domingo, 22 de outubro de 2017

Da minha janela

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

CADA UM VÊ o mundo da sua janela. A mirada particular de cada pessoa. O jeito de enxergar as coisas.
 
Eu, por exemplo, gosto demais de uma taça de café com leite e pão com manteiga. E me encanta andar na rua quando chove.

Infelizmente, já não tenho idade para subir e caminhar sobre telhados. Nem vou sair voando pendurado num guarda-chuva pelas ruas desertas de Passo dos Ausentes. E morro de saudades dos doces que minha avó fazia nos dias de frio.

Está chovendo e gelado aqui na montanha, apesar da primavera. Gosto de dias assim.
 
Agora, não tenho mais quem faça doces. Mas as tardes de chuva continuam cheirando a arroz doce, canela e casquinha de laranja dentro de mim.
 
A memória é uma biblioteca onde se guardam as quinquilharias do tempo. Às vezes, me refugio nela e me ponho a perambular nessas cálidas páginas do passado.

Sim, raro leitor, é bom parar um pouco, olhar e pensar na vida. Abrir a janela e sentir como um menino. Mas nunca se trancar no casarão desabitado do passado. 
 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Pequenos mistérios

Jorge Finatto

Entre pétalas, texto de Rainer Maria Rilke* photo: jfinatto
 

COSTUMO PÔR PÉTALAS entre páginas de livros e cadernos de anotações. Acho bonito abrir tempos depois e lá encontrá-las com suas cores e nervuras à flor da pele. Elas parecem carregar a memória de um tempo, de um jardim, de uma casa, de uma sensibilidade.
 
Em álbuns de fotografia também fica delicado. Era comum naqueles álbuns de recordações das moças de antigamente. Recolho as pétalas caídas das roseiras aqui de casa. E folhas do outono também.
 
Os livros, fisicamente, pertencem ao mundo vegetal na origem. Com o conteúdo das palavras transformam-se em objetos espirituais. 
 
O mundo está cheio de mistérios. Será que ainda se usam folhas e pétalas entre páginas? Será que alguém ainda cultiva roseiras no quintal? Será que livros têm lugar nas casas? Será que ainda existem moças sonhadoras e álbuns de recordações?

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*Cartas do poeta sobre a vida. Rainer Maria Rilke. Organização de Ulrich Baer. Tradução de Milton Camargo Mota. Livraria Martins Fontes Editora Ltda. São Paulo, 2007.
 
O epitáfio de Rilke:
https://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/search?q=O+epit%C3%A1fio+de+Rilke
 

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Um certo Terêncio Horto

Jorge Finatto

O escritor Terêncio Horto.* Autor: André Dahmer


O ESCRITOR DESCONHECIDO, frustrado, amargurado e massacrado pela indiferença em torno de seu trabalho certamente encontrará um aliado na figura incansável e batalhadora de Terêncio Horto. Ele é a prova viva de que um autor não deve desistir jamais da luta diante da folha em branco e do pouco caso de editores e leitores.
 
Nós, esforçadas criaturas que escrevem em solitários cubículos, formamos uma invisível e numerosa família. Com poucas exceções, vivemos confinados na caverna do anonimato. Mas somos teimosos, nada de desespero. Pelejamos mesmo nas piores condições. A dura lida nos constrói.

Olhemos o exemplo do irmão Terêncio. Lá na sua clausura, qual isolado monge sentado diante da velha máquina de datilografia, ele não se entrega ao fracasso; luta de sol a sol, nuvem a nuvem, quadrinho após quadrinho, para dar ao mundo os frutos suculentos do duro ofício.

O Senhor Horto e seu amigo imaginário. Autor: André Dahmer
 
Terêncio Horto é desses assinalados pelas musas e pela tragédia de escolher a escrita num ambiente grosseiro e de poucas luzes como o nosso. Alcançou algum reconhecimento, mas não perdeu a rebeldia. Faz parte de uma geração de escritores em vias de extinção. A esmagadora maioria passou a vida sem ser notada pelos leitores, pela crítica, pela mídia e pelos vizinhos dos prédios onde moram. Nunca receberão jabutis, quatis, sagüis, sambaquis e outros importantes galardões literários nacionais. Entanto, lutam a eterna luta das páginas fadadas ao fundo sombrio de injustas gavetas. 
 
