quinta-feira, 25 de abril de 2013

Série Retratos 17 (fria manhã de outono)




photo: j.finatto



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photo: Jorge Adelar Finatto, 24 de abril, 2013
Fria manhã de outono. Passo dos Ausentes



quarta-feira, 24 de abril de 2013

Série Retratos 16 (outono em Passo dos Ausentes)



 
 
 
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photo: Jorge Adelar Finatto, 23 de abril, 2013
Outono em Passo dos Ausentes
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail
j.finatto@terra.com.br
 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Os gatos e o medo de voar

Jorge Adelar Finatto

 
ilustração: Maria Machiavelli


Dizem que os gatos pressentem quando o dono vai morrer.

Desde que Nefelindo Acquaviva me convidou pra fazer com ele o vôo inaugural do dirigível O Invencido (que construiu no galpão do quintal de sua casa, como todas as estrovengas voadoras que criou) meu gato Pituca não saiu mais de perto de mim.
 
Nefelindo Acquaviva é considerado o pioneiro da aviação em Passo dos Ausentes. Um doido com alma de Ícaro.

O que seria do mundo sem os loucos, ele costuma perguntar, apontando ambas as mãos para o peito. E ele mesmo responde: ainda andaríamos de quatro e moraríamos em grutas úmidas, malcheirosas e povoadas de morcegos.

Tudo que alguma vez voou nesses céus dos Campos de Cima do Esquecimento passou pelas mãos de Acquaviva. Da mesma forma, todas as geringonças que se espatifaram no chão também foram obra dele. Ele coleciona 22 quedas com seus objetos voadores, não incluídos aí os tombos na fase de decolagem, mais de trinta.¹ 
 
Sim, eu temo pela minha vida. Como temi das outras vezes em que concordei em acompanhá-lo em vôos abissais pelo Vale do Olhar. Sou amigo do nosso Santos Dumont e é difícil dizer não a um amigo.

A vontade de voar é tão antiga quanto a presença do ser humano neste mundo de Deus.

Se o Criador não nos deu asas, deu-nos pra compensar a capacidade de sonhar e é o que fazemos na maior parte do tempo, do contrário a vida seria insuportável.

Da última vez em que saí pelos ares com Acquaviva, estávamos a bordo do Besouro Voador, espécie de motociclo com São Cristóvão ao lado, onde eu estava, e duas pequenas asas. O aparelho começou a soltar vários estouros em pleno vôo, a 100 metros de altitude, até que parou de funcionar.

Caímos em queda oblíqua em direção à igreja. Cerca de meio minuto depois, arrebentamos e atravessamos o vitral principal. Desabamos na frente do altar, diante do padre, em plena missa das seis da tarde.

O acidente causou um sério desentendimento entre a Igreja Católica e a Aviação em Passo dos Ausentes, que culminou com o rompimento de relações.

Há muito que Nefelindo e o padre Krauss trocam farpas por questões filosóficas e em razão de um outro acidente aéreo que quebrou a torre da igreja.²  O padre acha que os ataques são propositais, parte de um plano de Acquaviva para acabar com a igreja.

Por milagre, não morremos ali mesmo, no meio dos cacos coloridos do vitral. Impossível não lembrar as fortes palavras que o senhor pároco nos dirigiu na ocasião, impublicáveis neste espaço.

A questão é: como posso dizer não a Acquaviva sem magoá-lo, sem ferir de morte seu sonho de voar no mais pesado que o ar? Por outro lado, como dizer sim, sem morrer logo em seguida?

A única pessoa, além de mim, que sempre aceitou voar com ele é Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, que toca na estação de trem abandonada. Mas Niebla está com 88 anos. 
 
Em janeiro último, Acquaviva terminou de construir O Invencido, utilizando o motor de seu antiquíssimo fusca. Quando entrei no galpão naquela manhã de sábado, ele tomava chimarrão sentado cabisbaixo sobre um pelego, encostado na carroça que também faz as vezes de cama.Vestia o gasto macacão azul-marinho e as botas pretas de cano longo.

A negra cabeleira escorrida e o grosso bigode nem de longe denunciam o jovial homem de 70 anos.

Ao me ver, seu rosto se iluminou e ele abriu um sorriso. Veio lépido na minha direção, me pegou pelo braço e disse que tinha algo para mostrar lá no Ninho do Esqueleto. Com emoção, retirou o enorme lençol que cobria o dirigível.

