segunda-feira, 21 de março de 2011

Villa-Lobos e outono

Jorge Adelar Finatto



Celebro o começo do outono escutando o Concerto para violão e orquestra do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos (1887 - 1959). É uma comemoração discreta, íntima, como é o próprio outono. O concerto é uma obra que consagra o violão brasileiro e é, ao mesmo tempo, uma relíquia da humanidade. Villa-Lobos toca fundo as cordas do instrumento e dele colhe sublimes sonoridades.

A orquestra ao longe é a paisagem dentro da qual corre esse rio profundo e cheio de segredos.

Mestre das impossíveis harmonias, a música do maestro nos enche a alma. Somos tomados por um forte sentimento de gratidão. Na lápide do túmulo do compositor, no Cemitério São João Batista, na cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu, lê-se esta inscrição: Considero minhas obras como cartas que escrevi à Posteridade sem esperar resposta.

Os tempos são difíceis no mundo, eu sei. Mas nas folhas dos plátanos a luz âmbar amadurece. O outono traz nas mãos amenas tardes de sol, ocres silêncios, travessias e mergulhos na misteriosa partitura da vida.

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Fotos: 1) J. Finatto. Cenário de outono; 2) Heitor Villa-Lobos, cerca de 1922. Fonte: Wikipédia. Autor desconhecido.
Vale a pena fazer uma visita ao site do Museu Villa-Lobos:
http://www.museuvillalobos.org.br/

domingo, 20 de março de 2011

A coragem*

José Saramago


Patricia Kolesnicov é jornalista e argentina, mais jornalista que argentina em minha opinião, mas isto é só uma pequena ideia de literato, colocar a profissão antes da nacionalidade como se estivesse a substituir um mundo por outro. Há anos apareceu-lhe um cancro da mama que enfrentou com a coragem de que só uma mulher é capaz. Não o digo para parecer bem, para ganhar indulgências entre a outra metade da humanidade. Se o digo é simplesmente porque o penso: perante a dor, perante o sofrimento, elas são muito mais valentes que nós. A criança que chora e se lastima por ter esfolado um joelho continua a existir no homem mesmo que passem muitos anos, e quantos mais passem, mais essa presença se notará, a mulher meteu-lhe uma decidida chupeta na boca e, se a não conseguiu calar de todo, ao menos aplicou uma surdina aos seus queixumes, que os tornará relativamente suportáveis a ouvidos e sensibilidades alheias. O homem exibe, a mulher não quer que se note.

Quando o cancro foi vencido, Patricia escreveu um livro a que pôs o título de “Biografia do meu cancro”. Não gostei e disse-lho, mas ela não me fez caso. O livro (publicado também em Portugal, na Caminho) traça sem complacências um percurso duríssimo e, talvez para honrar a palavra daqueles que afirmam existir um humor judeu particular (Patrícia é judia), o relato, que noutras mãos seria grave, inquietante, inclusive assustador, desperta frequentemente em nós um sorriso cúmplice, uma súbita risada, uma irreprimível gargalhada. Com um pouco mais Patricia Kolesnicov tornar-se-ia mestra do paradoxo e do mais negro dos humores.

Patricia acaba de recuperar os direitos sobre a sua obra e não lhe ocorreu melhor ideia que pô-la na internet para uso, disfrute e lição de toda a gente. Leiam-na e agradeçam-lhe. E, já agora, agradeçam-me também a mim que sou seu amigo e escrevi estas palavras justas, mínimas para o que ela mereceria, mas que outros (os seus leitores) farão crescer pela via do respeito e da admiração. Pela coragem.
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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago:
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago:
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente pelo escritor, no seu blog, em 12/05/2009.
A grafia é a de Portugal.
Foto de José Saramago (1922 - 2010) : Acervo da FJS

sábado, 19 de março de 2011

Flor, sim, flores

Jorge Adelar Finatto

























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Fotos: J. Finatto. Passo dos Ausentes.
Carpe diem (Aproveita o dia. De um verso do poeta romano Horácio).

sexta-feira, 18 de março de 2011

Luz no breu

Jorge Adelar Finatto



Cada palavra escrita é um pequeno fósforo que se acende em meio ao breu profundo da condição humana. Ler e escrever são maneiras de dizer não à barbárie, à morte, ao esquecimento.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 16 de março de 2011

A boneca de trapo

Jorge Adelar Finatto


Era uma dessas tardes que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis diante das primeiras quedas de folhas e mudanças de cores e seivas na natureza. Em dias assim, estar vivo é uma sorte.

