terça-feira, 17 de julho de 2012

Teatro de Brinquedo

Jorge Adelar Finatto

Eugênia Alvaro Moreyra, cerca de 1920

Sempre cismei um teatro que fizesse sorrir, mas que fizesse pensar. Um teatro de reticências...
                                                                                                   Alvaro Moreyra
 
O Teatro de Brinquedo, criado pelo casal Eugênia e Alvaro Moreyra, em 1927, é considerado o primeiro movimento importante de renovação da arte cênica brasileira. A experiência constituiu-se na criação de um teatro de arte em oposição ao que era feito até então. Integrado por pessoas que não dependiam do palco para sobreviver, o movimento abriu novos caminhos para a nossa dramaturgia.

O que se fazia em teatro até a iniciativa do gaúcho Alvaro (poeta, escritor, jornalista, teatrólogo, cronista {1888-1964}) e da mineira Eugênia (considerada a primeira repórter brasileira {1898-1948}), com poucas exceções, eram espetáculos de feição popular. Mas popular no mau sentido: pouca qualidade, desorganização, com o único intuito de distrair a plateia e faturar.

A respeito do que queria com o Teatro de Brinquedo, disse Alvaro semanas antes de estreia, em 1927: "Um teatro de ambiente simples, até ingênuo, bem moderno, para poucas pessoas cada noite (...) Representaríamos os nossos autores novos e os que nascessem por influência nossa. Daríamos a conhecer o repertório de vanguarda do mundo todo. Os espetáculos de uma peça seriam um gênero. Seria outro gênero a apresentação de programas com pantomimas, de lendas brasileiras, canções estilizadas, comédias rápidas, motivos humorísticos. Nesses programas, tomariam parte poetas dizendo os seus poemas, músicos tocando as suas músicas".

Para a época, era uma proposta avançada. E Alvaro tinha consciência disso. Por essa razão, não alimentou ilusões de que o público iria aderir de imediato à nova ideia. Segundo ele, o Teatro de Brinquedo era "da elite para a elite". Isto é, buscava chamar a si aquelas pessoas da pequena burguesia que não freqüentavam a plateia por falta de espetáculos de qualidade. Durante a década de 20, a elite só comparecia ao teatro para assistir a companhias estrangeiras, principalmente portuguesas, francesas e italianas.

Alvaro e Eugênia queriam ver no palco, também, trabalhos que pensassem a realidade e a cultura brasileiras. Naquela época, chegaram a fazer montagens na periferia do Rio de Janeiro.

Alvaro Moreyra, revista Para Todos, 1927

O casal Moreyra sabia que o projeto não poderia contar com atores profissionais, porque estes precisavam daquele outro espetáculo, com casa cheia. O grupo, portanto, seria integrado por gente amorosa do palco "senhoras e senhoritas da sociedade do Rio, escritores, compositores, pintores. Tudo gente de noções certas. O teatro da elite para a elite. Teatro para as criaturas que não iam ao teatro".

O nome Teatro de Brinquedo veio do fato de os cenários serem muito simples, imitando caixas de brinquedo, com muita graça e certo tom lúdico. A estreia aconteceu em 10 de novembro de 1927, no Salão Renascença do Cassino Beira-Mar, no Rio, com a encenação da peça Adão, Eva e outros membros da família, de Alvaro Moreyra.

A iniciativa contou, ao longo do tempo, com a participação de gente destacada no meio cultural, como Felipe D'Oliveira, Olegário Mariano, Antônio de Alcântara Machado, Di Cavalcanti, Lúcio Costa, Tarsila, Hekel Tavares, Aida Procópio Ferreira e muitos outros.

Em 1937, o casal criou a Companhia de Arte Dramática Alvaro Moreyra, contratada, após concorrência, pelo Ministério da Educação do Governo de Getúlio Vargas. O Ministro Gustavo Capanema criara, no ano anterior, a Comissão do Teatro Nacional, que tinha entre os objetivos desenvolver a atividade teatral e promover estudos sobre o teatro.

