domingo, 8 de dezembro de 2013

Memória do vento

Jorge Adelar Finatto 


photo: j.finatto


Não posso
fechar a porta
às histórias
que o vento traz

o mundo esquecido
a vida pequena
seres e coisas
que têm em mim
a eternidade
possível


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Do livro Memorial da vida breve, Jorge Finatto. Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
 

sábado, 7 de dezembro de 2013

Fanicos e farfalhas

Jorge Adelar Finatto

photo: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan
  


Quem viu alguma vez uma joaninha caminhando na página de um livro ou sobre uma folha verde sabe do que estou falando. É talvez o acontecimento mais importante do universo.

Nenhuma literatura e nenhuma filosofia do mundo valem os passos da joaninha.

Só que pouca gente percebe o engenho e a arte por trás da  construção da frágil joaninha.

Existem muitos outros assuntos importantes para se tratar, está bem. Um blog a sério não devia ignorar isso. Tudo bem.
 
O fato, contudo, é que me encanto com os farelos do mundo, com a coisa pouca ou nenhuma, como um raio de sol na janela. As coisas pequenas me atraem, me cativam, me elevam. As outras me enfadam, quando não revoltam.

Encontro beleza e claridade nos fanicos da existência.

Tudo que é breve e pequeno se parece com ser humano e com estar vivo e ser transitório, e isso me interessa sobretudo.

Os verdadeiros e últimos sentidos habitam além das aparências, é assim que eu vejo. E o que eu mais enxergo, quando penso profundamente na vida, é a pequenina joaninha. Talvez tudo isso não passe de mais um dos meus notórios enganos.
 
O mundo silencioso das migalhas me é, por isso, muito caro e diz muito mais sobre o que nós somos - ou o que sou eu, ao menos - do que um tratado ontológico.
 
Quando se perde a palavra, é como se perdêssemos a vida. Deus nos livre e guarde.
 
Na arte, ao menos, podemos voar, sonhar um pouco, levitar acima dos mausoléus e crematórios existenciais.

Mas sei também que ninguém pode viver entre as nuvens.

Deve haver um caminho de passagem entre as farfalhas da biblioteca e a copa das estrelas; entre a imensidão da Via Láctea e os passos humildes da joaninha.

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photo de joaninha: fonte: Wikipédia. Autor: Jon Sullivan (PD-PDphoto.org]
Texto revisto, publicado antes em 25/11/2012.  

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O último boêmio de Porto Alegre

Carlos Alberto de Souza
 
Darcy Alves
 

O último boêmio de Porto Alegre repousa às margens do Atlântico, em Capão da Canoa. Já faz algum tempo que o professor Darcy Alves, virtuose do violão e dono de voz rebuscada nas velhas canções, teve de abandonar os bares da Cidade Baixa, a Lapa porto-alegrense.

Longe das noitadas em que encantava os mais velhos e os jovens admiradores da música de seresta, ele recupera-se de um percalço de saúde na Clínica Geriátrica Melhor Idade. “Hoje não tem show”, brincou ao telefone quando do outro lado da linha eu disse que era um admirador querendo saber do ídolo. 
As informações da atendente são animadoras. Desde que chegou à clínica, o professor tem melhorado progressivamente. Sua esposa também está morando na cidade litorânea, além dos dois filhos, um deles médico neurologista, especialidade que tem a ver com o estado de saúde do pai. O velho boêmio, agora compulsoriamente afastado do cigarro e da bebida, está bem assistido. E recomeça a dedilhar o violão e cantar, para a alegria de todos na casa de repouso.
A cuca do professor está boa. Perguntei-lhe se lembrava de Emerson Rosa, meu tio, excelente saxofonista, que tocou com ele em algumas ocasiões, acompanhando Lupicínio Rodrigues e também homenageando postumamente o grande compositor, em um espetáculo histórico. “Claro, o Emerson, meu amigo”, disse o professor. Certa vez, quando se apresentava no bar São Jorge e o Dragão, mostrou-me um álbum com fotos de sua carreira.

Além de Lupi, acompanhou Alcides Gonçalves, outro expoente da velha boêmia porto-alegrense, Beth Carvalho, Ângela Maria, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Francisco Egídio, Jamelão e Altamiro Carrilho, entre outros.

A noite de Porto Alegre segue viva, com mais bares do que no passado. Certamente, abrigam legiões de boêmios resistentes. Mas não têm o mesmo encanto sem o violão, a voz e a presença do professor Darcy Alves. Ele foi o último boêmio da cidade. E assim deve entrar para a história.  
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Carlos Alberto de Souza é jornalista em Porto Alegre.

smcsouza@uol.com.br


O crédito da foto será dado tão logo conhecido o autor. 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O que vale na escuridão

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
Os gestos são os melhores professores, os mais autênticos, os que verdadeiramente podem ensinar algo de bom (ou mau) a alguém. Se queremos transmitir valores nos quais acreditamos, precisamos antes dar o exemplo.
 
Um gesto vale, não diria mil, mas um milhão de palavras. Palavras são feitas de ar e delas se ocupa o vento, levando-as. O que importa é o que se faz de concreto com as palavras que brotam sem parar da nossa boca. A teoria, isoladamente, não leva a lugar nenhum.
 
Nessas lucubrações não há nenhuma novidade. É assunto batido, velho (sempre atual embora), que mereceu inclusive tratamento na Bíblia.

Ouçamos o que diz Tiago, irmão de Cristo, na sua Carta: "Vedes que o homem há de ser declarado justo por obras e não apenas pela fé." E ainda: "Deveras, assim como o corpo sem espírito está morto, assim também a fé sem obras está morta." (A Carta de Tiago, capítulo 2, versículos 24 e 26).

