segunda-feira, 22 de março de 2010

Apontamentos sobre os direitos das vítimas no Brasil

Jorge Adelar Finatto


A vítima, no Brasil, é aquela pessoa a quem coisas ruins acontecem ou por culpa dela ou por força do destino. Está mal na foto ao contrário dos que ainda não caíram e que se julgam protegidos no interior de uma cápsula indevassável que receberam ao nascer.

A vítima tem direito de saber que dificilmente será tratada como merece pelo Estado e pela sociedade, porque há poucos recursos disponíveis para dar-lhe a necessária atenção. O tempo é curto e a vida continua. No caso, a vida dos outros.

A vítima tem direito de ficar só com seu sofrimento.
 
A vítima tem o inalienável direito de respeitar, até o fim de seus dias, os direitos humanos de seu carrasco.

A vítima tem direito de ser informada que os presídios estão superlotados, não há mais vagas para quem comete crimes.

A vítima, real ou potencial, tem direito de viver aprisionada dentro de si e de sua casa, enquanto os criminosos andam soltos, sabendo que, agora ou num futuro próximo, farão outras vítimas.

A vítima tem direito de entender que aquilo que levou uma vida inteira para construir pode ser destruído em poucos segundos por alguém que não está nem aí para ela e sua família.

A vítima tem todo o direito de fazer um resumo do que lhe aconteceu, desde que evite maiores detalhes e, principalmente, controle sua emoção, porque as pessoas em geral, e autoridades em particular, têm um milhão de coisas para fazer e se chateiam com relatos emocionais. Às vezes, prefere-se acreditar que os fatos não aconteceram bem assim, ou são peças de ficção.

A vítima tem o indiscutível direito de carregar na alma o insuportável sentimento de invasão, impotência, fragilidade e tristeza pelo que passou.

A vítima tem direito de levar sozinha seu trauma pelo resto da vida, com poucos, raros seres humanos para dividir a angústia da violação sofrida.

A vítima tem também o direito de permanecer em silêncio para não importunar a indiferença dos outros.
 
A vítima tem direito de ouvir que seu caso não é o único e que, por isso, deve ter muita paciência. Dramas como o seu acontecem todos os dias. É melhor poupar-se de falar contra a ineficiência dos públicos poderes.

A vítima tem o irrestrito direito de ser informada que o principal direito humano que lhe assiste é o recato na dor.
 

Um claro outono

Jorge Adelar Finatto


Este é o primeiro outono do blog. O Fazedor de Auroras completa hoje três meses de vida. Um tempo muito pequeno, quase nada. Mas não deixa de ser um acontecimento pra quem não tinha ideia de permanência no ambiente virtual. De qualquer forma, tem sido uma boa experiência. Muito agradeço a quem tem visitado esta página da biblioteca infinita da internet. Observo que o blog é receptivo a críticas, sugestões e manifestações em geral. Um claro outono pra todos nós é o que eu espero!

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jfinatto@terra.com.br

domingo, 21 de março de 2010

Refúgio

Jorge Adelar Finatto


Tudo tão frágil na vida
o mundo inteiro cabe num abraço

Medos povoam a insônia
a chuva lá fora é a infância
com seus tesouros submersos
no navio sem leme nem capitão
do tempo

Melhor me refugiar no teu corpo
fingir que tudo está tranquilo
arranjado e bom
como no útero

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21 de março - Dia Mundial da Poesia
Poema do livro O Fazedor de Auroras, J.Finatto. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1.990.

sábado, 20 de março de 2010

Jogos Olímpicos de 2.016

Jorge Adelar Finatto


O cartão-postal vai brilhar intensamente outra vez, será um grande espetáculo visual para o mundo, o Rio é mesmo deslumbrante, o povo é acolhedor. Depois, tudo se apaga e volta a ser como antes, só que pior, porque dinheiro grosso foi gasto sem critério e sem sentido, perdendo-se uma grande oportunidade.

O amigo leitor está no justo descanso do fim de semana.

Desembarcou na ilha-refúgio de dois dias quase sem fôlego. A rude lida da sobrevivência leva ao limite nossa paciência e capacidade de resistência.

Tudo que se quer, nessa hora, é estar perto das pessoas amadas. E um bom descanso, no sofá ou na velha cadeira de balanço, um livro, uma revista.

Não deve o cronista importunar esse santo repouso. Os temas tratados hão de ter alguma leveza, trazer um pouco de ar fresco.

Contudo, quero hoje falar de um assunto que me atormenta e que gostaria de compartilhar.

Trata-se dos Jogos Olímpicos de 2.016.

Penso que a sociedade brasileira, você, eu, todos nós deveríamos ter sido consultados sobre a realização dos Jogos no Rio de Janeiro. Motivo principal: a extraordinária soma de dinheiro público que será utilizada no evento. Fala-se algo em torno de R$ 30 bilhões. Muito provavelmente será bem acima disso, como costuma acontecer.

