domingo, 7 de agosto de 2016

A festa e a realidade

Jorge Finatto

Abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016. foto: Lucy Nicholson, Reuters.¹
A festa de abertura da Olimpíada Rio 2016 encheu os olhos e o coração. Me emocionei várias vezes, como a maioria dos brasileiros. Uma bela síntese do Brasil multirracial e multicultural, criativo, inspirador. O espetáculo mostrou um país rico em sua humanidade, capaz de notáveis realizações.
Ao mesmo tempo, é duro saber que o custo da festa, somado à de encerramento, será de R$ 270 milhões (cerca de 90 milhões de dólares), suportado pelos governos federal e municipal do Rio de Janeiro, conforme divulgado nos órgãos de imprensa.²
A rigor, o Brasil não poderia gastar com a realização dos Jogos Olímpicos neste momento. Poderia, talvez, se não tivesse afundado numa enorme crise provocada por péssima gestão e imensos desvios de dinheiro público com corrupção avassaladora dos últimos anos.

Em nenhuma hipótese, deveria ter assumido dois megaeventos, Copa do Mundo e Olimpíada, em curtíssimo espaço de tempo (2014-2016). Enquanto isso, "faltam recursos" para coisas essenciais. Grande parte dos brasileiros padece sofrimentos intoleráveis. 

As populações do Rio e do Brasil (somos 205 milhões de habitantes) trocariam de bom grado as cores e o brilho dos Jogos Olímpicos por mais saúde, segurança, educação, bem-estar social, emprego, saneamento (a poluição assustadora da Baía de Guanabara é nosso cartão de visitas). A realidade brasileira é desumana.

Evidente que a Olimpíada não é culpada de nada. É apenas um passo errado no momento errado, que encerra um custo altíssimo e espelha uma nação sem rumo.
  
De modo que, junto com lágrimas de emoção, correm lágrimas de tristeza por constatar, mais uma vez, que, depois da festa, a casa voltará à sombra.
 _________ 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

O palhaço fugiu do circo

Jorge Finatto

cena veneziana. Itália. photo: jfinatto
 
O pequeno circo Il sorriso della vita passa por momentos difíceis. Motivo: o palhaço Gilles resolveu abandonar a companhia. 2º Motivo: foi atrás da mulher que o abandonou, a trapezista Lara.

Don Sigofredo de Alcantis noticiou o fato na semana passada, durante reunião da Sociedade Literária, Filosófica, Histórica, Geográfica, Artística, Astronômica, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes. Todos ficaram surpresos e abalados com a notícia. A aldeia não será a mesma sem o circo mambembe de lona vermelha, que se aquerenciou por aqui faz cinco anos. As crianças, os velhos, todo mundo ia lá para ver as momices de Gilles, os saltos e a graça de Lara.

A assembleia deliberou enviar pombos-correio às três cidades mais próximas (São Francisco de Paula, Canela e Gramado), solicitando que procurem o palhaço e a trapezista nas ruas, praças e telhados. Se alguém os encontrar, peça que voltem logo a Passo dos Ausentes.

A estrada de chão que nos liga ao resto do mundo está intransitável depois das últimas chuvas de julho. Ninguém pode descer a serra, serpenteando pelas encostas das montanhas do Contraforte dos Capuchinhos, pena de cair em algum dos inúmeros abismos.

Gilles é um palhaço triste. Levou a tristeza para dentro do casamento, deixou a alegria no picadeiro. Lara é leve como o vento e quer alegria na vida. Quer um homem que saiba rir. Como era Gilles quando o conheceu. A tristeza sem nome que ele trouxe da infância tomou conta de seu coração de menino que não cresceu. Tornou-se calado e distante. Lara quer o Gilles que conheceu outrora de volta. Ele não vem. Ela vai embora. O mundo do palhaço desaba. Ele parte à procura da mulher. O circo desce a lona.

Como um abandono leva a outro, a maior atração cultural da nossa aldeia está à beira de nos abandonar. O que será uma tristeza nesse cenário de frio, neblina e ausência.

