terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Um poeta chamado Antônio Carlos Arbo

Carlos Alberto de Souza


Antônio Carlos Arbo. photo: acervo da família
 
 
O mistério dos quintais
 
Existe um mistério
No fundo dos quintais!
Ainda mais
Nos quintais
De casas muito antigas...
Deve ser a alma da infância
Que ficou presa ali
- qual balão cativo -
Esvoaçante no tempo...

Nascido em Palmeira das Missões em 1935, o menino cresceu no velho casarão que abrigou seus pais e avós. Ginasiano, estudou em Cruz Alta e Passo Fundo; no Clássico já estava em Porto Alegre, onde avançou para as Artes Dramáticas, na UFRGS. Foi editor de texto da Cia. Cinematográfica Wilkens Filmes. O percurso revela tratar-se de um homem em busca de realização, dotado de sensibilidade, ligado às letras.
Antônio Carlos Arbo radicou-se em Santa Maria em 1965. Realizou o sonho de trabalhar na então recém-fundada UFSM. Depois de passar por vários setores, fixou-se como jornalista da instituição. Atuou na Rádio Universidade e paralelamente na TV Imembuí. Já casado com a sua Yolanda, teve os filhos Negendre, Dimítri e Marjoleine. Quando na adolescência os filhos homens formaram o Quintal de Clorofila, compunha com eles, exímios instrumentistas.
Mudanças de casa também servem para encontrar perdidos que são um achado.

Eis que recupero, depois de muitos anos, Tempoema (Imprensa Universitária – UFSM – 1979), livro de Antônio Carlos Arbo, com uma dedicatória: “Uma lembrança do primo e colega de profissão, 19-03-80”.

Não lembro o ano em que, ainda jovem para os padrões atuais, Antônio Carlos morreu. Penso em investigar. Desisto. Faz de conta que ele ainda vive. E de fato vive nas coisas belas que legou, como, por exemplo, O mistério dos quintais (dedicado a Mario Quintana) e A viagem.

A viagem

O pó levanta dos meus passos
Sem destino,
Do andar, andar, no quarto quente.
O calor podre desprende um ar
Viscoso e irrespirável,
Como o fundo de um lago de petróleo...
E as malas estão ali,
Recebendo o pó de minhas viagens
Circulares ao redor de mim mesmo.
Elas foram feitas para partir
Mas estão ali
Inertes à espera do viajor.
Somente os passos viajam
E o pó levanta no quarto quente,
Enquanto o tempo viaja nos meus passos.

_____________

Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.
smcsouza@uol.com.br 
(A voz de Antônio Carlos Arbo recitando O mistério dos quintais:
http://www.youtube.com/watch?v=-aoYBcJrGWk)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Os direitos humanos em Cuba

Jorge Adelar Finatto
 
 
Yoani Sánchez. Fonte:Wikipédia
 

As ditaduras são feitas de cadáveres e prisões. Não existe a figura do bom ditador.

Sejam de direita ou de esquerda, ditaduras são igualmente infernais. As pessoas da minha geração, que sofreram na pele a falta de liberdade e de perspectivas durante o período ditatorial brasileiro, sabem o que isso significa.
 
Depois de muitas e frustradas tentativas, a filóloga, jornalista e blogueira cubana Yoani Sánchez, nascida em 4 de setembro de 1975, conseguiu autorização para viajar para fora do seu país. Chegou ao Brasil há alguns dias, o primeiro país que visita.
 
Yoani é alguém com coragem para criticar o sistema político e social em seu país. Criou, em 2007, o blog Generación Y. Por conta disso, é perseguida. Não é inimiga de Cuba, pelo contrário. Quer mudanças, quer mais participação do povo e melhores condições de vida. Deseja, enfim, o que qualquer pessoa razoável sonha: uma existência melhor para todos.
 
O tratamento agressivo que Yoani vem recebendo no Brasil, por parte de alguns defensores do regime ditatorial cubano, é desrespeitoso não apenas com ela como em relação à sociedade brasileira, que não aceita o cerceamento à liberdade de expressão.

A visita da jornalista tem sido marcada por manifestações antidemocráticas e grosseiras contra ela, por parte dessa minoria extremista que nem de longe representa o povo brasileiro, por "ousar" criticar o regime.

