quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto


Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir

insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais

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Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J. Finatto

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Neblinense

Farandolino Brouillon

 
Quando hoje a neblina cercou a casa, tudo ficou  branco e deserto como um labirinto no gelo. Os seres e as coisas desapareceram. Silenciosamente fui até a janela. As silhuetas, de modo intermitente, surgiam e submergiam na névoa. Lembrei de quanta gente fugiu do retrato. Nem faz tanto tempo. Não sei mais direito que lugar é esse. Até há pouco estavam aqui, falando, gesticulando, rindo, sofrendo, contando histórias, reclamando, dando a mão. Certas ruas e esquinas moram dentro de mim, certas portas, soltas no espaço, me acenam, certas praças estão abandonadas.  Eu viajo no trem noturno que atravessa  os Campos de Cima do Esquecimento nesse absurdo itinerário. As cartas não escritas estão na mão do carteiro que se extraviou na bruma. Hoje, quando a neblina chegou de repente, envolvendo a casa, perdi meu rosto. Fiquei cego. Havia uma paisagem invisível lá fora e outra em mim. Fui andar no jardim à procura de quem sou. Muitos partiram. Estão todos cobertos, profundamente, em negras nuvens de seda.  Sou habitante de um continente de fantasmas.

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Foto: J. Finatto

domingo, 28 de novembro de 2010

Basquiat, anjo caído, expõe em Paris

Jorge Adelar Finatto


Saído do mundo das ruas, onde pintava grafites,
o artista conquistou as galerias e museus com sua arte.

Alguma coisa no traço de Jean-Michel Basquiat prende o olhar. Os grafites, em geral, cansam e entediam. Parece que só pioram a sensação de solidão e isolamento das grandes cidades. Raramente dizem algo poeticamente revelador. Mas sou teimoso. Sou capaz de parar na rua e ficar diante da parede ou muro, tentando entender e sentir o que é aquilo. Costumo ser vencido pelo vazio.

O grafite atingiu status de arte nos últimos anos graças ao talento de alguns desses artistas de rua.  Notadamente o grafite figurativo, diferente da pichação e daquilo que se limita a simples inscrição de letras ou números. Espaços públicos passaram a ser destinados a esses criadores. Quer dizer, cada vez menos a atividade criativa do grafiteiro é vista como um caso de polícia. Os próprios artistas estão conversando com a turma da riscalhada, pedindo que não estraguem esses ambientes duramente conquistados. 


Quando vi pela primeira vez as pinturas de Basquiat, tentei, depois dos cinco minutos iniciais, desviar o olhar e seguir meu caminho, mas não consegui. Comecei a percorrer a trilha da composição em cada quadro. Ali estava a visão de mundo elaborada esteticamente, com sua origem afro-americana, impregnada com áspero espírito urbano e uma busca intensa de liberdade e denúncia. São grafites figurativos, agora  fora das ruas, nas galerias, com cores e sentidos fortes.

Jean-Michel nasceu no Brooklyn, Nova Yorque, em 22 de dezembro de 1960, e morreu aos 27 anos, em 12 de agosto de 1988, na mesma cidade. Filho de pai haitiano e de mãe filha de porto-riquenhos, tornou-se reconhecido, primeiro, como grafiteiro e, depois, como artista plástico. Ele foi um dos principais responsáveis pelo reconhecimento do grafite como manifestação artística.




Por volta dos 17 anos, começou a pintar em prédios abandonados de Manhattan. A assinatura com que então se identificava era “Samo” ou “Samo shit” (same old shit,  sempre a mesma merda, ou a mesma merda de sempre). Num período, depois de sair da casa dos pais, teve de vender camisetas e postais na rua pra sobreviver. O trabalho de Basquiat chamou a atenção e começou a ser comentado, ganhando rapidamente destaque nos meios de comunicação. Passou a pintar quadros e expor. Constitui-se num raro caso de artista que cedo alcança reconhecimento. Formou, também, uma banda com conhecidos e participou de, pelo menos, dois filmes. Em 1982, teve um namoro com uma cantora pouco conhecida na época, Madonna. Fez parcerias com Andy Warhol.

Uma vida intensa e profissionalmente exitosa, com enorme exposição midiática, não o livrou do convívio com drogas como heroína e cocaína.

Morreu de overdose, no auge da carreira, em seu estúdio.