Durante as apresentações, que ocorreram em 1937 e 1938, a companhia Alvaro Moreyra encenou peças de Ibsen e Pirandello, entre outros autores, em Porto Alegre, Rio e São Paulo. Além das peças, Alvaro realizava as "tardes culturais", nas quais havia palestras e coversas informais com o público sobre a história do teatro.

No Rio, o trabalho foi realizado no Teatro Regina. Gustavo Dória, no livro Moderno Teatro Brasileiro, publicado em 1975 pelo Serviço Nacional de Teatro, observa que, por essa época, Eugênia aproveitou um grupo de atores afastados do palco e organizou, com o apoio da Casa dos Artistas, um conjunto que percorreu os subúrbios da cidade, apresentando-se em circos, pavilhões, cineteatros e clubes. No repertório, havia Mãe, de José de Alencar; O noviço, de Martins Pena; O Rio, de Carlos Lacerda; Hedda Gabler, de Ibsen (protagonizada por Eugênia); Magda, de Sudermann, e Uma mulher e três palhaços, de Achard.

O Teatro de Brinquedo e, depois dele, a Companhia de Arte Dramática Alvaro Moreyra cumpriram um valioso papel, colaborando para renovar a nossa dramaturgia e, ao mesmo tempo, para abrir espaço aos que vieram depois.

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Texto reproduzido do livro Alvaro Moreyra, Jorge A. Finatto, Editora Tchê, Porto Alegre, 1985.
Foto de Eugênia: fonte: Wikipédia. Autor desconhecido.
Leia também:
Alvaro Moreyra:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/03/alvaro-moreyra.html

sábado, 14 de julho de 2012

O cavaleiro invisível

Jorge Finatto


Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Doré (1832 - 1883)


Um homem só, caseiro, beirando os cinqüentanos, cansado da vida pequena e vazia na qual nada acontece, resolve ir ao mundo em busca de aventura, justiça e amor.

A vida que vive não é a venturosa vida dos livros, é outra, enfadonha e triste. O melancólico senhor, habitante da região de La Mancha, na Espanha, mergulhou nas histórias de cavalaria, a elas dedicou seu tempo e sua alma, de tal modo que esqueceu o mundo real.

Vendeu até mesmo parte de suas terras para comprar volumes e mais volumes de livros de cavaleiros andantes.

O valoroso fidalgo, de modestas posses, alto e seco de carnes, revolta-se: é preciso espelhar o sonho na realidade, plantar uma flor no solo ressequido da realidade.

Alonso Quijano vai ao mundo à procura daquilo que mudará o imóvel destino, quer reviver em si as lendas da cavalaria, e tecer outras, delas extraindo glória, reconhecimeno e o amor de sua amada, a não menos inventada Dulcineia del Toboso.

O que nos diz o Quixote é que a vida cotidiana é insuficiente. Falta vida à vidinha.


Dom Quixote, por Gustave Doré
 

A figura imortal criada por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1615)¹ é o resumo da alma humana em suas maravilhas, esperanças, desesperos, contradições e tragédias.

O Cavaleiro da Triste Figura saiu pelas estradas poeirentas e bosques da Espanha para resgatar os oprimidos, dar ânimo aos infelizes, levantar os desvalidos, socorrer os caídos, lutar contra todas as injustiças, e para salvar a si mesmo.

Montado no magro Rocinante ele vai, armado cavaleiro andante, com escudo, espada e lança, tendo por companheiro Sancho Pança, muito louco e meio sensato, um pouco mais ajuizado que o amo, montado em seu jumento.

A vida tal como é não basta. É necessário inventar outra, erguer a aurora da escuridão. É preciso viver intensamente os dias que passam velozes e irrecuperáveis.

Viver com a urgência de quem se despede. Viver como quem morre.

"Eu, Sancho, nasci para viver morrendo."²

Ninguém no mundo terá jamais autoridade para censurar Dom Alonso pelo desvario e fracasso da louca odisseia. Só os secos de espírito o fariam.