Os irmãos Fidel Castro Ruz, ex-presidente, e Raúl Castro Ruz, atual líder político de Cuba, não se mostram dispostos a permitir a democratização e nem a rever a forma de tratar os opositores do regime de partido único (Partido Comunista de Cuba).

A Revolução Cubana, vitoriosa em 1959, liderada por gente como Fidel Castro e Ernesto "Che" Guevara, combateu a ditadura do general Fulgencio Batista, que, entre outras violências, tratava com brutalidade os inimigos políticos.

Uma vez no poder, os dirigentes cubanos repetem a intolerância contra os adversários.

Informações divulgadas ao longo das últimas décadas mostram que a revolução trouxe avanços, principalmente em áreas como educação e saúde. É um país pequeno, que tem hoje cerca de 12 milhões de habitantes.

O embargo econômico imposto pelos Estados Unidos só tem colaborado para a falta de avanços sociais e políticos em Cuba. A posição americana é um obstáculo ao fim da ditadura e fortalece o discurso persecutório dos governantes. Yoani, por sinal, é contra o embargo.

Fidel Castro, seu irmão e sequazes cometem o erro essencial de todos os ditadores: acham-se insubstituíveis, e não admitem a transição democrática do poder. Consideram-se melhores e mais preparados do que todos os outros cidadãos e só eles sabem o que é bom para o país.

O governo que se diz revolucionário não reconhece a existência de perseguições por razões de consciência e afirma que o que há são mercenários a serviço dos Estados Unidos, alegação que não convence a mais ninguém.

O que se pergunta é quantas prisões e até mortes serão ainda necessárias para que se estabeleçam o diálogo e o respeito aos que pensam diferente do governo em Cuba.

É uma violência aos direitos humanos um mesmo grupo manter-se no poder por tanto tempo, afastando a população da democracia, negando-lhe direitos políticos e condenando gerações ao silêncio e ao atraso.

Não existe justificativa, do ponto de vista ético, político e humano, para essa eternização, que só é possível mediante a eliminação da liberdade e, às vezes, da própria vida de quem é contrário ao sistema.

O que se espera do governo brasileiro é uma posição firme e clara contra a falta de democracia naquele país e contra a perseguição movida aos que se manifestam por mudanças.
 
É incompreensível e inaceitável o longo e pesado silêncio das autoridades brasileiras em relação aos direitos humanos e à escuridão política em Cuba.
_________________

A blogueira cubana e o blog do juiz:
http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2013/02/24/a-blogueira-cubana-e-o-blog-do-juiz/

O testemunho dos livros:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/o-testemunho-dos-livros.html

Generación Y:
http://www.desdecuba.com/generaciony/

De Cuba, com carinho (livro de Yoani Sánchez):
http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/707897-em-de-cuba-com-carinho-yoani-sanchez-questiona-ideologias-latino-americanas.shtml

A arte de ser juiz:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/07/arte-de-ser-juiz.html

jfinatto@terra.com.br
 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Hokusai e Drummond, passeio na livraria

Jorge Adelar Finatto


xilogravura de Hokusai: A grande onda de Kanagawa. Fonte: Wikipédia
 

A livraria é uma coisa viva. Cada livro é algo pulsante, todos têm um coração. O seu coração.

A internet está aí com toda a força. E, no entanto, os livros de papel não caem no esquecimento. As livrarias estão cheias de títulos e leitores. Pelo menos as grandes. Não sei o que se passa com as outras.

Na tarde nublada de Porto Alegre, resolvi visitar a livraria do bairro. Estou aqui entre as estantes, caminhando no bosque. Tem gente que compra livros e lê por obrigação. Eu leio por necessidade espiritual, encantamento, interesse estético, busca-vida.

Exposição de livros 
 
Li no jornal que as livrarias maiores estão cobrando para expor os livros. Cada espaço tem um valor, conforme a localização. A vitrine é o lugar nobre. Os demais suportes têm preços correspondentes ao destaque, à visibilidade no ambiente.
 