A obra de Basquiat é reconhecida e valorizada internacionalmente. Não se trata apenas de um caso de marketing. Há muita criação e valor poético nesses traços inquietos, vibrantes, agressivos, questionadores. A expressão do artista atingiu uma identidade que a caracteriza como única.

Olhemos as pinturas de Basquiat. Acaso não haverá no pulso febril e explosivo algo que o aproxima de irmãos mais velhos como Tintoretto e Van Gogh? Essas cores e figuras nos remetem a momentos de emoção, beleza e reflexão.

Basquiat foi um anjo caído na Terra, que muito cedo deixou o mundo. Fallen Angel, título da pintura azul acima.

O Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris está realizando uma exposição com a obra de Basquiat, desde outubro passado, que se estenderá até final de janeiro de 2011. Filas de quase 500 metros formam-se para a visitação. O interesse das pessoas se explica por se tratar de uma grata descoberta no território atualmente rarefeito de valores das artes plásticas.

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Imagens: foto e pinturas de Basquiat. Fonte: site oficial do artista: basquiat.com

© The Estate of Jean-Michel Basquiat / AUTVIS, 2010 

English text:

http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/03/coming-from-streets-where-he-painted.html

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A sinistra sinfonia

Lorenzo Schissi Finatto


A atual onda de violência que tomou conta da cidade do Rio de Janeiro assusta. Até o momento, em 5 dias de conflito, aproximadamente 40 mortes já foram contabilizadas pelos órgãos oficiais, mas essa conta ainda deve crescer, e é imensa se considerarmos apenas os anos próximos que a precedem.

Pra quem mora na cidade, a sensação é de guerra declarada. Uma espécie de Bagdá brasileira que aguarda pelas próximas bombas, os próximos veículos destruídos, os próximos territórios ocupados. Se aqui não há o fanático extremismo religioso, sobram extremos de outras ordens. Qual a razão de tanta brutalidade?

É certo que as verdadeiras razões da barbárie merecem estudo minucioso para que se chegue o mais próximo possível das raízes do problema. Todavia, motivos como a má distribuição da renda, a falta de oportunidades aos jovens – especialmente aqueles das comunidades mais carentes –, o alto lucro de tão poucos (instituições financeiras, por exemplo), em detrimento de tantos, apesar de repetidos à exaustão, certamente explicam em parte o triste quadro da realidade brasileira.

Diante de tudo isso, o fascínio da promessa de ascensão social “fácil” feita pelo tráfico de drogas atrai a muitos. Não sou dos que creem que a pobreza e a falta de oportunidades justificam a criminalidade, a conta não é tão simples de ser feita. Fosse assim, o número de criminosos em nosso país saltaria insuportavelmente. A verdade é que a imensa maioria da população humilde é de gente honesta e trabalhadora. Por outro lado, a corrupção geralmente ocorre entre as camadas mais altas e instruídas da população. Difícil exigir dos jovens marginalizados e fragilizados pela própria inoperância do Estado e pela indiferença de parte da sociedade uma atitude moral que não existe em alguns dos componentes de destaque da estrutura dos poderes da República, conforme a imprensa cotidianamente noticia.

Ao assistirmos a tudo pelos meios de comunicação (as câmeras de televisão, em especial, fazem o máximo para mostrar os detalhes do “conflito”), percebemos o quanto o momento é assustador. Por outro lado, talvez seja a hora de debater seriamente as raízes do problema da drogadição em nossa sociedade. Se existe o tráfico, é porque existe um mercado consumidor, principalmente entre as classes média e alta da população. E por que a vida dessa gente se tornou tão insuportável a ponto de necessitarem profundamente da droga para vivenciarem momentos de esquecimento e fuga?

Causa estranheza a pressa com que as autoridades vêm a público para garantir (não se sabe com base em que mágicos poderes) que a realização das olimpíadas e da copa do mundo não está ameaçada. Não seria melhor utilizar os incontáveis bilhões desses eventos (relevantes, sem dúvida, mas não nesse momento) na construção de hospitais, creches, centros comunitários e culturais, escolas, postos de saúde, urbanização de comunidades carentes, presídios etc.? As autoridades se apressam em confirmar os dois megaeventos esportivos. Enquanto isso, nosso Titanic afunda, após chocar-se contra o gigantesco iceberg da violência e do abandono. Mas a orquestra, inútil, não para de tocar a triste e sinistra sinfonia.