Não será essa busca o anelo secreto que habita o coração de tantos homens e mulheres na difícil jornada através do mundo hostil e trevoso, sonhando e lutando por uma outra existência, que faça valer a pena ter nascido?

Há talvez um Dom Quixote adormecido e invisível em cada um de nós, à espreita da hora da rebeldia.

"Cada qual é artífice de sua ventura"³, ensinou-nos o Quixote.

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¹ Dom Quixote de la Mancha. Miguel de Cervantes Saavedra. Edição ilustrada por Gustave Doré, três volumes. Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado. Ediouro Publicações S.A, Rio de Janeiro, 2002.
² idem, terceiro volume, p.307.
³ idem, ibidem, p. 379.
Fonte das ilustrações: Wikipédia.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Alberta de Montecalvino

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


VENEZA é o sonho de toda Colombina.

Eu passei a vida em Passo dos Ausentes. O que é esse lugar? Um território sitiado pelo vento. A neblina, o frio e a chuva povoam a cidade o ano inteiro.

Habito com amargura e ironia esta estação de fim de mundo.

Casei-me aos 16 anos com Dom Alberto de Montecalvino, o Solitário da Biblioteca. Contrato de gaveta. Eu era de pobre origem. Estudava as primeiras letras e ajudava no serviço da casa. A mãe viúva de quatro filhos. 

Na época Dom Alberto contava 69 anos. Desde aquele quando, passei a viver neste austero castelo de basalto e vidro. Hoje tenho 70 anos, sou deveras viúva e, às vezes, me perco nos salões da memória. As intermitências.

Daqui de cima, na larga janela da biblioteca, avisto o Contraforte dos Capuchinhos. Gosto muito dessa visão porque por ali é que se vai embora de Passo dos Ausentes. Mas nunca passei naquela estrada. Dom Alberto me pediu que jamais o fizesse. Os medos. Atendi o bom homem. Passaram-se os anos.

O muito amado do meu coração é Pedrolino. Dom Alberto sempre soube, suportou, era como um pai pra mim. O meigo Pedrolino. Amoroso e fiel. Seu amor é casto e resignado. Tem as delicadezas e bosques de melancolia.

Arlequim é o senhor das labaredas.

Inconstante e fútil. Nunca vem ao meu coração. Tem meu corpo, jamais minha alma. Com ele muito me rio, é engraçado, leviano. Incapaz de amar alguém além de si mesmo. Não tem sentimento.

O corpo tem fome e a fome seus desejos.

Arlequim é malicioso, egoísta, por isso sabe agradar quando quer. Pedrolino é terno, quase um menino, vai direto ao assunto. Não conhece as sutilezas.

Quem pudera reunir, na mesma pessoa, as gratas virtudes. Mas o mundo humano foi costurado imperfeito, eu sei. Tal felicidade ninguém merece.

Ambos os dois, Arlequim, o devasso, e Pedrolino, o amado, são a minha devoção. Cada qual no seu momento.

Sou a Senhora da Biblioteca. Viúva mui constante em negras vestes de luto. Os respeitos a Dom Alberto. Tenho a minha idade, conheço os regulamentos, mas só os cumpro à minha vontade. Cultivo as devoções, no discreto.

Não me julguem tão depressa. Poupem-me da moral de almanaque.

De metafísica e solidão o cemitério está cheio. Conheço os reveses.

Eu vivo os enquantos.

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Texto publicado em 7 de julho, 2011.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Everything is fine

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


A névoa passeia lá fora. O relógio de madeira, na calçada, marca quinze para as cinco da tarde. O termômetro aponta cinco graus.

Estou num café em Gramado. Uma pausa na viagem a Passo dos Ausentes. As luminárias começam a acender aos poucos. Flores de inverno povoam os vasos da rua. 

Converso com a taça de cappuccino, que sabe a canela. Contra a opinião do médico (que está bem longe), saboreio uma fatia de torta.