Está muito difícil a vida de autor novo ou desconhecido. Em geral, após o lançamento, a obra fica exposta por poucos dias e logo é retirada. Desaparece. E o escritor/escritora ficam amargando a frustração de não ver mais seu trabalho ao alcance do leitor, depois de ter conseguido - a duríssimas penas - o milagre da edição.

A oferta de autores é muito elevada e a fila anda, como se diz. Só que anda a uma velocidade terrível e sem noção. Enormes dificuldades se apresentam para divulgação das obras nos meios de comunicação. Não há mais espaço - com poucas exceções - fora do estrito interesse econômico da empresa.

Faz tempo que o mundo do livro perdeu a face humana e artesanal. Tornou-se um comércio como outro qualquer, feroz e frio.

Publicação

Os critérios que regem a publicação obedecem, quase sempre, a valores de mercado.  A margem de risco, isto é, de aposta em autores iniciantes, fora de catálogo, é cada vez menor.

Tenho dúvida se um autor como Guimarães Rosa seria editado atualmente, se fosse jovem. Isto porque a qualidade literária conta muito pouco e o senhor Rosa é considerado um autor difícil, desses que exigem maior entrega do leitor. Hoje o que importa  é se o escritor é bom de marketing. O resto é indiferença.

Não sei que futuro espera escritores que são bons de texto, mas não conseguem apoio de uma editora. Talvez não haja futuro algum.

Talvez o futuro da escrita esteja no livro eletrônico. No presente, a nuvem virtual é a saída para os que querem mostrar algo.

Sugestão: se cada editora fizer uma seleção anual para publicar, ao menos, um livro pelo valor literário, fora do conceito best-seller, já ajudaria.

No café da livraria

O que eu procuro entre as estantes, onde estou agora, é o prazer da leitura. Procuro bons autores, esses que resistem sem se entregar ao dono do inferno.

No café da livraria, é hora de folhear os livros colhidos no bosque. Numa mesa próxima, vejo uma leitora com rotundas lentes nos óculos virar as páginas de um volume de matemática. Faz isso com visível prazer.

Vida sexual dos leitores

Na mesa ao lado da minha, duas mulheres conversam sobre retiro espiritual, dieta, cuidados com a beleza e vida amorosa.

Ouço o que dizem não porque quero, mas porque elas falam como se estivessem em casa, sem nenhuma cerimônia e nenhuma timidez.

Uma delas se saiu com esta: "Estou tendo uma excelente vida sexual comigo mesma". Deve ser um tipo de self-service. Que tempos!

Confissões de Minas

Com esforço, volto aos meus livros. Confissões de Minas¹, de Drummond, está entre os eleitos de hoje. As primeiras páginas são daquelas de não largar mais o volume. "Simples traços de pena - mas tão densos, tão firmes e tão elegantes que nunca mais se apagarão", afirma Antonio Candido sobre a obra.


gravura Fuji Vermelho, de Hokusai. Fonte: Wikipédia


Pinturas de Hokusai

O outro escolhido é Hokusai, mountains and water, flowers and birds² (Hokusai, montanhas e água, flores e pássaros), livro com reproduções de imagens do grande mestre da pintura e da gravura japonesa Katsushika Hokusai (1760 - 1849). Vou viajar nessas pinturas. Uma maravilha.

Arte e navegações

A arte faz falta. É difícil viver longe dessas coisas que nos ajudam a prosseguir viagem.

Com a arte navegamos em nossos pequeninos barcos sobre a imensidão das ondas.
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¹Confissões de Minas. Carlos Drummond de Andrade. Cosac Naify, São Paulo, 2011.
²Hokusai, mountains and water, flowers and birds. Matthi Forrer. Prestel Publishing, New York, 2011.
 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Ossos do vento

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. estrada Nova Petrópolis a Picada Café

 
Um silêncio dentro do silêncio
                             um novelo desfiado no vento
                                                      um arabesco gravado no tempo.
 
Caminhos dos Campos de Cima do Esquecimento. Vou pela curva da estrada, à sombra verde dos plátanos. Tão bom andar assim na beirada sinuosa dos precipícios, ouvindo o claro silêncio das nuvens.
 
No Contraforte dos Capuchinhos, visito Claudionor, o Anacoreta, que não via há muito tempo. No mosteiro onde vive, passei um dia em recolhimento espiritual na sua caverna mística. Enquanto olha - lá de cima - o distante Vale do Olhar, Claudionor me diz:
 
"Tem dias que escuto meus ossos sacolejando no bornal de Deus.
 
