quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Pedro Figari, artista, filósofo, homem de ação

Jorge Adelar Finatto
 
Barrio de negros, 1924. Museo Figari, photo: jfinatto
 
Minha pintura não é 'uma maneira de fazer pintura' senão um modo de ver, de pensar, de sentir e sugerir.

                                    Pedro Figari

Pedro Figari


Uma das visitas mais proveitosas que fiz, nesta viagem ao Uruguai, foi ao Museu Figari, em Montevideo. Já admirava sua obra pelo que havia visto antes, em viagens anteriores, no Museo Nacional de Artes Visuales e no Museo Juan Manuel Blanes.

Não pretendo, evidentemente, neste breve espaço, aprofundar nenhum assunto relacionado a Pedro Figari (1861-1938), senão dar uma ideia resumida e muito pessoal do que vi e senti. Entre outras razões, porque estou começando a conhecê-lo. Se da visão anterior já tinha ficado com uma forte impressão de sua obra, agora ela se enriqueceu e ampliou.

Fantasia, Museo Figari, 1922-23, photo: jfinatto

A produção abundante (cerca de 4 mil obras) e altamente qualificada do artista justifica a existência do museu. Figari foi, para além de artista plástico, jurista, escritor, filósofo, político, colaborador em periódicos, polemista e trabalhador em causas de interesse público, entre outros misteres. Um humanista que atuou na construção de um pensamento (e de um sentimento) em torno da arte e do fazer humano em geral.
 
Como diretor da Escola Nacional de Artes e Ofícios, desenvolveu a ideia de que o trabalhador pode e deve fazer de seu ofício uma arte, atuando com pensamento crítico, esmero e criatividade. Valorizou o trabalho em suas muitas expressões. A arte, para ele, era mais um dos fazeres ao alcance do indivíduo e poderia ser exercida de diferentes maneiras e em diferentes atividades.

Museo Figari. photo: jfinatto

Ao que interessa, nesta breve notícia, cumpre ressaltar o traço e as cores absolutamente singulares de suas pinturas. A composição lírica e delicada das tintas dá às pinturas uma vida única, particular.

Uma tal originalidade possui a obra figariana que nos assoma a impressão de que nada parecido foi feito antes e nem depois. Desenvolveu um modo de pintar e de elaborar a linguagem pictórica que é inaugural. E ali colocou seu sentimento e sua visão de mundo.

En la estancia, 1925. Museo Figari, photo: jfinatto

Há um jeito Pedro Figari de construção plástica. Não conheço nada parecido. Deve-se, claro, ter presente que não sou especialista na matéria, nem pretendo sê-lo. Mas também não sou um observador leviano.

A temática está muito ligada à terra uruguaia, sua gente, sua história, mas nela bate um coração universal. Há cenas campestres, familiares, bailes, situações de sofrimento e depressão, painéis da vida social, fantasias, etc.
 
Não há projeção minudente do figurativo. O artista quer mais sugerir sentimentos e ideias do que descrevê-los. As pessoas, animais e coisas são desenhados com traços sinuosos, em movimento físico e/ou emocional. Não existe preocupação excessiva com detalhes. Os olhos e rostos, por exemplo, não ganham maior destaque. Ainda assim, a composição como um todo resulta rara. Ali sempre há um sentido, nada está perdido ou solto ao acaso.

Algo que chama a atenção é a importância que dá à presença de afrodescendentes. Eles aparecem tanto como serviçais quanto vivendo sua própria vida no bairro, em suas festas e reuniões.

Há um louvável interesse de Figari pela situação destas pessoas na paisagem humana da época, cujos ancestrais vieram da África em condição de escravidão.

Não sei como será no interior do país, mas em Montevideo vejo muito baixa presença de pessoas negras atualmente. Acostumado ao Brasil, onde ela é muito significativa, aqui mostra-se reduzida, ao menos foi o que apreendi nas cinco vezes em que estive no Uruguai.

Miseria, sem data. Museo Figari, photo: jfinatto
  
Um quadro de Figari é facilmente identificável por sua força expressiva e peculiar elaboração. De muitas formas ele me encanta como um dos grandes pintores que tenho conhecido em exposições e museus. 

Penso que já é mais do que hora de levar uma exposição de Pedro Figari ao Brasil. É, sem dúvida, um dos expoentes do continente americano. Conhecer seu pensamento e sua obra é fonte de inspiração e crescimento.