Não apenas escreve bem o Senhor Horto como possui notável poder de observação. A sua visão de mundo está impregnada do caos da vida com seus intervalos (raros) de poesia e humanismo. Os temas são os mais diversos, desde remotas (e dolorosas) memórias de infância até intrincadas questões de fundo filosófico e outras, não menos tormentosas, inerentes às relações humanas. Nada escapa de sua pluma corajosa e vertical: internet, brigas de família, humilhações, desilusões, sexo, cultura, cinismo, encontros marcantes e alguns nem tanto, amizade, amor, cumplicidade, arte, literatura.

O Senhor Horto. Autor: André Dahmer
 
O Senhor Horto não poupa a si nem ao restante da humanidade de sua ironia e de seu humor corrosivo. Porém, sem perder de vista certa dose de ternura e empatia diante da tragicomédia da existência.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
 
Li com prazer e sentimento de vingança este Vida e Obra de Terêncio Horto, e me reconheci em muitas de suas páginas. O livro já faz parte do meu manual de sobrevivência na selva literária. De forma direta injeta ar fresco e claridade no ambiente de boçalidade do mundo das letras e das artes, além de aliviar a barra pesadíssima do cotidiano. Só resta agradecer ao quadrinista e escritor André Dahmer por nos ter revelado esse grande autor e pensador brasileiro. Com especial destaque, também, para as ótimas ilustrações.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
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*Vida e obra de Terêncio Horto. André Dahmer. Ilustrações do autor. Editora Schwarcz S.A., São Paulo, 2014.
 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Numa exposição de orquídeas

Jorge Finatto

orquídeas no Shopping Bourbon Country, P. Alegre, set. 2017. photo: jfinatto

 
QUANDO ALGUÉM CANSADO e triste diz que o mundo está no fim, eu acho que sim. Está difícil habitar o planeta e não sentir que algo terrível se aproxima e ganha forma a cada dia. Ninguém agüenta mais o inferno vigente. O sentido humano é exterminado a cada momento.
 
O Brasil é a clara evidência de que não há caminhos, só suspiros. 

idem

A esperança de que algo virá, algo violento que dará um basta à maldade que hoje governa a Terra em todos os quadrantes, é o que nos anima. O livro bíblico do Apocalipse não fala que o atual estado de coisas será abençoado, mas destruído. Essa transformação, nunca antes vista, virá de Deus.
 
E aqueles que agora se vangloriam e lambuzam na vaidade, no poder e na riqueza imunda serão calcinados e varridos como poeira. Um novo mundo nascerá para as pessoas que façam por merecer, está escrito. Não sei se terei uma chance no novo sistema. Talvez sim, talvez não, quem sabe? Mas aguardo com ansiedade a nova ordem. Difícil é esperar.
 
idem
 
Enquanto isso, caminho na exposição de orquídeas. Um prelúdio, assim espero, da vita nuova que será, expulsando todo sofrimento e dando uma real oportunidade à vida. Para todos.
 
idem
 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

O amor é o melhor remédio

Jorge Finatto

Imagem mais antiga (séc. IV) do Apóstolo Paulo, descoberta em Roma,
segundo o Vaticano
 
 
Se eu falar em línguas de homens e de anjos, mas não tiver amor, sou um gongo que ressoa ou um címbalo que retine. E se eu tiver o dom de profecia e entender todos os segredos sagrados e todo o conhecimento, e se eu tiver toda a fé, a ponto de mover montanhas, mas não tiver amor, nada sou. E se eu der todos os meus bens para alimentar outros, e se eu entregar o meu corpo para me gabar, mas não tiver amor, de nada me adianta.

Paulo, A Primeira Carta aos Coríntios, 1 Coríntios 13:3, Bíblia* 
 

O MELHOR REMÉDIO para os sofrimentos são os bons sentimentos que carregamos na alma. As boas recordações e os afetos nos valem nos dias difíceis. Nenhuma arma é tão poderosa quanto se sentir amado e amar.
 
Saber que somos amados, que para alguém nossa existência é importante, abre uma manhã de sol na escuridão.
 
A casa do abraço. Esse reino secreto nos fortalece no infortúnio e no abandono. Amor que justifica nossa existência.

Amor pela tribo toda, amor estendido, que possibilita a vida em sociedade. É óbvio como um elefante no meio da sala. Mas a gente custa a enxergar.
 
Ninguém falou tão bem sobre essa realidade como Paulo em sua Primeira Carta aos Coríntios. Maravilha em poucas linhas.

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*Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O Landgrave

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

A FALA PRINCIPIAL que te dirijo, ó, impossível leitor.

Eu, o Landgrave, me curvo diante da vossa alta ausência. Vivo no interior do ermo, habito as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento.

Me esqueço no esconso do mundo. Meu revólver é o lápis e o calepino.

Vento de julho quase me derruba.