Encontrei uma boneca de trapo caída no chão da Praça da Ausência. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes. Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca era um pequeno risco vermelho e sorria. 
 
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Talvez um leve toque de melancolia no semblante. Afinal, alguém a deixara para trás. Levantei-a do chão e acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro.

Fui embora, não sem um pouco de dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe um novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu pudesse vir buscá-la e seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo. 

Viver tem dessas coisas. Nem sempre podemos ter o que nos encanta. Num dia, o céu azul, nuvens cor-de-rosa, o coração batendo harmonioso. Noutro, nuvens escuras e pesadas se espalham e a gente só pensa besteira.

A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence de verdade nesse mundo. Tudo que temos é emprestado. Um dia teremos de devolver. Nada nos pertence. Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de pano.

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Foto: J. Finatto. Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O barbeiro de Fernando Pessoa

Jorge Adelar Finatto


Fernando Pessoa (1888-1935) habita um quarto do apartamento do primeiro andar, lado direito, do edifício nº 16 da Rua Coelho da Rocha, no bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Cuida da aparência e dos fatos (ternos), que compra de bons fornecedores, apesar das sérias dificuldades financeiras. O que ganha trabalhando para casas comerciais, como responsável pela correspondência em inglês e francês, é insuficiente.

Costuma frequentar a Barbearia Seixas, quase na frente do edifício. Para lá se dirige seguidamente. Quando a única cadeira está ocupada por outro cliente, o poeta faz um discreto gesto, uma senha para o barbeiro Manassés. Este, tão logo se desocupa, dirige-se ao apartamento onde Fernando vive na companhia da irmã, do cunhado e da sobrinha. A visita de Manassés tanto pode ocorrer de dia como à noite.


A pequena sala abre a porta de madeira marrom sobre a calçada. Faz parte de um prédio antigo, castigado. Trata-se, hoje, de uma oficina de equipamentos de som. Nesse território perdido no tempo, encontro o senhor António Seixas, quase octogenário, que vem a ser o responsável técnico (ou será melhor dizer o alquimista?) do estabelecimento. É o filho de Manassés.*

No local exíguo, acumulam-se muitos aparelhos. Não existe uma ordem aparente. Mover-se, ali, requer estreitamento de ombros e movimentos de cintura. Coisa difícil.

Peço licença para entrar. António me recebe com um sorriso. Revela-se gentil no trato, tem excelente disposição física e boa memória.

Encantado pelos sons mágicos que brotam das caixas lumisosas, António Seixas não seguiu a profissão do pai, que ali se estabeleceu há mais de oitenta anos.


O menino António, com cinco, seis anos de idade, muitas vezes acompanhou Manassés até o quarto do Senhor Pessoa (assim refere-se ao poeta). Faço perguntas a respeito dessas incursões. António não é mesquinho nas respostas. Ao contrário, demonstra satisfação em recordar aquele tempo e a relação do pai com Pessoa.

Fernando mudou-se para a Rua Coelho da Rocha em 1920, tendo ele próprio alugado o imóvel. Cansado de perambular por quartos de aluguel e de parentes em Lisboa, fixa naquele apartamento e naquela rua o seu lugar de viver, o recanto de aconchego físico e emocional que lhe dará condições de desenvolver o trabalho literário num dos períodos mais produtivos.

Ali viveu com a mãe Maria Madalena e os irmãos, após o retorno destes de Pretória, África do Sul, onde o padrasto João Miguel Roza era cônsul, tendo lá falecido. Mais tarde, após a morte da mãe, foram morar naquele local a irmã Henriqueta Madalena (Teca) e o cunhado, coronel Francisco Caetano Dias. A sobrinha Manuela nasceu nesse apartamento. Neste endereço, o poeta viveu até a morte em 1935.

Manassés, segundo António, era mais do que barbeiro do Senhor Pessoa, era também seu amigo e confidente.

Fernando os recebia e os levava até seu quarto. António Seixas recorda o forte cheiro de tabaco daquele lugar pequeno e pouco iluminado, que tinha apenas uma janela. A primeira providência de Manassés, enquanto conversava com o Senhor Pessoa, era limpar os cinzeiros cobertos de “beatas” (pontas de cigarros já fumados).

António lembra a mesa do quarto cheia de papéis, os livros apertados em duas estantes. Encostada na cama, a cortina da janela iluminada pela luz que vinha da rua. Observa que o Senhor Pessoa era um homem reservado, educado, atencioso com o menino.


