segunda-feira, 1 de abril de 2013

Um poeta voando por aí

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

Nascer em Passo dos Ausentes é uma condenação ao degredo eterno. Essa cidade não está sequer no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos seres perdidos no vento.
 
A situação em que eu, Filipe Penaverde, me encontro: abismado e solitário, poeta lírico, 21 anos, lúcido e à margem. Trago perplexidades que não querem silenciar.

Quanto mais eu penso mais eu quero sumir desse lugar. Mas ir pra onde? Viver do quê?

A solidão não é um problema geográfico, eu sei. É no interior da alma que ela habita. Estamos sozinhos em toda a parte. Uma espécie de cósmico exílio.
 
Por aqui não existem outros da minha idade, exceto uns quatro ou cinco beirando os trintanos. Os que não estão muito velhos estão de partida para o além.

Um cansaço existencial viver aqui no fim do mundo.

Muitos abandonaram a cidade em busca de um futuro. Mas que futuro? Eu escolhi ficar nesse ambiente demasiado esconso, demasiado ventoso e perdido, porque tenho medo do lado de lá das montanhas. 

Espero que Deus não me abandone nessa lonjura.

Fica perto de quê, alguém pergunta.  De lugar nenhum.

Passo dos Ausentes é um pueblito no frio. Um cochilo do Senhor na criação do mundo.
 
Se ao menos eu tivesse a coragem que me falta. Fico quando quero partir. Morro quando devia viver.

Estou no meu caminho de angústia voando entre abismos. Don Sigofredo de Alcantis, filósofo-mor, diz que é assim mesmo, mas que depois tudo vai melhorar. Quem me dera.

Peneiro o invisível até encontrar a saída luminosa.
 
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Filipe Guilherme Telles Correa dos Santos Penaverde é jovem poeta e secretário da Sociedade Literária, Filosófica, Artística, Histórica, Geográfica, Astronômica, Antropológica, Musical e Antropofágica de Passo dos Ausentes.
 

domingo, 31 de março de 2013

Manhã de Páscoa

Jorge Adelar Finatto



O que as mulheres estão olhando? O que vem pela frente na estrada do tempo? Quem ficou em casa sem nada esperar?

Que mistérios, que notícias virão enrolados nos palimpsestos da manhã de Páscoa?

O amanhecer avança entre as sombras.

O que há de luminoso no domingo de Páscoa é que todos estão vivos. Anda pela casa o cálido rumor de vozes, conversas, cantigas, risos, que começa na quinta-feira Santa e se estende até a Ressurreição.

Todos estamos vivos e a esperança habita entre nós.

A vida vence a morte e nada está perdido.

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Imagem: pintura Manhã de Páscoa, de Caspar David Friedrich (1774 - 1840). Fonte: Museu Thyssen-Bornemisza, Madri, Espanha:
http://www.museothyssen.org
Texto publicado em 23 de abril, 2011.
 

sexta-feira, 29 de março de 2013

A princesa africana

Jorge Adelar Finatto

Princesa africana. Escultura em basalto
de João Bez Batti Filho
photo: j.finatto.


O escultor Bez Batti pediu-me certa vez para dar nomes (sugestão de nomes) a algumas de suas esculturas. Confiou-me a honrosa tarefa numa das minhas visitas a seu ateliê nos Caminhos de Pedra, interior de Bento Gonçalves, na Serra gaúcha. Em breve haveria uma exposição de suas obras em Porto Alegre.
 
Gosto de dar nomes às coisas. A começar pelos títulos de textos e livros (poucos). Mas é árdua a missão de nomear. Tem a ver com penetrar na alma do objeto. É preciso querer descobri-la, e entendê-la com sentimento (a só razão, neste caso, não leva a lugar nenhum).
 
O escritor é, a seu modo, um escultor de palavras, trabalha uma a uma, até que ganhem uma estrutura de texto capaz de provocar emoção. Escrever e esculpir exigem grande dose de paciência, humildade e persistência.

Dar um nome, enfim, é assunto de responsa. O nome jamais pode diminuir o ser ou a coisa nomeada.


photo: j.finatto
 
A uma das esculturas dei o nome de Princesa africana. Era uma linda cabeça de mulher negra com vistoso turbante. Uma obra construída em basalto sangüíneo, extraído do Arroio Tega.
 
No dia da inauguração da exposição, fui disposto a adquiri-la, pois a princesa conquistara meu coração desde o momento em que a vi pela primeira vez. Havia nela um significado ancestral para mim, um retorno à beira do Arroio Tega, onde nasci, e à mãe África.
 
O Tega da minha infância corria pela montanha, atravessava pinheirais, divagava entre casas de madeira. Na sua margem, mulheres lavavam trouxas de roupa que nunca terminavam. A nossa casa ficava a poucos metros de seu curso. Do meu quarto eu podia ouvir o rumor do Tega em sua louca ânsia de conquistar o mundo. Conhecia-lhe o cheiro e os céus azuis que trazia espelhados dentro de si.
 
Bez Batti, além de encantador de pedras (conforme já foi chamado com sabedoria), é estudioso de geologia. Disse-me que no leito do Tega repousa a única jazida de basalto sangüíneo de que se tem notícia. No cerne da rocha cascuda e impenetrável (trabalhado pelo cinzel na mão firme e talentosa do artista), dorme o belo minério cor de vinho, vermelho-coração, originado de imemoriais derramamentos vulcânicos, descoberto por Bez Batti.