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Museo Figari.  Calle Juan Carlos Gómez, 1427, Ciudad Vieja, Montevideo, Uruguay. 

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Babel, rádio com alma, do Uruguai para o mundo

Jorge Adelar Finatto
 
 
Sou um bom ouvinte de rádio.  Não consigo nem quero abandonar este meio de comunicação. O rádio está na minha vida desde a infância. E na minha infância, no século passado, não havia ainda televisão lá em casa, era algo novo que só existia nas cidades grandes. Passo dos Ausentes, como sabem, fica no fim do mundo, graças a Deus.
 
Quando estou em viagem, como agora, procuro na cidade estrangeira uma rádio para ouvir no quarto de hotel. Por exemplo, em Buenos Aires descobri a Rádio Amadeus, 104.9, FM, de que gosto muito. Em casa, costumo ouvi-la no computador.
 
Em Montevideo, encontrei agora a Rádio Babel, 97.1, FM, do Ministério da Educação e Cultura do Uruguai. Já salvei o endereço no computador. Uma rádio de cultura, de boa música e boas informações nas 24h.
 
A seleção musical é de altíssima qualidade e variada, do jazz à música erudita, passando pela música local de Uruguai, Argentina e Brasil, sobretudo instrumental. Há um trabalho de pesquisa que nos remete a gratas revelações. A locução é breve e elegante.
 
De tal modo que, ao escutar esta rádio, tenho a impressão de estar vivendo num mundo melhor, mais belo e refinado, com uma alma e uma delicadeza que nos faltam no mundo real.
 
A Rádio Babel é um refúgio espiritual em meio ao caos.

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Babel FM, Uruguay
http://www.babel.com.uy/babel.html 
 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Meu fantasma predileto

Jorge Adelar Finatto

La samaritana, Juan Manuel Blanes, Museo Blanes

 
Juan Niebla me acompanhou até a minúscula estação de ônibus de Passo dos Ausentes na partida. Veio batendo bengala pela calçada. O sobretudo negro, a cabeleira branca e desgrenhada ao vento, os óculos escuros, dão-lhe, às vezes, um ar espectral. Costumo dizer-lhe que ele é o meu fantasma predileto. Ele agradece e diz, irônico, que se sente envaidecido.
 
De pé ao lado da minha janela no ônibus, disse: "Não esqueça. Existem dois tipos de pessoas: as que têm saúde e as que têm problemas de saúde. As primeiras devem aproveitar o momento e fazer o melhor que puderem. As outras precisam acreditar que tudo vai melhorar." Juan é assim.
 
Vou levar-lhe um equipamento novo para o chimarrão, de Montevideo, cuia, bombilha e garrafa térmica.
 
Sábado foi dia de visitar o Museo Juan Manuel Blanes com seu acervo de obras do grande artista uruguaio. Há também pinturas de Pedro Figari, outro expoente das artes plásticas no Uruguai.
 
O museu possui um bonito parque ao seu redor com muitas árvores e recantos. E um pátio interno encantador, onde se pode sentar a admirar as carpas coloridas no amplo tanque central. Sobre o trabalho de Blanes - sua qualidade e sua importância - já escrevi aqui no blog.

Museo Juan Manuel Blanes, Montevideo. photo: jfinatto

Para quem vem do Brasil, o Uruguai tornou-se um país muito caro, os preços são exasperantes. O problema não é o Uruguai, mas a brutal desvalorização do real em relação às outras moedas, tendo o dólar como principal parâmetro. Tudo ficou muito difícil para o brasileiro nas viagens ao exterior.

Apesar de tudo, Montevideo é uma referência literária, artística e humana importante e sempre vale a pena. Como resistir a comprar alguns livros, discos, jornais e revistas, mesmo com os preços salgados?  Não dá. Afinal, estamos na pátria de Onetti, Vilariño, Lautréamont, Zitarrosa, Juan Manuel Blanes, Pedro Figari, Galeano, Benedetti, Morosoli e tantos outros.
 
No sábado à noite, no Teatro Solís, um belo momento de jazz com o português Mário Laginha e o italiano Stefano Bollani. Antes, visita à interessante exposição de marionetes numa das salas do teatro.