Afinal, neste breve momento, tudo está bem. Everything is fine, diz o cantor, na música ambiente que toca no café.

Há vida na violeta rosa que enfeita o vaso sobre a mesa. Há vida em mim, nas poucas pessoas das mesas vizinhas, em todos os que caminham na rua fria. Simplesmente estamos vivos.

As humanas marés do pequeno planeta azul.

Para que não se diga: vida é o que acontece numa galáxia distante.

Como diz a música, tudo está bem.

Uma espécie de leitmotiv da tarde de inverno.

Sou um peixe sob a fina garoa que agora cai. Um peixe feliz no aquário.

Uma manta xadrez cobre as pernas da moça na cadeira de rodas. Ela sorri ao posar para a fotografia ao lado do relógio de madeira.

Este momento de felicidade pertence à moça bonita da cadeira de rodas e ao peixe que a observa no aquário.

Ela fala com a menina que a acompanha, empurrando a cadeira. Tiram outras fotografias.

Entrementes (bonita palavra numa tarde assim), o cantor abre o coração: darling, i love you; baby, i want you; all is true.

As palavras são as mesmas de sempre. Mas o que dizer se o cantor está apaixonado e quer gritar isso ao mundo?

Afinal, tudo está bem na tarde de julho.

A moça da cadeira de rodas desaparece na névoa com seu sorriso.

sábado, 7 de julho de 2012

A busca, nos livros, do ora-veja da vida

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

Na tarde chuvosa e fria, entro na livraria. A procura persistente, e vã talvez, de encontrar, nos livros, o ora-veja que falta na vida. Essa busca renova-se a cada nova obra que levamos para casa.

Escritores e poetas são seres que habitam a nossa sensibilidade. Fazem parte do que somos e do que queremos ser. Ajudam-nos a caminhar na estrada em meio a tanta treva.

Costumo levar um livro na bagagem, para diminuir o banzo e a solidão das viagens. O livro traz, em si, um pouco da casa que ficou distante. O fato de sabê-lo por perto, ao alcance da mão, no quarto de hotel, proporciona o aconchego das coisas íntimas.

Hoje os meus livros estão mais sossegados nas estantes. Mas nem sempre foi assim. Eu, que detesto mudanças de endereço, perdi a conta de quantas vezes tive de mudar de casa neste mundo de Deus.

Nunca me acostumei a esses movimentos que trocam tudo de lugar. Um sofrimento sair da casa, da rua, da cidade. No meio do caos emocional que isso traz, os livros nos acompanham, passando um sentimento de permanência.

Os livros são nossos confidentes e amigos espirituais.
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Texto publicado em 19 de julho, 2011.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Caminhando na névoa

photo: j.finatto. Passo dos Ausentes, inverno, 2012.

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acasadachuva@hotmail.com

quarta-feira, 4 de julho de 2012

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto



photo: j.finatto

O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás, azul e rosa o coração. O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.

Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.

Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o resgatou da solidão de náufrago. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele era muito certinho. A vida não era.

O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.

A família que, no passado, foi unida agora vivia dividida, os irmãos quase não se convivem.

A mãe, que em vida teceu com dedos de cristal os frágeis laços do afeto familiar, morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os laços se partiram.

Ele voltou a viver no fundo da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, bairro, cidade, país.

O seu mundo de náufrago reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e aos impiedosos dias de domingo.

Teve poucos relacionamentos depois, coisas fatigantes, sem nenhuma importância.

O sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas memórias, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, pra ele é vertigem.

O lugar onde vive - a remota e inalcançável ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao deserto. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.

As hortênsias acendem as manhãs, iluminam a casa.

A janela é o ponto de referência dele no planeta.

Dali pode ver a praça e as pessoas, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.

De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela.

No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.

O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.

A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.

Se fez tratamento psiquiátrico sobre esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças.

Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.

A praça está vazia. Recorda-se dos dias em que caminhava com ela por ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.

Se ao menos tivesse um gato de verdade.

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Texto revisto publicado em 17 de fevereiro, 2010.