Lembro essas coisas ao constatar (todos os dias, todos os lugares) o quanto estamos carentes de atitudes de bondade e civilidade, no dia a dia, nos relacionamentos, na rua, no trânsito, no trabalho, no interior das casas.

O quanto nos falta esse ato capaz de nos tornar mais humanos, mais fraternos, mais solidários, menos julgadores, mais em paz com o outro.

Chego sempre à invariável conclusão de que temos tudo para dar certo como pessoas, fazendo do mundo um lugar mais feliz, mas falta este passo que nos tornará melhores do que somos.

Nunca esqueço, a propósito, o ensinamento de Santo Agostinho, que certa vez ouvi, e que contém uma verdade pulsante como o sol:

"Os maus não são bons porque os bons não são melhores."

Como a maioria das pessoas, estou farto de tanta violência, de ver o sofrimento, a indiferença e o egoísmo tomarem conta.

O que vale é saber quem de nós vai acender a vela, o farol, a lanterna, o archote, a lâmpada para dissipar essa escuridão que nos cerca e que já vai longe demais.

É preciso se iluminar urgentemente.
 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Dizer com a ponta dos dedos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
 
Despedida na primavera
 
dia após dia um pouco se envelhece
ano após ano volta a primavera
do vinho a alegria cabe a um copo
não chora a flor as pétalas que fogem
 
                                           Wang Wei

 
Para você que não está familiarizado com a poesia chinesa (como eu), tomo a liberdade de recomendar uma obra que chegou há pouco nas livrarias: Antologia da poesia clássica chinesa*. O livro foi traduzido diretamente do chinês para o português por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao, igualmente responsáveis pela organização, introdução e notas.
 
A publicação é da Editora Unesp com participação do Instituto Confúcio na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
 
Não posso avaliar os méritos da tradução, pois para mim o chinês é, literalmente, chinês, isto é, impenetrável. A obra traz os textos, também, em caracteres chineses.
 
Mas a julgar pela leitura em português, acredito que é um trabalho meticuloso e bem realizado. Se não conheço nada do idioma de partida, conheço razoavelmente o de chegada.
 
Os poemas vertidos revelam achados de sintaxe, além de estranhamento e beleza, essenciais na poesia.
 
Estamos falando de poemas escritos entre os anos 618 e 907 d.C., durante a Dinastia Tang, período considerado a época de ouro da literatura chinesa clássica.
 
Por se tratar de trabalho inédito (talvez a  primeira coletânea representativa daquele momento literário), certamente contribui para a aproximação cultural entre China e Brasil, o que não é pouco considerando o histórico distanciamento entre os dois países.
 
E o que encontramos neste conjunto de poemas produzido por vários autores chineses antigos?
 
Há uma delicadeza no dizer as coisas, um tocar com a ponta dos dedos, textos que muito mais sugerem do que nomeiam ou revelam. São criações verbais de pouca extensão e alta intensidade, que confiam na capacidade de desvelamento do leitor e na sua cultivada sensibilidade. Ricos em sugestões semânticas, os poemas são, por isso mesmo, abertos a interpretações e à participação criativa de quem lê.
 
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*Antologia da poesia clássica chinesa. Dinastia Tang. Tradução, organização, notas e introdução por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao. 312 páginas. Editora Unesp, São Paulo, 2013.

domingo, 1 de dezembro de 2013

De tudo restou o poema

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto
 
 
 
De tudo restou o poema
espelho de muitas faces
solitário como um bicho
resfolegando no silêncio
da página
 
 
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Poema do livro Claridade, Jorge Finatto. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1983.
jfinatto@terra.com.br
 

sábado, 30 de novembro de 2013

A despedida do Bacana

Jorge Adelar Finatto

O Bacaninha. photo: j.finatto.


Sentimental e reservado, ele não era de muita conversa. Um tanto melancólico talvez. Parecia sentir saudade de um mundo que um dia foi de alegria e companheirismo entre seus irmãos siameses. Devia ser num lugar perto do mar, com bastante peixe, alimento preferido.
 
Quando ainda era um gato bebê, nunca se viu mais chorão. Chegou aqui em casa no inverno, faz cinco anos. O único jeito de parar de chorar era deixá-lo entrar embaixo dos cobertores. Aí se acalmava, queria contato físico, calor humano (não tinha outro gato para se aquecer).
 
O Bacana tornou-se um adolescente calado, não gostava de reuniões e ruídos. Preferia o silêncio e o recolhimento do escritório a qualquer outro ambiente da casa. Era doce e cálido.

Apreciava também o muro do quintal. E gostava de sentar-se no quiosque em meio a vasos de flores, de onde podia admirar o Contraforte dos Capuchinhos, na lonjura, com suas montanhas azuis.

Caminhava em silêncio como só os gatos sabem fazer.
 
Às vezes, subia no teclado do computador, com o motorzinho de popa fazendo o rom-rom característico. Queria atenção. Só sossegava quando era acariciado, após alguns minutos.

Nessas ocasiões, sentava na estante perto da janela ao lado do volume encadernado de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Depois descia a escada escarpada, ia para o pátio, silente e esguio como uma sombra.

No final de agosto, teve uma doença que o levou embora. Primeiro foi para a clínica veterinária onde ainda havia esperança (não muita) em sua recuperação. Até que veio o telefonema anunciando a morte.

Ficou o silêncio de seus passos pela casa.

Perdi os olhos azuis e a meiga presença do Bacaninha.

Falta um gato no escritório.
 
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Texto revisto, publicado em 9 de setembro, 2012.