As fraquezas do corpo. Nunca se sabe o que vem a contrapeito. Travessias a que os fados nos obrigam.

O sonho muito sonhado tinha nome: Cléria, Cléria dos meus suspiros. Invernos ao relento. A moça de papel e tinta, musa em solidão concebida, menos tida que havida. Só a conheci de vista, na janela da mansarda, quando lá embaixo ela passava. Eu poeta tímido e sufocado.

Sentimentos que teço no abismo das horas. Dores que não têm conta.

O fosso profundo do fundo de cada um. Meu Deus.

Foi assim.

Os vazios dias, minhas tardes distantes, à beira do penedo. Hoje eu vejo tudo aqui de cima, na mansarda. Recolhido na grossa e comprida manta, atrás dos óculos de fundo de garrafa. Não vivo mais na borda de penhascos. Saltei para dentro da lira. O consolo possível.

Esta página escrita no sótão, arrostando vento e solidão.

Fugazes as vaidades do mundo são. Mais vale um poema que um tostão. O frio glacial dessas alturas inóspitas.

Fui resgatado do evento proceloso pela mão de salvadoras prosopopeias. Eis-me de ponta cabeça no perau do texto.

São caminhos que se andam. Depois se aprende, depois se sofre, depois se esquece. A vida, ai de mim, ai de nós.

O que não se tem se inventa. O mundo não tem bom coração. O delicado vive por teimoso e obstinado.

A humanidade enaltece a ruína, mata o humano. O que fizeram com esse texto as escuridões do mundo!

Cléria, sim, Cléria do capucho branco e do casaco azul claro. Cléria dos meus tormentos. Dos meus espantos e secretas ternuras. A que não se deixou amar. A desaparecida musa do vestido rosa com a fita lilás. Entrou e saiu do meu sonho sem saber.

Vivia lá no seu castelo, sem dar pela minha existência de bardo de arrabalde.

Eu o que quero agora é a solidão dos ventos gelados.

Meu olhar atravessando as névoas eternas.

Eu, o provedor das horas finitas, senhor de nadas, o catador de conchas de silêncio nos ares da álgida montanha.

Ela se foi pela estrada de ferro, sem dizer adeus.

Nas minhas saudades, ouço o ranger do velho trem saindo da estação.

A sintaxe é território que se conquista na dureza de batalhas cruentas. Palavras são coisas que criam asas e depois se lançam.

Agora sou o navegante. Viajor do tempo. Astrônomo de dicionários. O tal que restou com a bicicleta retorcida nas pedras.

 O sobrevivente, ridículo bardo interiorano.

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Texto revisto, publicado antes em 13 de outubro de 2010.
 

domingo, 24 de setembro de 2017

Beija-flor, a persistência da primavera

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


O PEQUENO BEIJA-FLOR cumpre o ofício de cortejar a flor. No caso da foto, a flor amarela do ipê. Vai em busca do sagrado néctar, o seu alimento. É um trabalho árduo para um ser tão pequenino. Também é conhecido por colibri, cuitelo, chupa-flor, pica-flor, chupa-mel, binga, guanambi, segundo diz o Wikipédia.
 
A viagem da breve ave é uma odisseia no jardim. Faz 20 anos que os beija-flores habitam meu quintal fazendo ninhos nas árvores. Provavelmente já existiam neste ambiente muito antes de eu chegar aqui.
 
As flores em abundância durante o ano, entre elas os sininhos, são fonte diária de alimento para eles. São seres encantadores: na cor, no voo, no canto de algumas espécies. As asinhas batem sem parar, gastando muita energia que precisa ser reposta durante o dia. A grande velocidade do bate-bate de asas faz com que possam ficar parados no ar e até mesmo voar de ré. Mágica estripulia.
 
O que me causa admiração nos beija-flores é a persistência destes minúsculos seres em sua luta diária pela sobrevivência. Porque o ambiente está cada vez mais hostil para eles: poucas casas, poucos quintais, poucas flores. Resistem bravamente.

Vida de pássaro é a coisa mais complicada nestes tristes tempos. Por isso há várias espécies em risco de extinção, beija-flores inclusive. O próprio homem está em risco de extinção como sabemos. Dizem os sábios que "evoluímos" ao longo dos tempos. Evoluímos, evoluímos, e demos nessa enorme enrascada. Um buraco trevoso. 
 
Apesar de tudo, a primavera chegou. Enquanto eu estiver por aqui, o meu jardim vai ser a casa dos beija-flores e outros passarinhos. Não faço nisso nenhum favor. Apenas respeito essa gente miúda que espalha beleza no quintal da minha alma.