O Rio de Janeiro e o Brasil merecem mais do que isso.
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Lorenzo Schissi Finatto é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais no Rio Grande do Sul.
Foto: favela no Rio de Janeiro. Autoria: AP. Fonte: noticias.terra.com.br

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Mulher fazendo café

Jorge Adelar Finatto


A parede é espessa e fria. O tempo é lento e monótono como um carrossel. Ela escreve coisas e faz desenhos na caverna moderna onde vive. Em volta do fogão, ela esquenta água e aquece as mãos.  Às vezes, penetra um vazio na alma, dá vertigem. Então ela bate com o nó dos dedos na parede, como se houvesse uma porta, alguma secreta passagem, como se existisse alguém do outro lado. Precisa acreditar que existe vida. Vida humana, vivente e cálida. Uma pessoa como ela entre quatro paredes, quatro décadas, um coração partido em fatias, como o bolo caseiro sobre a mesa. Nuvens de signos saem do teclado pelo espaço, mas é um grito silencioso. Talvez exista alguém do outro lado, que também espere como ela, e sinta frio, e queira em ir embora dessa cidade deserta, fugir disso tudo, abandonar o mar morto das cavernas urbanas. Enquanto pensa essas coisas, ela prepara o café da noite.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

McCartney

Jorge Adelar Finatto


Nunca fui fã incondicional dos Beatles. A minha relação com o grupo foi sempre discreta (motivo de preocupação deles, claro). Não é uma questão de querer ser diferente, mas de  gosto. Aprecio diversas músicas, mas não tenho nenhum disco. Um perfeito ser das cavernas. Mas nada como um dia depois do outro. Acompanhei a passagem de Paul McCartney  (68 anos) por Porto Alegre através da imprensa (até porque não se falava noutra coisa). Posso dizer que tenho novas e boas razões para admirá-lo. A começar pelo esforço que fez em comunicar-se em português (muito bem, por sinal) com o público presente ao seu show. Vejo nisso uma manifestação de consideração com as pessoas, tão fãs quanto qualquer súdito da rainha. Admirável a sinceridade nas entrevistas, fazendo questão de mostrar-se como a pessoa que é, sem mitologia. Falou sobre seu vegetarianismo, seus filhos, sua carreira. Tratou todo mundo com gentileza, mas sem falsas intimidades. Cantou como se a voz estivesse ainda nos anos 1960. Foi simpático a ponto de, em pleno estádio lotado, repetir com a telúrica assistência "ah, eu sou gaúcho". Uma lição nesses tempos em que o planeta aderna com o peso de tantos egos inflados. Portanto, passei a gostar do cara. Como é bom poder dizer isso. Agora só falta o disco. Antes tarde do que nunca.

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Foto: Paul McCartney, Inglaterra, 2010. Fonte: Wikipédia. Autor: Oliver Gill.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Negrinha

Jorge Finatto


Li recentemente um livro que vale a pena. O título é Negrinha e seu autor é o francês Jean-Christophe Camus (filho de pai francês e mãe brasileira). A obra é ilustrada com belas aquarelas do também francês Olivier Tallec. É uma história em quadrinhos, lançada em 2009, o Ano da França no Brasil. Trata da vida cotidiana de uma menina de 13 anos, que vive no Rio de Janeiro e começa a entrar em contato com a realidade de sua família e sua cidade, um resumo de seu país. 

Aí nesse cenário há a beleza deslumbrante do Rio, com sua zona sul, seu mar, suas montanhas, sua gente bonita, seus personagens, como o vendedor de amendoim, o porteiro do edifício, os meninos jogando futebol, as pessoas na rua.

Mas ela também descobre a dureza da vida na favela e, nela,  os laços de afeto, as dificuldades de viver, a alegria simples, a comunhão através do samba. Nesta, Cartola recebe uma menção especial, justa homenagem. O problema racial, com sua carga de preconceito, violência e injustiça, é abordado com realismo e sensibilidade.

A apresentação de Gilberto Gil é preciosa.

Um livro belo e delicado que faz bem a brasileiros, franceses e seres humanos em geral.

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Negrinha. Jean-Christophe Camus (texto) e Olivier Tallec (aquarelas), 104 páginas. Tradução de Fernanda Abreu. Desiderata, Rio de Janeiro, 2009.