de pedras próximas à Ilha do Sol.
divulgação
__________ 
 
Livro reúne 20 anos de imagens: