terça-feira, 18 de novembro de 2014

Os sem-leitor

Jorge Adelar Finatto 

fonte da photo: jornal Público, Portugal


Existe um ser cada vez mais raro na face do universo.

Astrônomos passam as noites em claro, mirando os telescópios para o desconhecido, na incansável busca.

No momento em que traço essas linhas, inúmeras expedições científicas partem pelo cosmo à procura dele.

É quase tão belo como a estrela da manhã. É mais luminoso que a aurora boreal. É mais precioso que o mais raro diamante.

Por causa dele, blogueiros do mundo inteiro invadem as noites oferecendo seus serviços. Impressionantes editores perdem o sono à sua menor lembrança.

O ser em questão - o misterioso - é o senhor da lista dos mais vendidos, o sonho dos famélicos e maltrapilhos fazedores de livros. Por ele, Cervantes e Thomas Mann foram às vias de fato, Dom Quixote e Hans Castorp romperam relações.

Macunaíma, Anjo Malaquias e Urutu Branco não trocam mais e-mails. É o início do fim dos tempos, ou quase isso.

Os cafés literários perderam o sentido sem a poderosa presença do desaparecido.

As livrarias estão repletas de musas e personagens desempregados. Seria cômico, não fosse o fim de uma era.

Onde andará aquele que é a razão do meu trabalho?, perguntam-se miríades de escritores e poetas, na fria solidão.

A Academia Sueca devia criar o Prêmio Nobel de Leitura, em homenagem a ele, o inefável.

As noites de autógrafos, hoje, só são bem-sucedidas quando é ele quem assina os livros, enquanto os autores esperam a vez na infinita fila.

Não vereis dele mais que o fugidio vulto esgueirando-se no labirinto dos blogs e soturnas bibliotecas.

No entardecer de ontem, cerca de 150 bardos - entre maus, razoáveis e bons - cometeram suicídio no cais de Porto Alegre. Sob o olhar aterrorizado das mães e gritos desesperados das musas, os suicidas foram ao fundo do rio com grossos volumes amarrados ao pescoço.

Mais de mil caravelas estão partindo a essa hora de Lisboa em busca de um rastro do indizível em alto mar.

O impensável está acontecendo.

Escritores enlouquecidos batem-se em sangrentos duelos nas praças e ruas da cidade.

As últimas notícias dão conta de que livros famintos estão atacando e devorando escritores. Invadem seus locais de trabalho e, com requintes de crueldade, cometem o bárbaro crime.

Aproveitam-se da solidão literária das vítimas, que começa no ato de criar e se estende até o texto sem leitor, e as destroçam.

Depois só restam folhas brancas, embebidas em sangue, espalhadas no chão.
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Texto revisto, publicado neste blog em 12 de fevereiro, 2010.

domingo, 16 de novembro de 2014

Vive-se

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto


Vive-se. Do jeito que dá. Às vezes, até mesmo sem nenhum jeito se vive.
 
Porque a única coisa realmente urgente e importante é manter-se respirando. O resto é o que vem depois. E o que vem é neblinoso, imponderável, se administra. Ou não.

Convivemos com a dor, a falta de amor, de encanto, de beleza, de dinheiro, a falta eterna de sentido das coisas. Enquanto isso, vive-se.
 
Vive-se em Porto Alegre, em Paris, em Sierre, em Lisboa, em Cacique Doble. Vive-se no silêncio de Rarogne e de Passo dos Ausentes. Vive-se à beira do Arroio Tega e nas cercanias do Castelo de Muzot.

Vive-se em toda parte. Principalmente, no fim do mundo.

Vive-se em secreto e em surdina, com raros, distantes amigos. Mas vive-se.

Vive-se apesar da corrupção que assola o Brasil e destrói tudo o que se tenta construir e até o que não se construiu como a floresta Amazônica e a Mata Atlântica.
 
O mais que se faz é viver, raro leitor, apesar de tudo. De janeiro a janeiro. Com sol e com chuva. Com alhos e bugalhos. Vive-se.

