segunda-feira, 27 de setembro de 2010

O cinamomo

Jorge Adelar Finatto



Existe um edifício na rua Dona Eugênia, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, que tem um pequeno jardim na frente. Neste jardim vive um velho cinamomo.

Passei por lá no último sábado, o tempo estava um pouco nublado e frio. Me dirigia à banca de jornal que tem ali perto, onde costumo ir quando estou pela cidade.

Sempre que passo naquele lugar olho para o meu amigo cinamomo. Às vezes me pergunto se ele ainda se lembra de mim. Eu jamais pude esquecê-lo. Morei naquele edifício quando tinha nove, dez anos.

O cinamomo fazia parte das brincadeiras da meninada do prédio e da rua.

Pouca gente sabe - até porque existem hoje poucos cinamomos - mas essa árvore tem minúsculas flores que, na primavera, produzem um dos mais suaves e doces perfumes que conheço.

O meu velho cinamomo está lá, florido, exalando seu perfume em mais uma primavera das nossas vidas. A todos distribui seu aroma generosamente.

De certa forma, somos sobreviventes de um tempo e de uma cidade.
 

 


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Fotos: J. Finatto

domingo, 26 de setembro de 2010

Navegações

Jorge Adelar Finatto


Não existem chegadas
e partidas definitivas
rijos itinerários nascidos
na rota turbulenta
dos abismos

o que há é esta
necessidade de navegar
que começa não sei
em que rio ou fundão
e depois se expande

um dia toda busca
cristaliza
e se pode, enfim,
recolher as velas
no porto do outro
mundo

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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A queda do Águia Negra

Jorge Adelar Finatto


Os destroços do aeroplano ainda estão espalhados em volta do chafariz, no centro da Praça da Ausência. Essa queda do Águia Negra não foi apenas a décima oitava na vida do piloto Nefelindo Acquaviva. Ao contrário das anteriores, não foi um acidente.

Um traiçoeiro tiro de bombarda, de autoria desconhecida, está na origem do rompimento das relações entre a igreja e a aviação em Passo dos Ausentes.

Nefelindo decolou com o Águia Negra do fundo de seu quintal na tarde de sábado. Sobrevoou cercas e telhados a muito pouca altura. Os vizinhos taparam os olhos e ouvidos com as mãos e abaixaram as cabeças, temendo pelo pior.

O ensurdecedor e absurdo objeto voador - espécie de motociclo com asas de besouro, contruído por Acquaviva no galpão do seu pátio - ganhou altitude a duras penas, descrevendo no ar um preocupante ziguezague.

Quando atingiu a marca de 40 metros, Nefelindo iniciou manobra para contornar a torre da igreja e rumar ao sul, na direção de Porto Alegre. O acalentado sonho do pioneiro da aviação em Passo dos Ausentes é aterrissar um dia na capital do Rio Grande do Sul. Com isso quer realizar dois objetivos: chamar a atenção da sociedade para a existência da cidade esquecida, que nem sequer no mapa está, e divulgar a prodigiosa invenção aeronáutica.

No momento em que começava a volta na torre, ouviu-se o assombroso estrondo do tiro de bombarda, cujo projétil passou a poucos centímetros do aparelho, desequilibrando-o nas alturas. O aeroplano bateu no alto da torre contra a cruz, que se partiu e despencou. Em seguida, a nave precipitou-se vertiginosamente, vindo a cair sobre o chafariz no meio da praça. A água amenizou a queda.

Naquela hora a banda municipal ensaiava no coreto. Os músicos correram e retiraram o que sobrou de Nefelindo de dentro do casulo. O médico, Dr. Fredolino Lancaster, 96 anos, único da cidade, compareceu ao local pouco depois da tragédia e fez o atendimento de urgência. Disse que era um milagre o piloto ter sobrevivido.
 

Dois dias depois, no hospital, pela tarde, todo enfaixado na cama, Nefelindo segurava um charuto entre os dedos, enquanto olhava através da janela. Nuvenzinhas brancas desfiavam entre os fios do negro bigode. Nisso chegou o chefe local da igreja católica, Dom Krauss. O padre usava o chapelão preto em forma de bacia virada para baixo. Dirigiu-se secamente a Nefelindo, com forte sotaque germânico.

- Eu o proíbo de invadir o espaço aéreo da igreja. Se isso acontecer novamente, eu mesmo me encarregarei de atirar contra seu pássaro insano. Acredite, Nefelindo, sou bom atirador.

- Cínico chapeludo - respondeu o aeronauta com a voz cavernosa -, o senhor acaba de decretar o fim do nosso armistício. Nós da aviação não aceitamos ultimatos. Passou o tempo em que a igreja fazia o que bem entendia nesse fim de mundo. Prepare-se para o pior.

- Você não podia andar solto por aí, devia estar no hospício -, disse Dom Krauss, que se retirou furioso do quarto, abrindo espaço com os braços entre as duas enfermeiras que ali chegaram para atender o doente.
                              
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Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes, foi até o jardim do hospital e, diante da janela aberta do amigo, executou Adiós Nonino, de Astor Piazzolla.

O perfume das madressilvas impregna o ar nesses inícios de primavera.

Somos ruínas vivas em progresso na nossa pequena cidade. Um lugar onde a neblina veio morar com a solidão. 

