terça-feira, 3 de novembro de 2015

A praia do gasômetro

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

Ele precisava respirar um pouco de ar fresco, sair do calabouço. Recordou como eram bons os banhos, as caminhadas e brincadeiras que, quando crianças, faziam pela orla do Guaíba.

Um dia distante se viu só diante do rio. A casa da serra tinha afundado. O rio passou a ser seu amigo e confidente.

Foi até a margem do Guaíba fazer um passeio sentimental, que é uma maneira de não deixar o vazio tomar conta.

A hora mais feliz do dia era pela tarde, quando saíam do apartamento com roupas de banho, chinelo, toalha e iam para a praia do gasômetro, ali ao lado da alta chaminé que virou cartão-postal da cidade. Era só sair do edifício, atravessar a rua e estavam na areia. Ser feliz era simples assim.

O Guaíba é esse espelho sobre o qual o céu se debruça todos os dias com o sol, as nuvens e o azul, e à noite com as estrelas.

No dia em que tudo o mais estiver perdido, haverá a memória do rio e nela um barco branco com vela branca para levar o menino a navegar nas águas claras e sem margens da infância.

A ilha ensolarada da infância.
 

sábado, 31 de outubro de 2015

Véspera de Finados num país que afundou

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Eu quero mais é voar pendurado num guarda-chuva grande e colorido. Voar sobre as ruas desertas do meu país, que bateu no fundo do abismo. Voar sobre as praças vazias, sobre as casas e apartamentos enovelados em silêncio, perplexidade e dor.

Eu quero tudo menos essa morte anunciada, lenta e cotidiana. Pra bem longe dessa tristeza e dessa desesperança eu quero ir. Não sei se é possível. Na verdade não é.

Será mais fácil sair voando a bordo de um guarda-chuva. Pelo menos foi isso que nos ensinou a inefável Mary Poppins. Ou até isso não passará de uma tola ilusão? Mas uma tola ilusão é necessária de vez em quando.

Não podemos é nos entregar nos braços da morte como querem seus emissários. E se nos déssemos as mãos e começássemos a varrer os destroços?
 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Fanicos & Farfalhas no Empório Canela

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
A exposição fotográfica Fanicos & Farfalhas está no Empório Canela, Rua Felisberto Soares, 258, centro da cidade, aqui na serra do Rio Grande do Sul. As imagens ficarão expostas até dezembro e são todas da região serrana, especialmente de Canela. Colhi as fotos com a amiga Coruja (ex-máquina, hoje quase um ser humano), durante as caminhadas polifônicas.
 
Não me lembro quantas vezes estive no Empório nos últimos anos. Levei a família, convidados, fiquei sozinho outras tantas.

photo: jfinatto
  
Muitas vezes estive ali na companhia de amigos como Ítalo Calvino, Ruy Belo, Vitorino Nemésio, Florbela Espanca, Drummond, Cecília, Clarice, Pessoa, Salvador Espriu, Bandeira, Antonio Tabucchi, Helena Jobim, Heitor Saldanha, Henrique do Valle, Ortega y Gasset, Cervantes, Miguel de Unamuno, Antonio Machado, Felisberto Hernández, Benedetti, entre outros. Companheiros com os quais dividi a mesa e dialoguei ao redor de taças de café, no intervalo das viagens a Passo dos Ausentes.
 
O Empório é um bom lugar para se estar só ou acompanhado.

photo: jfinatto
  
Além do café (meus dois preferidos são o de especiarias e o dolce), o Empório serve ótimos lanches e refeições, pois é restaurante, e dos bons. Pensam que é só? Também é livraria e sebo. E expõe artesanato de qualidade em vários materiais, além de objetos antigos. E tem mais coisas que fazem bem, entre elas o bom atendimento.
 
Estão todos convidados a visitar a exposição e o lugar. Vale.

photo: jfinatto
 

sábado, 24 de outubro de 2015

Os mistérios do mundo e as conchas do mar

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
Andava eu pela rua Padre Chagas, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, quando visualizei na esquina um cartaz anunciando um Curso de Introdução ao Mundo. Era como um alerta dirigido à minha proverbial falta de fé nos oráculos. 
 
Com vagas limitadas, os encontros seriam dedicados a pessoas que cultivam assuntos filosóficos e que querem desvelar os mistérios da vida. No desenvolvimento das aulas, se trabalharia com conchas do mar, cartas de baralho, almanaques antigos e o indefectível Google. Informava-se, ainda, um telefone móvel para contatos, que deveriam ser feitos o quanto antes para encaminhar a matrícula e formas de pagamento.
 
Percebi que estava ali a grande oportunidade para entender melhor os enigmas da existência. Vislumbrei a libertação de angústias e perplexidades que carrego desde antes de chegar ao útero. No entanto, por ancestral e incorrigível desconfiança, não anotei o número do telefone.
 