A cidade maravilhosa foi escolhida sede da Olimpíada em Copenhague, na Dinamarca, no dia 02 de outubro de 2009, vencendo as concorrentes Madri, Tóquio e Chicago. Mas terá sido mesmo uma vitória ou, antes, um alívio para as cidades preteridas, porque não terão de gastar essa babilônia em meio a uma das piores crises econômicas que o mundo já conheceu ?

sexta-feira, 19 de março de 2010

Três poemas

Jorge Adelar Finatto

VERDE

Das minhas cinzas faço um verde
nesse verde nasce um menino
eu sou o menino que acompanha este menino

somos filhos da fome do dia
como os potros que morreram cedo
nossos irmãos

na nossa rua nenhum deus mora
eis porque choramos quando o dia acaba
ou brilhamos como duas adagas ao sol

nossa canção
a invasão dos dias
nossa matéria
o que está na sombra e não tem nome




EVOCAÇÃO DE RILKE

Quem tomará a minha mão
na noite de vermes
quando o asco me derruba
feito cão pela esquina

quem de coração amigo
chegará para beber a gota
de ternura estrangulada

quem me chamará de irmão
na dor imensa
quando o medo me acerta
com suas espadas de fogo




TODO VIVENTE CARREGA

Todo vivente carrega
seu fardo de solidão
nas entranhas
cheiros rudes no corpo
primaveras esquecidas
na caduquice da memória

se eu prossigo
no caminho
não se iludam
é pura teimosia

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Poemas do livro Claridade, de Jorge Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.
Ilustrações: Maria Izabel Carbunck Schissi

quinta-feira, 18 de março de 2010

O testemunho dos livros

Jorge Adelar Finatto



Os livros que nos acompanham pela vida são testemunhas da nossa história. De certa forma, somos feitos dos livros que lemos, e eles fazem parte do nosso ser.

O tecido das manhãs com que foi escrito Vagamundo ainda está presente nas suas páginas. O pequeno/grande livro está na minha estante há muitos anos, mas parece que chegou na semana passada. Difícil descrever o que senti ao ler os contos do volume de 96 páginas do uruguaio Eduardo Galeano. São contos, mas também podem ser chamados poemas. É uma dessas obras inesquecíveis.

Na parte interna da orelha esquerda, o registro do tempo em que o comprei: setembro de 1978. Um pedaço de mim está nesse livro como está nas páginas de tantos outros que me ajudaram a respirar naquele período sufocante, num país doente, num continente afundado em ditaduras, inclusive a de Cuba, que muitos de nós, naquele momento, víamos com outro olhar. Achávamos o sistema cubano justo e necessário.

Um engano, entre tantos, olhando com olhos de hoje. A ditadura cubana, que é uma tirania, está no poder desde 1959. O país não tem liberdade, a pobreza vive nas casas e nas ruas, e as pessoas que procuram mudar a realidade são presas ou mortas, como no recente caso do dissidente político Orlando Zapata Tamayo, que morreu após 85 dias de greve de fome.

De qualquer modo, escritores como Eduardo Galeano alimentaram e alimentam nosso sonho e nosso ideal de uma sociedade mais humana, democrática e muito mais justa. Isto é inspirador em qualquer época, independente de nossos enganos.
 
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Vagamundo, Eduardo Galeano. Editora Paz e Terra, tradução de Eric Nepomuceno, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1977. Com texto de apresentação de Otto Maria Carpeaux.
 

quarta-feira, 17 de março de 2010

Homem com naufrágio dentro

Jorge Adelar Finatto



O homem morava dentro do escafandro.
Os peixes o acompanhavam aonde quer que fosse.
Habitava o território de uma aquarela marinha.
As tardes povoadas de barcos, gaivotas, ventos, búzios.
Ela partiu certa manhã para um giro em torno da ilha onde viviam.
Gostava de ouvir o rumor azul do mar batendo nas pedras.
Nunca mais retornou.
O homem foi mirar os longes na beira do alto penhasco.
A barba cresceu, o tempo misturou as folhas do calendário, enquanto ele esperava.
A lágrima verteu cálida sobre a face fria.
Ele foi então morar no interior do escafandro.
Homem com naufrágio dentro.
Ela estava deitada no leito submerso do seu coração.
Nada em sua nudez lembrava a cálida presença.
O rosto parecia sereno, feliz.
Os cabelos flutuavam como anêmona.
Ele quis morar com ela no fundo das águas.
O irremediável abismo o chamava.
Muitas noites adormeceu com a esperança de não acordar.
Os peixes desenhavam coloridos traços ao redor do homem para despertá-lo.
Um dia ele acordou nas profundezas da manhã austral.
Uma força impressionante puxou o escafandro, ele enfim subiu,
arrastando suas correntes.
A praia vazia, as palmeiras, o horizonte.
A voz dela se distanciando na trompa dos búzios.
O homem saiu a andar na praia deserta da aquarela.
O que ele fez para suportar todas as manhãs que vieram depois? É um segredo que só os cavalos-marinhos e as anêmonas conhecem.

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Foto: J. Finatto. Escafandro utilizado por velhos marinheiros da Fragata Sarmiento, hoje museu naval, em Puerto Madero, Buenos Aires.