Aqueles que conviveram com o poeta dizem que ele era especialmente afável com os mais humildes. Pessoa ouvia com atenção o que lhe falava Manassés. Durante muitos anos o poeta comeu em restaurantes, bebeu e fumou muito, pouco dormiu. A morte com apenas 47 anos talvez tenha sido apressada pela vida que levou.

O edifício número 16 da Rua Coelho da Rocha abriga atualmente a Casa Fernando Pessoa. Concebida pela Câmara Municipal de Lisboa, foi inaugurada em 1993 e destina-se a preservar a memória do poeta. Encontra-se nela a biblioteca pessoal do escritor, com muitas anotações feitas por ele em diversos dos cerca de mil e duzentos volumes. Os livros tratam dos mais variados ramos do conhecimento. Entre objetos e documentos pessoais do autor, estão os óculos, canetas, máquina de escrever, fotografias, documentos e manuscritos, além dos poucos móveis que o acompanharam em vida. A famosa arca onde guardava seus escritos, que estava em poder da família, foi leiloada e está agora com um colecionador no norte de Portugal.

O que mais impressiona na Casa é o quarto do poeta. Um espaço pequeno, humilde, um tanto sombrio. Prova de que, para o verdadeiro criador, não existe lugar melhor ou pior para escrever. A arte muitas vezes floresce em lugares tristes e sem perspectiva, talvez até mesmo como reação do espírito à adversidade.

Os restos mortais de Pessoa repousam hoje no Mosteiro dos Jerônimos, no bairro de Belém, diante do Tejo. Em sua companhia, naquele lugar, está o não menos poeta Luís de Camões, além de Vasco da Gama.

Em meio à conversa, António Seixas me chama a atenção para um equipamento sonoro que ele mesmo inventou. Não existe nada melhor em matéria de som, segundo afirma. Liga o aparelho em alto volume, pergunta se já ouvi algo com esta qualidade. Não sei exatamente o que responder, mas o entusiasmo e a confiança do meu interlocutor são tamanhos que não tenho nenhuma dúvida a respeito do valor deste invento.

Despeço-me de António, agradecendo a sua generosidade por falar de suas lembranças do Senhor Pessoa.

Saio a andar pela rua que tantas vezes ouviu os passos do poeta. Um dos grandes gênios da literatura universal.

Vou até o restaurante da esquina. Tomo um caldo verde.


Mar Português

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

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Fotos: J. Finatto

Pela ordem: 1) grafite do poeta em rua do bairro Chiado, em Lisboa; 2) Casa Fernando Pessoa, onde viveu o poeta; 3) oficina do Senhor António Seixas, onde funcionou a Barbearia de Manassés, seu pai; 4) desenho de Pessoa numa das janelas do edifício

*Esse encontro ocorreu em 2007.
Texto publicado no blog em 15 de abril, 2010.

domingo, 13 de março de 2011

Hokkaido, ilha do coração

Jorge Adelar Finatto


Eu devia ter entre 10 e 12 anos de idade quando li numa revista uma matéria sobre a ilha de Hokkaido, situada a nordeste do Japão. Fiquei encantado com sua história mais do que milenar, sua cultura, suas paisagens.

Hokkaido passou a ser a minha ilha do coração.

As montanhas de onde se avista o mar azul, a neve, a variedade das flores na primavera, a delicadeza dos diferentes cenários, as pessoas boas e gentis.

Prometi a mim mesmo, na lonjura do menino que eu fui um dia, que não ia morrer sem antes conhecer Hokkaido. De preferência devia morar uns tempos na ilha.

Infelizmente, acabei não realizando esta promessa, pelo menos não até agora, Hokkaido é mais um sonho que ficou pra trás.

O terremoto seguido do tsunami que devastou o Japão na sexta-feira passada, dia 11 de março, me deixou profundamente triste. São milhares as vítimas, que ainda estão por ser contadas. Mais da metade da população de uma cidade está desaparecida. A explosão da central nuclear de Fukushima, 250 km ao norte de Tóquio, é apenas um dos terríveis efeitos desta tragédia. Só o tempo revelará o montante irrecuperável das perdas em vidas humanas. Os prejuízos materiais são incalculáveis.


Não sei das consequências do desastre na minha ilha. De qualquer forma, alimento ainda a esperança de conhecê-la, de caminhar entre suas flores, planícies e montanhas.

Espero, confio e rezo para que nossos irmãos do Japão consigam se reerguer de mais este sinistro acontecimento em sua história, como sempre fizeram no passado.

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Fotos: 1) imagem de Hokkaido. Fonte: 
2) cena do tsunami que assolou o Japão em 11 de março, 2011. Fonte: Reuters, Yomiuri.