"Um dia, quando eu for só silêncio, Ele virá me buscar.

"Reunirá meus restos de humanidade, me carregará nos braços para outro lugar onde vou renascer. Sim, quero nascer outra vez, uma nova oportunidade. A vida é muito escassa. Vivi anos, décadas, decifrando o invisível em salas solitárias, folheando livros obscuros, tateando a sombra, orando.
 
"Na existência que me espera, vou passar os dias nas estradas. Um amanhecer em cada lugar, um amigo em cada canto, um olhar de cada vez."

Voltei a Passo dos Ausentes sentindo o cheiro da uva recém colhida dos parreirais. Comprei na beira da estrada dois cestos de vime cheios do bom fruto.

Volto mais leve - e menos só - depois de ter conversado com Claudionor.
 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Todo vivente carrega

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto. Paredão de basalto. Serra dos Ausentes
 


Todo vivente carrega
seu fardo de solidão
nas entranhas

cheiros rudes no corpo
primaveras esquecidas
na caduquice
da memória

se eu prossigo
no caminho
não se iludam
é pura teimosia

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Poema do livro Claridade, de Jorge Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.
 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A solidão segundo Heitor dos Crepúsculos

Jorge Adelar Finatto 
 

photos: j.finatto


Somos poucos e invisíveis. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.
 
O outono amadurece nas ruas da velha cidade. É quando, no silêncio de antigos retratos, as imagens ganham vida própria e passam a viver outra existência. Um certo rumor habita o silêncio.

O fantasma-mor de Passo dos Ausentes diz que desistiu de aparecer e desaparecer no ar feito nuvem de neblina. Heitor dos Crepúsculos afirma que o motivo é simples: a canseira que isso lhe dá.

- Materializar-se, desmaterializar-se, não apenas cansa, como é parte de um formalismo que perdeu a razão de ser neste lugar, - declara.

- É um ritual desnecessário em Passo dos Ausentes, onde todos padecem do fenômeno da invisibilidade. A cidade e seus habitantes nem ao menos figuram no mapa do Rio Grande do Sul, - constata Heitor.

O nosso lugar no universo é um mistério.
 
Somos personagens de um mundo em extinção.

A cidade não existe oficialmente, apesar dos inúmeros pedidos nesse sentido feitos ao Estado ao longo do tempo, todos denegados. E, no entanto, somos uma das cidades mais antigas da Província de São Pedro. Surgimos logo depois da destruição da Missão de São Miguel Arcanjo pelos exércitos de Espanha e Portugal. Essa história já abordamos no documento A cidade perdida: as origens, neste mesmo espaço.


As pessoas nada sabem da nossa cultura, das nossas origens, do nosso sentimento, da nossa história.

Vivemos isolados. Em parte devido às difíceis condições de acesso pelas encostas das montanhas. Também influi o fato de sermos uma pequena comunidade com cada vez menos habitantes. Um outro aspecto tem a ver com a indiferença dos governantes e dos meios de comunicação, que só vêem o que lhes interessa.

Simplesmente não nos vêem, não nos conhecem, não nos sentem.

A Sociedade Histórica, Literária, Filosófica, Geográfica, Artística, Geológica e Astronômica de Passo dos Ausentes, presidida pelo filósofo Don Sigofredo de Alcantis, decidiu incluir Passo dos Ausentes na carta estelar da constelação de Atlântida, como forma de melhorar a nossa autoestima. É onde hoje figuramos no universo.

De certo modo Heitor tem razão de abandonar certas formalidades fantasmagóricas na Terra dos Ausentes. Anda pelas ruas como um de nós. Ninguém estranha.

A única norma fantásmica da qual Heitor não abre mão é a que diz respeito a jamais deixar-se fotografar. Isso, segundo afirma, seria expor-se demasiado, até mesmo para um fantasma com costumes e idéias liberais como ele.

O lugar preferido de Heitor dos Crepúsculos, na verdade, são dois.