Exposição de títeres, Teatro Solís, Montevideo. photo: jfinatto
 

sábado, 21 de novembro de 2015

Van Gogh na Peatonal Sarandí

Jorge Adelar Finatto
 
photo: site Galería Ciudadela, Montevideo¹

Caminhando ontem pela Peatonal (rua de pedestres) Sarandí, em Montevideo, vi uma escultura na Galería Ciudadela que, à distância, me chamou a atenção. Aproximei-me da vitrine. Já era por volta de 19h, a galeria estava fechada. Procurei o melhor ângulo para fotografar. Nesse momento me dei conta de que se tratava de uma escultura de Van Gogh (250 x 122 cm).
 
Olhando os detalhes, percebi que estava diante de uma bela obra de arte. Feita com ferro e madeira, revela uma grande maestria do escultor. Impressiona a construção dos traços e do olhar de Van Gogh, reunindo técnica e emoção.
 
photo: jfinatto, Galería Ciudadela, 20/11/15
 
É admirável como o artista conseguiu tal resultado usando materiais como pés de bancos e cadeiras, pedaços de venezianas e peças de ferro variadas, que provavelmente eram sucata que ele recolheu e transformou em arte. O refinamento do trabalho é notável.
 
De volta ao hotel, pesquisei no site da Galería Ciudadela (espaço de arte imperdível em Montevideo, localizado na Ciudad Vieja) quem era o artista. Trata-se de Javier Abdala, montevideano nascido em 1971, que é professor no Instituto Escola Nacional de Belas Artes, da Universidade da República do Uruguai. No site do artista, veem-se outras imagens de sua rica obra.²
 
Estou encaminhando este post ao Museu Van Gogh de Amsterdã. Eu, se pudesse fazer uma sugestão à direção do museu, recomendaria a aquisição desta escultura para integrar o seu acerco. Por rara, criativa, única.
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¹Galería Ciudadela:
 
² Javier Abdala
 

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O escândalo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto

 
As hortênsias resolveram embelezar a cidade. Era só o que faltava.

Em meio a tanta desilusão, tanta feiura das almas, tanta gente má e casca grossa, vêm agora as hortênsias e decidem distribuir beleza e graça.

Um negócio muito estranho.

Um verdadeiro absurdo nas ruas de Passo dos Ausentes.

Quando achava que não tinha mais jeito, quando nada mais esperava diante do triste espetáculo humano, as hortênsias surgem em silêncio, espargindo cor e delicadeza sobre cinzas.
 
O que mais nos espera? - eu pergunto - e já ninguém responde.

Tanta beleza é mesmo uma violência contra a desolação.
 
O que será feito da nossa histórica descrença no Brasil, no futuro e em nós mesmos?
 
E o que restará do nosso olhar melancólico sobre o sentido da existência? É o fim dos tempos.

Devia ser aberto, imediatamente, um inquérito contra as hortênsias por tamanho escândalo e desacato, verdadeiro atentado violento ao pudor. Onde já se viu!
 
Mas ninguém faz nada, este é realmente o tempo da impunidade.

Nem maldizer a vida em paz a gente pode agora. A ancestral tristeza é brutalmente sacudida e sufocada. Ai de nós!
 
É o fim da picada.
 
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Texto revisto, publicado originalmente em 12/12/11.

domingo, 15 de novembro de 2015

Idea Vilariño, poeta

Jorge Adelar Finatto
 
poeta Idea Vilariño na juventude
 
Uno siempre está solo

Sempre estamos sozinhos
mas
às vezes
estamos mais sozinhos.

poema de Idea Vilariño ¹ (trad. livre de Jorge Finatto)

 
Idea Vilariño(1920-2009) é uma grande poeta uruguaia. Descobri-a no início deste ano, em Montevideo, cidade onde nasceu, viveu e morreu. Estou lendo sua obra, notável em intensidade, profunda, límpida, acolhedora.
 
O leitor não precisa ser especialista em poesia para penetrar nos versos de Idea. Basta ter um coração ávido.

Os textos respiram simplicidade. Mas é o simples conquistado com muito trabalho (mais fácil é ser enrolado, difícil, beletrista). A autora fez uso concentrado e depurado da linguagem. Suas composições vão do mais íntimo da alma ao tema geral, com grande qualidade e poder de comunicação.
 
Idea dizia muito com poucas palavras. Escrevia em qualquer papel que estivesse à mão. Poesia densa, amorosa, sofrida, social, que abarca uma rica experiência humana. 
 
Travar conhecimento com os versos de Idea Vilariño foi e está sendo uma bela revelação.
 
Ela também foi professora, compositora, tradutora e crítica literária. Participou da Geração de 45, de intelectuais do Uruguai que buscaram a renovação da arte em seu país.
 
