terça-feira, 25 de março de 2014

A carreta cósmica

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
O mundo visto de cima de um carro de boi é diferente. Não é o mesmo que se vê de uma bicicleta, um ônibus, metrô, barco, automóvel, balão ou avião.

O andar da carreta é outro, diverso é o seu olhar.
 
Em Passo dos Ausentes, havia muitos carros de boi antigamente, que aqui também chamamos carreta. Era meio de transporte de pessoas e de carga por estradas de chão batido e caminhos pedregosos.
 
A velocidade do mundo era menor. Naqueles dias, os tempos eram longos e as conversas também. Dava para experimentar o sabor de cada fruto, associá-lo a um nome e a uma estação do ano.
 
Havia tardes de chuva mergulhadas no silêncio, na leitura, no cochilo, na imaginação.

Olhos negros e claros cismavam nas janelas. Que mundo era esse lá fora, como seria a vida amanhã? A preparação dos doces caseiros espalhava delicados cheiros pela casa.
 
Andar de carreta era uma maneira diversa não só de deslocamento como de observar e interpretar a existência.

O homem que vê a vida tendo a carreta como ponto de mirada não é o mesmo que se movimenta em máquinas velozes.
 
Nos Campos de Cima do Esquecimento ainda se encontram carretas. Faz algum tempo encontrei uma em bom estado, no Vale do Olhar, construída no distante 1953. Resolvi comprá-la e coloquei-a no jardim.

Ela aparece na foto, tendo ao fundo, ao centro, Monsieur Jardin du Bonheur, o espantalho que faz a alegria dos passarinhos. As aves fazem ninhos nos seus bolsos e no chapéu de palha.*

O meu carro de boi está sempre pronto pra partir. Em certos dias, quando a vida perde a graça, eu subo nele e vou dar uma volta pelo cosmos com Monsieur Jardin.

O sobe e desce entre as nuvens, a gente sacudindo lá dentro, a evolução do vôo pela atmosfera e depois uma esticada até o infinito.
 
Voamos entre as estrelas, passamos perto da Lua, paramos em Órion para ver a chuva dos meteoros cintilantes.

Aproveito para visitar os amigos que partiram em suas carretas de luz e nunca mais voltaram. Conversamos e rimos juntos. Depois eu me despeço e volto pra casa.

Ao retornar da viagem, sinto o coração pulsar outra vez.
 
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Texto revisto, publicado em 6 de janeiro, 2013.
 

domingo, 23 de março de 2014

Um suspiro, um silêncio

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Faz 50 anos que a avó morreu. O estranho é que ainda não parou de morrer dentro de mim. É um luto permanente, parece que tudo aconteceu ontem. Às vezes acho que meu coração nunca fechou o caixão da avó.
 
Quando ela morreu eu tinha 6 anos. Morava com ela na cidadezinha do alto da serra. Tínhamos "descido" a Porto Alegre para visitar minha mãe que habitava um apartamento diante do Rio Guaíba. Ficaríamos duas semanas.
 
Conhecer o Guaíba foi uma experiência sensorial indescritível para quem estava acostumado a viver entre pinheiros, córregos, campos e penhascos.

O Guaíba ficava azul nos dias de céu claro, uma pintura. As ondas subiam pela areia e vinham até perto dos guarda-sóis (muitas famílias iam para a beira do rio nas tardes de calor). Doce era o cheiro do vento quando cruzava o Guaíba.

Uma outra paisagem se descortinava aos olhos do menino serrano, o rio se expandia com seus navios em direção à Lagoa dos Patos e ao oceano.
 
Criou-se entre mim e o Guaíba uma afinidade espiritual, uma cumplicidade (só ele sabia que eu era um estrangeiro na cidade).

No dia marcado pela morte, a avó estava no sofá tomando chimarrão e eu ao lado. Era de tarde. Houve um suspiro profundo e, em seguida, um silêncio. Só percebi o que havia acontecido quando a mãe, chegando da rua, deparou-se com ela recostada no sofá, os olhos cerrados, o peito imóvel. Eu brincava no chão e nada notara.

O menino aprendeu então que tudo o que mais amava podia desaparecer num instante, como um sopro no vento. Um suspiro, um silêncio.
 
Há alguns anos passei por momentos muito difíceis. Achei que talvez não houvesse um amanhã. Nos dias mais tenebrosos da doença pensava que se a avó estivesse por perto a travessia seria menos dolorosa.

Havia de me levar a caminhar na beira do córrego lá na nossa pequena cidade. Nos dias de inverno, faria doces, como sempre, no velho fogão a lenha da casinha dos fundos do sobrado. E me levaria à loja dos irmãos árabes pra comprar um sobretudo de lã. Beberíamos com eles aquele chá de aroma inesquecível.
 
Por conta dessas recordações, abril é pra mim o mais triste dos meses (ou o mais cruel, como no verso de T.S. Eliot no poema A Terra Desolada*). Por ele me arrasto como um cão que se perdeu do dono e nunca mais voltou pra casa.

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* T. S. Eliot. Poesia. Tradução (memorável) de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 8.ª edição. 

sábado, 22 de março de 2014

A solidão de Deus

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


A solidão do bar
onde há pouco conversamos
a solidão do quarto de pensão
e do corpo
não é diferente
da solidão de Deus

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Poema do livro Viveiro, Edições Sanguinovo, São Paulo, 1981. Prefácio de Heitor Saldanha.
 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Pra dizer que também falamos de flores*

Frederico Vasconcelos
Repórter Especial da Folha de São Paulo

photo: j.finatto
 


"Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola."