No retorno a Passo dos Ausentes, contornando penhascos e já envolto em nuvens, me dei conta do que perdera. Se tivesse aproveitado o que o cartaz oferecia, provavelmente teria renovado minha visão das coisas nesses tempos tão obscuros. Alcançaria quiçá uma percepção mais generosa da existência e suas possibilidades.
 
Mas qual! Voltei, como sempre, a andar na neblina com a costumeira lanterna de mina na mão.
 
Constatei, mais uma vez, essa propensão tão minha de olhar com ironia anúncios de salvação prêt-à-porter, venham eles de onde vierem.

Levantar o escuro véu que oculta os mistérios e belezas do mundo é ofício a ser construído em silêncio, com humildade e claridade de coração. Essa a minha vã filosofia.

Porém, eu devia era levar mais a sério cursos de introdução ao mundo. Quem sabe tudo clareava de vez... Mas não. Por isso continuo aqui, mais que cinqüentenário, insistindo em coisas como o trema, e em outras que nunca levam ao paraíso.
 

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Corações partidos

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Saiu do trabalho às 17h e pegou o filho na escola. Rumaram para o Cementerio de los cristianos y los otros, nome herdado dos padres jesuítas e índios guaranis que fundaram a aldeia há três séculos. Naquele dia estava fazendo 3 anos que Ana Flora tinha morrido.
 
Atravessaram a praça central sob os ipês roxos e amarelos. O sol suave de outubro dourava o ar. Manoel Henriques Soledad levava o pequeno Paulo Henriques sem pressa e em silêncio. Manoel vestia um casaco cinza com calça jeans azul-marinho e trazia na mão esquerda um arranjo de flores. O menino carregava nas costas a mochila da Escola dos Capuchinhos do Perpétuo Amanhecer.
 
Ficaram de pé diante do túmulo, olhando o retrato da falecida. A grama crescia em torno do cimento baixo.
 
Estou indo embora, Manoel Henriques. Isto aqui não é vida pra mim. Cansei desse lugar, dessa vida, de ti, de mim, não tem mais jeito. Por favor, vê se me entende. Nos últimos meses, saí com dois caras, transei com eles, sabia? É isso que queres? Vou morar com uma amiga em Porto Alegre, ela ficou de ver um emprego pra mim. Não gosto mais de transar contigo, não suporto essa casa, esse frio. Desculpa, mas é como é. Temos menos de 40 anos, podemos recomeçar a vida.
 
Mas por que isto agora, depois de 10 anos juntos? É uma crise, estás só cansada, isso vai passar. Já aconteceu antes. Vamos fazer mais coisas, viajar um pouco. Queremos um filho, uma família, lembra?

Eu quero uma vida pra mim, aventura, encontros, novos lugares. Tu és acomodado demais, vives no teu mundo, livros, emprego no correio, acampamentos com amigos. Preciso dizer outra coisa, estou grávida de três meses, não sei quem é o pai.
 
Ana Flora saiu pela porta levando duas malas. Deixou atrás de si o triste perfume da despedida. A porta ficou aberta. Um retângulo de luz iluminou as paredes e o chão do corredor. Manoel foi até o quatro, tomou 10 comprimidos pra dormir e apagou por dois dias. Acordou numa quinta-feira, de ressaca, um terrível mal-estar pelo corpo, um gosto amargo na boca. Sentou-se à mesa da sala, deitou a cabeça entre os braços. A porta ainda estava aberta. Agora chovia. Sobre a mesa havia um vaso branco com flores silvestres que ela havia arranjado.
 
Quatro anos depois, ao chegar em casa, Manoel encontrou Ana Flora sentada no sofá com uma criança no colo. Chamava-se Paulo Henriques Soledad e tinha quase quatro anos.
 
Como foi que tu entraste aqui? O que significa isso? Como pode, depois de tudo, voltar assim sem avisar, usando a chave da casa? Por favor... Eu não mereço tanto.

Não tenho muito tempo pra conversar, Manoel Henriques, estou muito mal de saúde. Vou seguir em seguida para o Hospital das Carmelitas. Cheguei ontem de Porto Alegre. No Hospital de Clínicas, disseram que seria melhor ficar num lugar tranquilo, com ar limpo. Lá não tinham mais o que fazer. Não posso passar sem morfina. Escuta, o filho é teu. Sempre foi. Tu és a única pessoa em quem confio pra cuidar do nosso filho. Estranho dizer nosso filho depois de tudo. Não era pra ser assim, era pra ser uma família. Tenho muita dor, preciso ir logo pro hospital. Vim aqui só pra te entregar o Paulinho. Desculpa pelo sofrimento que te causei. Não quero receber visitas. Toma, segura ele, cuidado. Cuidem um do outro, sejam felizes, se é que dá pra ser feliz nesse mundo. Adeus. Nunca mais se viram.
 