Estou dando esta breve notícia porque se trata de uma autora quase ignorada no Brasil, que precisamos conhecer melhor. Uma criadora rara, universal. Como diz Rosario Peyrou, na apresentação de Vuelo Ciego: "É impossível ler Idea Vilariño sem sair sacudido, marcado de certa forma para sempre".²
 
Este papel mi vida
 
Olvidado
perdido
não lido
não aberto
amassado e ao fogo
fugaz incandescência.³
 
                  (trad. livre de Jorge Finatto)

Para quem quiser saber mais, vale a pena assistir o documentário do link abaixo, onde ela diz alguns de seus poemas.
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¹ Vuelo Ciego, Idea Vilariño. Apresentação de Rosario Peyrou. Visor Libros, Madrid, 2004.
² idem, pág. 22.
³ idem, pág. 87.

Depoimentos sobre Idea Vilariño e leituras de poemas por ela:
https://www.youtube.com/watch?v=A7WNtYPckYE
 

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Num bosque da Toscana, o psiquiatra eremita

Jorge Adelar Finatto
 
fonte: Corriere della Sera 
 
A família procurava Carlos Sánchez Ortiz de Salazar (espanhol, 46 anos), desde que fugiu de casa aos 26.  Nos últimos dias, os pais e a irmã acreditaram que, enfim, estava vivo. Da Itália receberam informação de que ele vivia como ermitão num bosque da Toscana. Todavia, uma vez descoberto, voltou a desaparecer, fazendo sofrer seus familiares, que terão de continuar a busca.
 
Carlos foi encontrado num bosque de difícil acesso, com vista para o mar, perto de Scarlino, pequena localidade da Toscana, região central da Itália. O acaso levou catadores de cogumelo ao local onde vivia numa tenda, afastado de tudo e de todos. Conforme informações divulgadas pelo jornal espanhol El País (10 nov.) e pelo italiano Corriere della Sera (7 nov.), Carlos formou-se médico psiquiatra na Universidade de Sevilha. O desaparecimento teria ocorrido após uma grave depressão.
 
Natural de Bilbao, o último domicílio do médico na Espanha foi a pequena cidade de Cazalla de la Sierra, província de Sevilha. Ao ser encontrado, revelaram os catadores de cogumelo, mostrou-lhes o cartão da biblioteca e sua identificação de estudante da faculdade de medicina. Disse na ocasião:
 
- Sou espanhol, meu nome é Carlos e vivo aqui há 20 anos. Agora terei que me mudar novamente.

Depois deste encontro, sumiu. Os pais foram à Itália assim que souberam. Visitaram o refúgio do filho. Emocionaram-se. Afirmaram que tudo que queriam era vê-lo. 
 
A associação italiana Penélope, que dá apoio a famílias de desaparecidos, está acompanhando o caso. Membros de guarda florestal e pessoas das redondezas declararam que o viram algumas vezes e que se apresentava como um homem calmo, que não queria conversar.
 
O mais incrível desta história é que o médico foi declarado oficialmente morto pela justiça espanhola devido ao tempo em que esteve desaparecido.
 
O defunto Carlos, ao que se vê, está muito vivo, e aparentemente bem. Só não quer contatos. Os colegas de profissão do ausente provavelmente terão explicações para este proceder, que escapa ao entendimento da maior parte dos mortais. Mas qual de nós não teve, alguma vez, vontade de desaparecer do mapa, apagar o vivido, reiniciar a vida longe de todos em um lugar distante?
 
O psiquiatra Carlos optou pela ausência radical, essa forma de morrer em vida. Tornou-se um morto que respira solitário nos bosques da Toscana. Seu comportamento deixa muitas interrogações.

Contudo, digo eu, considerando que vivemos numa sociedade habitada por feras capazes das piores barbaridades contra os semelhantes (a começar pela indiferença), o doloroso desaparecimento não chega a ser um completo absurdo. Absurda é a vida do modo que está.
 
Carlos escolheu talvez um jeito diferente e invisível de sobreviver aos horrores da nossa civilização.
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El País:
http://politica.elpais.com/politica/2015/11/09/actualidad/1447069875_735570.html

Corriere della Sera:
http://www.corriere.it/cronache/15_novembre_07/carlos-eremita-per-20-anni-nascosto-bosco-maremma-genitori-credevano-fosse-morto-4d5446fc-857c-11e5-aefe-2915a18071e3.shtml