Calma, a realidade não merece o teu suicídio.

Vive-se na sexta, no sábado e, eventualmente, no domingo. Segunda é um enigma que nem a filosofia, nem a poesia e muito menos a astronomia conseguiram resolver. Mas o fato é que se vive.
 
Vive-se apesar do lixo na rua, do odor nauseante de combustível na cidade, do esgoto escorrendo impune para o rio.

Vive-se em que pese o velho, malcheiroso, insuportável e persistente racismo.

Vive-se olhando os veleiros que fogem para o mar.
 
Vive-se diante do olhar atônito das crianças abandonadas.

Vive-se a nostalgia das casas sem eletricidade.
 
Vive-se sem embargo dos livros não lidos. Vive-se não obstante todos os livros lidos.

Vive-se com as folhas secas do outono nos bolsos do velho casaco e na palma das mãos.

Vive-se sem nada a perder e mesmo depois de perder tudo.
 
Vive-se sabendo que nunca mais se encontrará aquela mulher para pedir-lhe um olhar, um abraço. 
 
Vive-se de mal a pior, sem eira nem beira.

Vive-se apesar dos mortos nos olhando dos retratos, dos lugares vazios na mesa.

Vive-se a vida invisível dos anônimos, dos solitários, dos desmemoriados.

Vive-se de passagem, uma única vez, com o coração doendo entre as mãos. Mas vive-se.
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Enquanto a morte não morre

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto

 
Tinha que haver um jeito de trancar a morte no porão, deixá-la encerrada no escuro pra sempre, até virar pó, como ela gosta de fazer com as pessoas.
 
Prisioneira do porão, sem nenhuma fresta de luz e ar, a morte nunca mais poderia matar ninguém. 
 
Morta a morte, estaríamos livres, de uma vez por todas, do grande vexame que é morrer. Morro de pena de quem vai perder a vida, isto é, todos nós. O certo talvez é ninguém mais morrer. Mas que sei eu.

Só que pra todo mundo viver era preciso não existir a maldade que existe no ser humano.

Nenhum homem e nenhuma mulher jamais souberam explicar esse mistério que é deixar de viver. Dizem alguns que a morte dá sentido à vida, o que eu duvido muito.

A morte alimenta-se da morte alheia e não há nela sentido algum.

O que dá sentido à vida é a própria vida.
 
A morte é um buraco escuro dentro da escuridão. Às vezes um monte de cinzas que se espalham ao vento e ninguém sabe onde vão parar. 
 
Eu queria encontrar uma maneira de matar a morte. Depois passaria o resto do tempo infinito ocupado só em viver.

Morrer é um péssimo hábito que herdamos dos antepassados e do qual não conseguimos nos libertar.
 
Para os agnósticos e os céticos, depois da morte é a treva absoluta. Não creio.
 
Enquanto a morte não morre, gosto de pensar que haverá ressurreição para aqueles que não fizeram barbaridades com os outros. E vou vivendo.

Mas eu sou apenas um sujeito simplório. Alguém que acredita na claridade absoluta.
 

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Cantiga de mar e vento à moda de Camões

Jorge Adelar Finatto
  
photo e barco: j.finatto

"Saudosa dor, eu bem vos entendo" *
Luís de Camões

Navegar é despedir-se um pouco cada dia.
 
No mar da terrível procela, vinha eu no meu desditoso barco, enfrentando a fúria sem compaixão do trovão, do raio, do vento e da melancolia.
 
Vinha pelejando nas altas ondas contra a dor e o pó do esquecimento.
 
Só eu e meu coração à mercê de tudo que fere a alma e endurece o tempo. 
 
A bordo da frágil nau do sonho me lancei ao mundo. Entre feros e mortais penedos, procurei descortinar-vos, Açores e Madeira, nos rigores do profundo oceano. Mas nada encontrei, só mais abismo, medo e desengano.
 
O tenebroso rugido da ventania arremessava as vagas contra tão despojada embarcação.  
 