Um deles é o Café Somos Poucos, um recanto aprazível, com gerânios nas janelas, perto da Praça do Esquecimento. Ali se pode tomar o delicioso cappuccino dos suspiros, acompanhado do inefável sonho do oblívio.

Heitor senta-se no fundo do café. A pequena mesa fica ao lado de uma janela que tem sempre metade da veneziana fechada, a seu pedido.

- Gosto de ficar aqui lendo, é o meu ponto de observação das palmeiras, da estrada de ferro e das ausências que povoam esse não-lugar - observa.
 
O outro lugar de Heitor dos Crepúsculos é a velha estação de trem abandonada. Está desativada desde 1951. A antiga maria-fumaça permanece na gare, como nos tempos dos trens de passageiros. Mas nunca ninguém mais viajou como antes.

Dos Crepúsculos aparece na estação, nas tardes cinzentas, pra conversar com seu amigo Juan Niebla, 86 anos, músico cego que toca bandoneón pra alegrar os invisíveis passageiros que não chegam mais. Niebla, apesar disso, não abandona o cargo público para o qual fez concurso e foi nomeado aos 15 anos, em 1927, ficando cego logo em seguida. Permanece no seu posto aguardando a volta do trem de ferro.
 
- No dia em que o trem voltar a nossa cidade, subindo as íngremes montanhas outra vez, estarei aqui para receber os viajantes - diz ele.

Às vezes, Niebla e Heitor saem a caminhar sobre os dormentes até desaparecer na névoa que aqui em Passo dos Ausentes é permanente. Em certas ocasiões, Heitor faz movimentar a maria-fumaça e eles saem em breves passeios pelo caminho dos pinheiros, na margem sinuosa do Rio da Ausência.


O trem, que nunca mais desceu os temerários paredões de basalto da Serra dos Ausentes, contorna perigosos peraus nas cercanias da cidade, descortinando ao longe uma das mais belas vistas do planeta. O trem fantasma depois volta para seu lugar na estação.

Numa de nossas conversas, Heitor dos Crepúsculos confidenciou o quanto a solidão lhe pesa no coração.

O fantasma gosta de me visitar, nos dias de chuva, no escritório, vestindo o negro capote.

- Como já disse uma vez, um fantasma só se torna fantasma porque ama a vida e não aceita volatilizar-se em definitivo. Sonha a impossível permanência entre os vivos. Sempre me sinto sozinho, o que não é de espantar para alguém que se matou, num momento de bobeira, aos 27 anos. O anoitecer é o pior momento do meu dia. Queria ter sido uma pessoa mais leve, mais feliz, com mais fé. O que se há de fazer?
 
Continua Heitor:

- À noite é quando fica mais escuro dentro da minha alma. Saio a me procurar pelos corredores, escadas e sótãos do meu ser abandonado. Sinto essa falta de ser que sempre me acompanhou. Durmo por exaustão, é como cair num poço. É estranho como certas ausências nos acompanham pela vida e atravessam o umbral conosco.

- A noite me invade e me desconcerta. Esse frio e esse vento me habitam. Vivi, vivo (modo de dizer) no chapadão dos Campos de Cima do Esquecimento. Um tempo sem relógios.
 
- Os dias caem do calendário como as folhas no outono.

- Nasci em Passo dos Ausentes, aqui me criei. O meu melhor amigo sempre foi Juan Niebla. Não me evita como os outros.

Niebla costuma dizer:

"Pra mim, nunca morreste, Heitorzinho. Não sei se és um fantasma como dizem, nessa altura pouco me interessa. Se fores, tanto faz. Sou músico e sou cego, moro nessa lonjura, um pouco fantasma também. O importante é que me visitas. Como vês, aqui na estação tudo é muito solitário. Sou eu, meu bandoneón e este banco. Ainda bem que estás por perto.
 
"Acho que somos todos uns desarraigados neste mundo, uns pobres coitados, cada um traz o irremediável dentro de si, só que uns escondem melhor o desamparo do que os outros."

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Texto publicado em 15 de março de 2010, ora revisto. 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Série Retratos 10 (Uma cidade pela frente)








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photo: Jorge Finatto
Guaíba com Porto Alegre ao fundo. Vista a partir do clube Veleiros do Sul.
Pedidos de cópia ou reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail j.finatto@terra.com.br