- Faltam poucos dias pra ficar pronto, só mais uns detalhes. Olha a maravilha. Nunca ninguém construiu algo assim. Um dirigível compacto, pra duas pessoas, com seis pequenas janelas pra admirar tudo lá de cima. Tem um beliche, uma geladeirinha, um minifoguareiro, um armarinho, um mínúsculo banheiro e o painel com os instrumentos de navegação, entre os quais aquele telescópio pra ver as estrelas. Não só chegaremos a Porto Alegre desta vez como vamos até o mar. Prepare-se, partiremos em meados de maio. O dia glorioso se aproxima.

O Pituca não sai mais do meu lado. Onde quer que eu vá o gato vem atrás. Mia de um jeito estranho e insistente, quase não me deixa trabalhar no escritório.

Desconfio que ao invés de uma placa comemorativa, no dia da glória vamos ganhar um epitáfio: Aqui jazem dois idiotas, gravado na lápide do túmulo que reunirá o que sobrou de nossos corpos, se é que alguma coisa vai restar depois do desastre anunciado.

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¹Nefelindo e o aeroplano:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/05/nefelindo-e-o-aeroplano.html

²A queda do Águia Negra: 
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/queda-do-aguia-negra.html
 

domingo, 21 de abril de 2013

O senhor do tempo

Jorge Adelar Finatto
 

ilustração: Maria Machiavelli
 

De antigo senhor das horas, o meu velho relógio virou vítima do tempo e hoje sofre com longos intervalos de ausência.

É um relógio que me acompanha desde o século passado. É um objeto austero e simples. Não existem outros como ele à venda. É um dos últimos exemplares vivos de sua geração, se não for o último.
 
Registrou com precisão a passagem do tempo durante muitos e muitos anos. Esse mesmo tempo agora volta-se contra ele.
 
O calendário numérico funciona às vezes, e o escrito perdeu-se na bruma. Esquece em que dia da semana estamos, não sabe bem se é segunda, sábado ou domingo. A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória numa esquina, de repente.
 
Em suma, o relógio que por séculos me guiou na mata escura dos dias precisa agora ser guiado.
 
Não tenho coragem de separar-me dele, jamais o faria e me recuso a sequer falar no assunto. Contudo, sem que ele soubesse, tive outros relógios, mais funcionais e modernos. Nenhum, porém, conseguiu substituí-lo no meu afeto. 
 
Toda vez que abria a gaveta, encontrava-o calado, sem nada reclamar, olhando as paredes internas do cubículo sombrio. Ao perceber minha presença, olhava-me nos olhos como quem se coloca à disposição para o trabalho e a luta. Um companheiro valente e digno.

Resgatei-o agora das trevas.
 
Se ele é hoje apenas a lembrança do relógio que foi um dia, por outro lado não posso negar-lhe reconhecimento pelos serviços prestados. Além disso, atravessamos momentos difíceis juntos, vivemos muitas situações complicadas e dolorosas nessa vida, coisas que atormentam o pensamento e queimam o coração. E às vezes fomos felizes também.
  
Carregar o tempo nas entranhas, como ele sempre fez, segundo a segundo, ano após ano, sem descanso, num giro interminável e monótono, é ofício dos piores.
 
Mandei-o à oficina já por três vezes, mas não resolveu o problema. Decidi poupá-lo das internações inúteis no hospital dos relógios, pois observei que o magoam pelo ar de tristeza com que retorna a casa.
 
Não sou mais escravo do tempo. Eu faço o que quero do meu tempo. (Por favor, raro leitor, não se iluda: essa disponibilidade é tão sedutora quanto terrível). 
 
Trago o antigo relógio no pulso outra vez. Faço-lhe ajustes manuais e tocamos a vida. Quando é necessário, em razão de compromissos e viagens longas, levo um outro, no bolso ou na mala, sem que ele perceba. E assim levamos o nosso barco.
  