Triste fado meu que fez de mim o solitário do rochedo.
 
De repente, no horror da tempestade desumana, vi surgir na polpa salgada, álgida e insana das águas o brilho marfim e rosa de um búzio. A custo recolhi-o. 
 
Escutei então aquela voz que de longe vinha.
 
Era a voz da minha amada que por encanto eu ouvia. Uma voz moça e já extinta.

Queria saber de mim, onde eu andava, com quem estava, o que fazia. Imaginava se eu ainda sorria. 
 
Disse-lhe que não fizesse cuidado do vazio em minha alma. Eu era só mais um barco seguindo em meio à solidão do grande mar, desviando a fraga imensa. Era tudo o que em mim havia.
 
Quisera nunca ter perdido do seu abraço a moradia, musa minha que partiste mal surgia a aurora em nossa vida.
 
Viver pra mim, hoje, é despedir-se um pouco todo dia.
 
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*Lírica. Luís de Camões (1524-1580). Verso do poema Cantiga (2), p. 28. Editora Itatiaia e Editora da Universidade de São Paulo, 1982.
 

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A canção do efêmero

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O jardim explode em pétalas, aromas, caules, ramos e cores em novembro dos prodígios.

As flores que aparecem na capa do blog por esses dias são do jardim aqui de casa. Nessa época são muitas e variadas, de rosas a orquídeas, de belas e humildes hortênsias a ternos e sorridentes gerânios, sem falar nas primaveras, nas cerejeiras, nos copos-de-leite e tantas outras.

Nunca, como neste ano, a flora caseira esteve tão iluminada. Uma celebração de vida e de fecundidade. O jardim canta a canção do efêmero: tudo nele é transitório. Mas há, também, no seu território, um contínuo renascer.


photo: j.finatto

Sinto-me bem ao conviver com as flores, ao observá-las, fotografá-las, ao aspirar-lhes o perfume suave.

É uma espécie de terapia floral o querer bem a esses seres tão passageiros, generosos e delicados.

As flores do meu jardim renascem todos os dias com a promessa e a esperança das novas seivas. Que seja assim também em nossas vidas.

photo: j.finatto
  

sábado, 8 de novembro de 2014

Eduardo Salavisa e a viagem no quotidiano

Jorge Adelar Finatto


Eduardo Salavisa. Elevador da Glória, Lisboa
 
Eduardo Salavisa é um “desenhador do quotidiano”, conforme define o título do seu blog.¹  Descobri seu trabalho através do jornal Público², um dos mais importantes de Portugal, que reproduz a página do autor na edição da internet.
Num determinado lugar seleciona as figuras,  perscruta a luz, as cores, as formas, os tons, os significados, a vida escondida. Munido com as ferramentas de trabalho (cadernos, lápis, canetas, tintas, etc.) constrói sua arte impregnada com as coisas do dia a dia.
Um desenhador do cotidiano é alguém que habita a realidade, busca-lhe sentidos, nuances, beleza. Não se ausenta da experiência de viver, pelo contrário, vai para o ambiente físico e espiritual onde a existência acontece. Ali as pessoas vivem e tecem suas histórias.
O talento do artista leva-nos a percorrer com ele os caminhos por onde anda (que não são poucos). Seus passos desenham trajetos pelas ruas de Lisboa, a cidade natal onde vive, mas não ficam só ali, deambulam pelo planeta afora.
 