No dia do enterro de Ana Flora, dois meses depois, a superiora das Carmelitas entregou a Manoel um envelope. Era uma última manifestação da falecida. Pediu que ele deixasse para abrir em casa.

Manoel abriu o envelope, o coração batendo forte, a cabeça pulsando. Nunca deixou de gostar de Ana Flora.
 
Leu o documento. Foi até a janela com o papel amassado na mão.  O corpo tremia. O filho olhou para ele, chamou-o. Tudo bem, filho, tudo bem. É só o documento do túmulo da mamãe, que terei de pagar nos próximos 3 anos.  Ah, ela também disse que nos ama.
 
Diante do túmulo, Manoel arrumou o vaso com as flores singelas no centro da lápide. Fez o sinal da cruz e partiu com Paulinho. Tinham um ao outro. E o sentimento que os unia era mais forte que a desolação.
 

domingo, 18 de outubro de 2015

E se formos só nós no universo?

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
Para alguns, é impossível não haver vida além da humana em outros lugares do universo. A imensidão do cosmos não permitiria fechar a porta para a existência de extraterrestres. Por que Deus (ou o acaso, para os não criacionistas) criaria o infinito para deleite só dos humanos? Humanos, aliás, que não têm merecimento para receber tanta bondade.

A pergunta é: e se for mesmo assim, se não houver mais ninguém em lugar nenhum? Nesse caso teremos de nos conformar e aceitar que estamos sós, os escolhidos. Seríamos, assim, o centro da vida. Os donos de tudo.

Se isso alguma vez se confirmasse, será que seríamos melhores com os outros seres vivos e com o nosso semelhante? O problema é que não podemos esperar essa resposta para adotar um comportamento digno. O mundo está se esfarelando diante de nós.

Seria altamente recomendável se cada um se levantasse amanhã mais sensível, amigável, solidário. Dotado de sentimentos capazes de fazer cessar a enorme violência com que tratamos uns aos outros e maltratamos a natureza.

Será um vexame esperar que algum alienígena do espaço venha a nos ensinar a ser melhores do que isso.

Enquanto escrevo essas inúteis linhas, faz 3 graus. Depois do dilúvio das últimas semanas, o frio polar. Acendo a lareira com restos secos de madeira recolhidos do mato. Vem calor e um cheiro bom. Fico olhando o colorido bailante das flamas. A hora é tardia. Dizer que até o fogo tem sua beleza.

Termino essa crônica domingueira com a expressão luminosa de Ítalo Calvino: do outro lado das palavras, há algo que busca sair do silêncio, busca significar por intermédio da linguagem, como dando golpes no muro de uma prisão.*

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*Mundo escrito e mundo não escrito - Artigos, conferências e entrevistas. Ítalo Calvino. pág. 114. Organização de Mario Barenghi. Tradução de Maurício Santana Dias. Companhia das Letras, São Paulo, 2015.
 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Aquarelas de vida

Jorge Adelar Finatto

Aquarela de Nathaniel Marques Guimarães, 2001

O tempo de vida de uma aquarela é pequeno, se comparado a outras técnicas de pintura. A cor e os traços vão esmaecendo aos poucos até sumir. Isso foi o que um pintor amigo me disse, referindo que se trata de uma pintura muito volúvel à passagem da bruma dos dias.

As imagens vão gradualmente desaparecendo.

As pinturas a óleo duram muito mais. Ninguém imagina, por exemplo, que a Mona Lisa, do Leonardo da Vinci, criada entre 1503 e 1517, vá se apagar um dia.

O artista que me fez essa triste revelação era um mestre aquarelista. Seu nome: Nathaniel Marques Guimarães. Falou do assunto com uma tranqüilidade que me espantou e me deu dó ao mesmo tempo. Ele amava a aquarela e a ela dedicou muitos dias de árduo trabalho. Estava conformado com o destino efêmero de sua criação. Essa humildade diante do eterno será talvez uma das virtudes dos gênios.

Acho que pressenti na sua visão a dura verdade daquilo que faço: escrever palavras em folhas de papel ou luminosa tela de computador também é trabalhar para o oblívio. As palavras vão desaparecer não por desgaste físico das letras e páginas, mas por ausência de leitores. E a posteridade, como se sabe, é uma ilusão longínqua e absurda demais para ser levada a sério.

De certa forma, fazemos aquarelas quando escrevemos. E nada devemos esperar além da alegria da criação.

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Nathaniel Marques Guimarães foi um dos grandes aquarelistas brasileiros, além de um querido amigo.