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Memória nas ruas de Paris

Jorge Adelar Finatto

 
"Em memória das crianças, alunos dessa escola [Lycée Henri IV], deportadas de 1942 a 1944 porque nasceram judias, vítimas inocentes da barbárie nazista, com a cumplicidade ativa do governo de Vichy. Elas foram exterminadas nos campos da morte. Não as esquecemos jamais". (tradução e photo: j.finatto)


Paris, novembro, 2011. Uma das coisas que admiro nos franceses é o respeito que têm pela memória histórica. Acredito que a maioria dos cidadãos deste país cultua a verdade como valor essencial, o que explica muitas das conquistas da civilização aqui ocorridas.

Em Paris, a cada passo encontramos placas informativas nas vias publicas. Elas contam coisas boas e ruins que aconteceram na cidade. Há um apreço pela transparência que ajuda a formar as consciências.

Não se trata de uma memória seletiva, hipócrita.

Numa escola de crianças, no Quartier Latin, há uma placa na parede ao lado da porta, voltada para a calçada, informando que, durante a ocupação nazista, muitos meninos e meninas judeus daquele colégio foram levados para os campos de concentração dos alemães, com a concordância e participação das autoridades francesas, sendo depois assassinados (foto).

Na esquina dos bulevares Saint-Michel e Saint Germain, uma outra placa informa que, naquele local, no dia 19 de agosto de 1944, Bottine Robert foi morto pelos nazistas por lutar pela libertação de Paris.

Naquele mês, Hitler ordenara a destruição completa da cidade antes de uma retirada das tropas alemãs diante do avanço das forças francesas de Charles de Gaulle e dos aliados. O comandante alemão em Paris, general Von Choltitz, no entanto, negou-se a cumprir a insana determinação, e a cidade foi poupada.

photo: j.finatto
 
São fatos diferentes dentro de um mesmo contexto histórico, revelados nas ruas da cidade, à luz do sol ou da lua, para quem quiser saber. É importante que assim seja, que todos saibam e sintam, para que essas coisas nunca mais voltem a acontecer.

Que a história contada e sabida sirva de farol dentro do negrume do nosso tempo, em que a crise mundial testa diariamente a capacidade dos povos em solidarizar-se para melhorar a vida das pessoas.
 
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Post revisto, publicado anteriormente em 22 de novembro, 2011.
 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no oblívio.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem para dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato caído no tempo.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.
Texto publicado no blog em 18/12/2010.
 

terça-feira, 16 de abril de 2013

As massas polares

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A solidão é um negro espantalho que habita os corações.

Agora chegaram as massas de ar polar. Aqui nos Campos de Cima do Esquecimento é assim: aos primeiros movimentos de violoncelo do outono, o tempo se enregela.

Estava arejando livros antigos sobre a escrivaninha, aproveitando uma réstia de sol que penetrava pela clarabóia*, quando o ar gelado da tarde começou a tomar conta.

As primícias do inverno mandam notícias.

Lá fora os ramos e as folhas perdem viço. Tentei resistir só com a blusa de lã, mas não teve jeito. Resgatei o capote azul-marinho do armário.
 
O frio antecipado traz de volta costumes, reclama providências. Na tarde de domingo, fui até o pinheiro mais robusto do quintal ver se havia caído alguma pinha. Ainda não. As pinhas permanecem penduradas nos verdes galhos, entre grimpas pontiagudas.

Cozinhar pinhão, na chapa do fogão a lenha, é um dos prazeres do frio. 
 
Enquanto olhava a copa da araucária, deu-se que, no profundo azul do céu, passou voando - num vôo suave e elegante -  uma ave de longo pescoço e asas de larga envergadura. Era vôo alto, coisa de duzentos metros, em direção ao poente. Senti gratidão.

As andorinhas já não voam por estas paragens. Partiram em arribação para o Norte, em busca de dias cálidos. Neste canto do planeta, a circulação das seivas diminuiu.

As massas polares vêm me lembrar também que faltam abraços no mundo. Faz muito frio nas almas.

Vertem lágrimas nos olhos das estátuas nas praças. 

Mas alguns ainda são capazes do humano gesto. Trazem o sol dentro de si. Esses herdarão a primavera. 
 
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*Nos textos do blog, continuo usando a ortografia atual, e não a do acordo ortográfico, conforme o Decreto 7.875, de 27/12/2012, que postergou a obrigatoriedade das novas regras, no Brasil, para 1º de janeiro de 2016. Até lá, ambas as nornas estão em vigor.
Sobre o assunto:
O acordo ortográfico fazendo água:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-acordo-ortografico-fazendo-agua.html