Mas temos, como nosso aviador, a ambição dos altos voos.

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Mais sobre o Águia Negra no post de 5/5/10.

 

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A pensão do tempo

Jorge Adelar Finatto


O tempo, como se sabe, é um quarto de pensão. Num dia estamos hospedados e, noutro, não estamos mais. O viajante chega ao mundo com a mala  repleta de difíceis trabalhos. Vai morar na pensão. Trata de sobreviver e nessa lida empenha seus melhores dias. Em certo momento, vem o gerente da pensão e avisa que está na hora de ir embora.  Indignado, o viajante protesta: mas como, excelência, eu pago a hospedagem em dia, faço enorme esforço pra não me desentender com os demais hóspedes (o que nem sempre é fácil), levo uma vida honesta, luto pra fazer a coisa certa e, agora, quando a vida começa a melhorar, vem o senhor e me manda embora? Isso não é justo. Peço que reconsidere. O gerente, onipotente, diz tem gente esperando a vaga do quarto, você jamais foi dono de nada, isto aqui é uma pensão, um lugar de passagem, lembra? Nunca houve promessa de quarto eterno. O senhor tem de partir. Mas pra onde, pergunta o perplexo viajante, depois de todos os sacrifícios, é isso que me espera? Não faz sentido.  E quem disse que tem que ter sentido? Arrume a mala e vá para a estação. O seu trem não demora a chegar. O viajante fica em silêncio. Desiludido, fecha os olhos. Uma cálida lágrima escorre pela face.

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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Justiças*

 José Saramago


No dia de 22 de Julho de 2005, um cidadão brasileiro, Jean Charles de Menezes, de profissão electricista, foi assassinado em Londres, numa estação de metro, por agentes da polícia metropolitana que o confundiram, diz-se, com um terrorista. Entrou numa carruagem, sentou-se tranquilamente, parece que chegou mesmo a abrir o jornal gratuito que havia recolhido na estação, quando os polícias irromperam e o arrastaram para o cais. Não o detiveram, não o prenderam, derrubaram-no violentamente e dispararam-lhe dez balas, sete das quais na cabeça. Desde o primeiro dia, a Scotland Yard não fez outra coisa que criar obstáculos à investigação. Não houve julgamento. A procuradoria impediu que os polícias fossem incriminados e o juiz proibiu o jurado de pronunciar uma sentença condenatória. Já sabem, se algum dia lhes aparecer por aí uma peruca branca, dessas que aparecem nos filmes, digam ao portador o que as pessoas honestas pensam destas justiças.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Postado originalmente em 25 de fevereiro, 2009.
A grafia é a de Portugal.

Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A parte da orquídea

Jorge Adelar Finatto

A parte da beleza e da justiça que não se distribui, a parte do calor e da ternura que não se dá e nem se recebe, a parte dos sonhos extraviados na travessia, a parte do amor não vivido, essa é a parte da orquídea. 

O que ficará desse tempo seco e sem ar?

Levo no bornal o caderno de anotações, os lápis de cor, a caneta, o telescópio, o lampião, o impossível mapa e a máquina fotográfica pra descobrir a orquídea. 


Encho os olhos e o coração com suas cores, formas e raro aroma. No limite do penhasco, no velho tronco da beira do córrego, sob a sombra da densa nuvem, a orquídea respira e ilumina.

Orquídea, sim, orquídeas. 


 
O resto não importa. 

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Foto: J. Finatto

sábado, 18 de setembro de 2010

Escritores sem leitores

Jorge Adelar Finatto


Escrever pra quê? Será que ainda existem leitores no mundo? Onde estarão, em que escondidas bibliotecas, em que salas e quartos solitários e pouco iluminados resistirão?

A impressão é que, a cada dez novos escritores que surgem, aparece apenas um leitor. As estantes das livrarias estão repletas de livros que ninguém lê. Todos os dias novos títulos vão somar-se ao mar-oceano existente. Quem lê tudo isso?

Às vezes desconfio que tem gente que vai à livraria, compra sua sacola de livros, mas não lê. O livro como objeto decorativo, com poder de ostentação de leituras não acontecidas. Será?

Então a situação é a seguinte: pra salvar os escritores do risco de extinção, de hoje em diante todos vão ser também leitores. Esse o compromisso de cada escritor para a preservação da espécie.

Coisa triste é a criatura escrever, no rigor do esforço e no escasso da vida, e ninguém ler. Quem não precisa de um ora-veja nessa existência, um reconhecimentozinho? Ah, não, ninguém quer saber!

Eu sou solidário com os sem-leitores porque faço parte dessa multidão.

Dia desses um colega blogueiro me contou  que está querendo  pagar alguém pra ler as suas mal-traçadas. Ah, não!  Não podemos permitir que a sombra do desespero tome conta. Então, agora estou visitando a ilha do colega todos os dias.

Tenho visto muitas ilhas desertas, abandonadas taperas virtuais, mostrando que um dia houve vida ali. É duro.

Acredito que os livros nunca vão morrer. São objetos perfeitos na forma e carregam em si o espírito  humano. Mas e os escritores e blogueiros? Sobreviverão nessa penúria de leitores?


Não sei, não sei.

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Foto: J. Finatto