João Bez Batti Filho. photo: Divulgação RBS-TV
 
Mas então eu cheguei à exposição para buscar a minha Princesa africana. Ocorre que diante dela já havia uma placa indicando que fora vendida. Por alguns minutos, perdi-a. Perder faz parte da vida, mas desistir de um sonho ninguém deve.

Encomendei ao escultor uma outra princesa africana. Passaram-se uns dois anos e nada. Achei até que ele tinha esquecido, tal o volume de pedidos que seu ateliê recebe.

Mas Bez Batti não é homem de esquecer um sonho. Em fevereiro último voltei aos Caminhos de Pedra para buscar a minha Princesa africana, bela e altiva, em fino basalto negro. Está aqui em casa comigo. Valeu a pena esperar.

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* Bez Batti, o homem que tira sentimento de pedra:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/10/o-homem-que-tira-sentimento-de-pedra.html
 

quinta-feira, 28 de março de 2013

Série Retratos 15 (Adeus a uma gaivota)





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photo: Jorge A. Finatto
Rio Guaíba, Porto Alegre
A gaivota está no ponto mais alto do barco
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail

quarta-feira, 27 de março de 2013

Visão

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: Rio Guaíba. j.finatto
 
 
Eu olho as velas brancas
dos barcos que cruzam
as águas escuras do rio

Sentado no banco do parque
eu observo o indescritível
declínio da tarde
sobre o Guaíba

Aqui embaixo do eucalipto
o sangue escorrendo nas veias
os pés firmes na terra
eu acompanho o lento movimento
das águas e do planeta

Estou condenado ao continente
ao monótono traçado das ruas
à intromissão do tédio e do medo

Mas o rio é um caminho
onde a emoção navega
 
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Poema do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Lugar da photo: Veleiros do Sul, Porto Alegre.
 

segunda-feira, 25 de março de 2013

Recuerdo do rio Uruguai

Jorge Adelar Finatto

Rio Uruguai. photo: Wikipédia



 
 
A recordação mais antiga que eu tenho de um rio é do rio Uruguai. Por algum motivo que desconheço, meus avós - com quem vivia - foram morar na cidade de São Borja, na fronteira com a Argentina, quando eu tinha dois anos.
 
O rio Uruguai corria (e corre ainda) largo e murmurante em São Borja, mais unindo que separando o Brasil da Argentina.
 
Recordo que aquela foi a primeira vez que viajei de avião. Tenho a longínqua lembrança de olhar através de uma janela redonda. Estava no colo da avó.

Partimos da Serra para o ancestral território das Missões Jesuítico-Guaranis. São Borja foi um dos povos missioneiros. Moramos por lá cerca de dois anos e depois regressamos às montanhas.

Lembro-me muito vagamente de passeios ao rio, onde as pessoas faziam piqueniques e tomavam banho na praia. Na beira do Uruguai havia conchas e pedras, em meio à areia e vegetação. 
 
Luminosos dias missioneiros, ao menos para o menino que nada sabia de coisa nenhuma. Tenho uma foto de época vestindo pala, bota, chapéu e bombacha. Acho que foi a única vez na vida que usei indumentária de gaúcho (com muito garbo, diga-se de passagem...).

O tempo passa num doido galope.
 
Com os cacos da felicidade de um dia, a gente vai compondo um vaso de rara porcelana que, por falta de peças, nunca se completa. Mas o rio Uruguai está desenhado com sua cor, sua luz e seu som no mosaico daquele tempo feliz. 
 

sábado, 23 de março de 2013

Somos todos de uma distante galáxia

Jorge Adelar Finatto
 
Imagem da galáxia espiral NGC 1637, divulgada nesta semana.*


A idéia de que alguém na Islândia ou na galáxia espiral NGC 1637, a cerca de 35 milhões de anos-luz da Terra, na constelação do Rio Erídano, pode estar lendo estas linhas dá o que pensar. Revela também o poder da palavra na internet, capaz de estreitar distâncias, suavizar o tempo e mitigar solidões.

Se é verdade que somos todos estrangeiros neste inóspito universo, resta ao menos a esperança de encontrar pelo caminho pessoas para partilhar a vida, tornando a viagem menos árdua e solitária.

Escrever num blog, raro leitor, é como escrever em direção a uma nuvem de estrelas. Ninguém sabe no que vai dar. 

A palavra impressa passa o sentimento físico de permanência, ao contrário do ciberespaço, no qual domina a sensação de extrema fugacidade.

Estamos acostumados a pensar no papel como se nele a palavra estivesse a salvo do tempo, do desaparecimento.

Mas a impressão de perenidade é uma quimera.

A imensa maioria dos livros está condenada ao esquecimento por falta de leitores. Sobrevivem fisicamente nas estantes, mas é uma existência sem brilho. Na verdade, vivem no escuro. A luz não ilumina suas páginas fechadas.

Só está vivo o texto, virtual ou impresso, quando encontra um leitor que o acolhe e retira da escuridão.

O resto é poeira e sombra na biblioteca (ou na tela do computador).

O blog é uma esquina onde amigos invisíveis se encontram pra conversar. Um meio de comunicação aberto a todos, lugar de partilha, região de claridades.
 
Escrever na nuvem, portanto, é uma maneira de resistir. Uma ilusão quem sabe, mas ajuda a viver.

Estou falando essas coisas talvez porque é madrugada de sábado, faz muito frio lá fora e eu olho para o céu limpo deste início de outono, tentando descobrir uma janela aberta na NGC 1637.
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*Imagem produzida e divulgada pelos astrônomos do Observatório Europeu do Sul, no norte do Chile, nessa 4ª feira, 20 de março.