Sob o título “O país das quaresmeiras em flor”, o texto a seguir é de autoria do juiz e poeta gaúcho Jorge Adelar Finatto. Foi publicado originalmente em seu blog “O Fazedor de Auroras“, que tem como lema “a vida de todos os dias, a que eu sempre quis”.

 
Só agora me dou conta, raro leitor, de que elas andam por aí, anunciando a Páscoa e o advento do outono. A nova estação chega cheia de significados
 
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos)
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentir claro, respirar limpo, passar longe dos abismos.
 
É o que eu penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil com sua triste face de corrupção e violência social
 
mas não é só aqui, dizem os intérpretes do caos, mas sendo aqui, digo eu, já me basta, é o suficiente para danar a minha/nossa vida.
 
Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola.
 
(dizer que saímos da escuridão abissal da ditadura e acabamos nisso, nesse buraco sem fundo que suga nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos
 
ceifa vidas diariamente nas ruas do país sem lei, sem autoridade, sem saúde, sem educação, sem esperança (tudo, claro, garantido no papel),
 
trágicas ruas onde se afunda o famoso, nunca demais louvado, não obstante sempre negligenciado estado democrático de direito
 
- de que estado e de que direito estamos falando mesmo? -
 
ninguém sabe ao certo se existe de fato e o que é isto no aqui e agora, nem mesmo se depois de tanta indiferença, omissão, arrogância, malandrice, cinismo e incompetência haverá ainda um país para chorar)
 
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar, ao menos nesse efêmero instante, a morte não tem nem pode ter guarida.
 
As flores das quaresmeiras são o oposto da morte, negação do desespero e do abandono (longo abandono de séculos).
 
(a delicadeza dos ramos, pétalas e cores remete a um mundo outro)
 
Um tempo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores nos habita na quaresma.
 
Olhar atento ao solitário vôo do pássaro sobre os fios de luz, tecendo destino e distância com a nossa esperança (por um fio).
 
Tempo de resistência
(como sempre)
de atravessar a ponte
(sobre o rio das mortes)
e chegar vivo do outro lado.
 __________
*Interesse Público

quarta-feira, 19 de março de 2014

O país das quaresmeiras em flor

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 15.3.2014
 
Só agora me dou conta, raro leitor, de que elas andam por aí, anunciando a Páscoa e o advento do outono. A nova estação chega cheia de significados
 
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos)
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentir claro, respirar limpo, passar longe dos abismos.

É o que eu penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil com sua triste face de corrupção e violência social

mas não é só aqui, dizem os intérpretes do caos, mas sendo aqui, digo eu, já me basta, é o suficiente para danar a minha/nossa vida.

Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola.

(dizer que saímos da escuridão abissal da ditadura e acabamos nisso, nesse buraco sem fundo que suga nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos

ceifa vidas diariamente nas ruas do país sem lei, sem autoridade, sem saúde, sem educação, sem esperança (tudo, claro, garantido no papel),

trágicas ruas onde se afunda o famoso, nunca demais louvado, não obstante sempre negligenciado estado democrático de direito

- de que estado e de que direito estamos falando mesmo? -

ninguém sabe ao certo se existe de fato e o que é isto no aqui e agora, nem mesmo se depois de tanta indiferença, omissão, arrogância, malandrice, cinismo e incompetência haverá ainda um país para chorar)

photo: j.finatto, 15.3.2014
  
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar, ao menos nesse efêmero instante, a morte não tem nem pode ter guarida.

As flores das quaresmeiras são o oposto da morte, negação do desespero e do abandono (longo abandono de séculos). 
 
(a delicadeza dos ramos, pétalas e cores remete a um mundo outro)
 
Um tempo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores nos habita na quaresma.

Olhar atento ao solitário vôo do pássaro sobre os fios de luz, tecendo destino e distância com a nossa esperança (por um fio).
 
Tempo de resistência

(como sempre)

de atravessar a ponte
 
(sobre o rio das mortes)
 
e chegar vivo do outro lado. 


photo: j.finatto, 15.3.2014
 

terça-feira, 18 de março de 2014

Pessoa e Borges em Lisboa

Casa Fernando Pessoa
24 de março, 18h
Rua Coelho da Rocha, 16, Lisboa
 
 
 

Para além de vorazes leitores de Omar Khayyam e de William Shakespeare ou de poetas que souberam cultivar o universal no realismo local (Cesário Verde e Evaristo Carriego), Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa partilharam numerosas paixões literárias. 

Sem sabê-lo, talvez, ambos viriam a corresponder-se com escritores espanhóis como Isaac del Vando Villar, entre outros; e em Maio de 1924 até caminharam nas ruas da mesma cidade, Lisboa – circunstância que inspiraria Vasco Graça Moura na composição do poema «o encontro».

Reunidos à volta de Borges e de Pessoa, seis críticos literários de diversas nacionalidades estabelecerão paralelos e aproximações entre estas duas obras inesgotáveis. Evento gratuito aberto ao público.

Programação:

Pessoa & Borges: Blending Milton
Patricio Ferrari

Realidade e representação em Pessoa, Borges e Berkeley
Diego Giménez
 
O idealismo de George Berkeley em Fernando Pessoa e em Jorge Luis Borges
Roberto Rolandone

Pessoa, Borges e Khayyam
Fabrizio Boscaglia

O arquivo de Babel: Os espaços infinitos do Livro em Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges
Sandra Bettencourt

Pessoa e Borges, uma amizade metafísica
Pablo Javier Pérez López.
 
Organização: Diego Gimenez (CLP, Universidade de Coimbra) e Patricio Ferrari (CEC, Universidade de Lisboa / Department of English, Stockholms universitet).
 

segunda-feira, 17 de março de 2014

Canção da bruma

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto, 12.3.2014
 

Senhor
quando chegar
a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
da infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa

___________

Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.