Eduardo Salavisa. Aqueduto das Águas Livres, Amoreiras, Lisboa


Ele enche cadernos e cadernos em cada saída de casa, em cada viagem. É um viajante do mundo. Leva pouca bagagem e muito olhar. O resultado deste inventário minimalista – pequenas coisas, na aparência, no seu traço ganham contornos de grandeza humana – pode ser visto nos desenhos que nos abrem a vista para o invisível, para o não manifesto, para os detalhes que revelam o coração dos seres e objetos.
Eduardo partilha sua arte e seu conhecimento através de aulas, oficinas, palestras e exposições, além dos livros que publica. Experiente no ofício, costuma ser convidado a organizar edições de obras com autores que se dedicam aos diários gráficos.
É o caso do livro "Diários de Viagem 2. Desenhadores-Viajantes", no qual ele coordena 30 viagens de vários desenhadores (pessoas de diversas profissões). Nele participa com um texto introdutório, além de um trabalho que fez sobre uma viagem à Patagônia. A obra será lançada no próximo dia 22 de novembro, em Lisboa, às 18h, no Museu Bordalo Pinheiro.
Conversei com Eduardo, por e-mail, nessa semana (em Lisboa tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente em janeiro deste ano). Fiz-lhe algumas perguntas e as respostas ilustram essa atividade que, para nós, no Brasil, ainda é uma novidade.

- Eduardo, o que é um diário gráfico e desde quando esta forma de expressão existe?
 
Eduardo Salavisa

O caderno de desenho tem uma longa tradição. Conhecemos os de Leonardo da Vinci, onde apontava as suas observações e reflectia sobre elas. Quando os jovens aristocráticos europeus faziam a viagem de iniciação, chamada “Grand Tour”, levavam sempre um caderninho para desenhar o que viam. Todos os artistas, ou pretendentes a serem-no, usam-no. Não só os das artes visuais mas também os da escrita. São suportes transportáveis que se podem usar em qualquer lugar e circunstância. Um apontamento, uma reflexão, um compasso de espera.

O nome Diário Gráfico começou a ser usado por um professor da Faculdade de Belas Artes, falecido em 2009, chamado Lagoa Henriques. Foi ele que fez a estátua de Fernando Pessoa à porta da Brasileira. Para mim ele era melhor desenhador e professor do que escultor. Ele queria que nós desenhássemos todos os dias.

Foi também por isso que comecei a usá-lo com mais frequência. Foi quando quis transmitir aos meus alunos adolescentes quão era bom desenhar. Os adolescentes não têm paciência para nada e o desenho requer alguma. E também tempo e concentração. E se aquele caderno se transformasse num diário, com desenho e escrita, e se eles relacionassem com uma viagem, uma viagem no seu quotidiano, talvez ficassem viciados na observação e no desenho. E alguns ficaram.

E o desenho, para mim, está muito relacionado com a viagem. É preciso disponibilidade mental para se desenhar. E na viagem nós temo-la.

- O que o leitor encontrará neste Diários de Viagem 2? 

Durante a longa viagem que fiz o ano passado pela América Latina desenhei muito e pensei também quais eram as diferenças que havia entre aqueles desenhos, feitos muitas vezes em más condições, e outros feitos no nosso atelier. Quando cheguei, pedi a alguns amigos meus, portugueses e espanhóis, para me descreverem uma viagem com 10 desenhos feitos em cadernos e um texto com o máximo de 1000 palavras.

Esses textos e esses desenhos ajudaram-me a estabelecer cerca de 12 características que os desenhos feitos em viagem têm. Assim, além deste pequeno texto e de 30 viagens feitos por desenhadores-viajantes, temos um outro texto escrito por uma jornalista e escritora de viagens, e de romances, que viveu no Rio de janeiro uns anos: Alexandra Lucas Coelho.

É preciso dizer ainda que dois dos autores não os conhecia pessoalmente e são, para mim, os maiores expoentes nas suas áreas e que, inesperadamente, quiseram participar: Álvaro Siza Vieira, arquitecto, e Miquel Barceló, pintor.

- Existe previsão de um diário sobre o Brasil?

Existe previsão de diários para todos os países, e para o Brasil em particular. Haja tempo e dinheiro.
 

Eduardo Salavisa. Largo do Carmo, Lisboa

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¹desenhador do quotidiano:
http://diario-grafico.blogspot.com.br/
²Público:
http://www.publico.pt/

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir


insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

 
convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais


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Poema do livro Claridade, Jorge Adelar Finatto, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.