Volta, Gilles! Volta, Lara! Tragam outra vez o sorriso da vida para nossas vidas!
 

sábado, 30 de julho de 2016

Nara Leão, opinião e arte

Jorge Finatto
 
Nara Leão. fonte: site oficial da artista*

Há muito tempo quero escrever alguma coisa sobre Nara Leão (1942-1989), a quem acompanho desde sempre ouvindo seus discos. Tenho grande estima pela obra que construiu, pela grande arte que legou ao Brasil e ao mundo.

Por alguma razão que não sei bem, toda vez que ponho um disco de Nara para tocar, vivo um instante de emoção e elevação espiritual. A voz linda e a interpretação personalíssima nos dizem que viver vale a pena, que a existência é muito mais bonita do que isto que se vê nos noticiários todos os dias.
 
Toda vez que cantou uma canção, Nara Leão criou uma obra de arte. Na sua voz única e delicada, algo sempre nasce, diferente e melhor. Porque ela fazia um trabalho de recriação quando cantava e tocava seu violão. Uma coisa é a música na voz de outros. Outra, diversa e extremamente refinada, é a que ela nos transmite com seu dom, sua alma e seu sentimento.
 
Da bossa nova ao samba do morro, tudo que cantou foi com absoluta verdade e sensibilidade. Mulher de opinião, corajosa na oposição ao autoritarismo, não deixou de se posicionar contra a ditadura e contra a pequenez das mentes e dos gestos. Talentosa e discreta, avessa a frivolidades, sua presença qualificou e arejou nosso ambiente social e cultural.
 
Nara Leão faz parte de um Brasil em que a arte, a dignidade e a justiça devem ser partilhadas entre todos. Um país que ainda não existe, por certo, mas com o qual sonhamos e pelo qual lutamos inspirados no seu exemplo.
 
___________ 
 
*Nara Leão:
 

terça-feira, 26 de julho de 2016

A arte de Custodio Coimbra

Jorge Finatto
 
foto: Custodio Coimbra. barcos coloridos separados por píer, maré baixa,
São Gonçalo, Rio de Janeiro. Agência O Globo
 
Dizer que Custodio Coimbra é só um fotógrafo comum de imagens do cotidiano seria equívoco. Algo como afirmar que Chopin é apenas um tocador de piano, ignorando que, na verdade, é um gênio do instrumento e da composição.
 
Custodio é um artista que vai além do prosaico. O trabalho que produz tem força estética, conteúdo social, valor documental e, além de tudo, está carregado de poesia.
 
Ele transita numa esfera de delicadas composições visuais, que destacam as verdades imanentes que cada objeto encerra. Quando fotografa, sempre ou quase sempre nasce uma obra de arte.
 
Esta obra concilia, com maestria, denúncia e beleza. Isto ocorre, por exemplo, quando aborda a degradação do meio ambiente. A sua fotografia não nos diz que tudo está perdido, mas recorda que há muito a pensar e fazer para salvar a natureza. 

A alma dos seres e das coisas transparece nas imagens de Custodio Coimbra, aproxima e comove o leitor, retirando-o da indiferença.

foto: Custodio Coimbra. golfinho com lixo na cauda. Agência O Globo
 
Falo estas coisas após ler, na Revista O Globo, encartada na edição dominical (24/7/2016) do jornal, uma matéria sobre o trabalho do grande fotógrafo. Na capa uma bela imagem captada por ele: barcos separados por píer durante maré baixa em São Gonçalo. São dezenas de barquinhos coloridos num fundo escuro. Uma beleza rara.
 
A reportagem (escrita pela jornalista Joana Dale) traz outras fotos e dá conta da produção do artista. Ele trabalha nO Globo desde 1989. Anuncia-se para hoje (26/7), o lançamento de seu livro Guanabara, Espelho do Rio, FGV Editora, com 170 imagens da Baía de Guanabara, abarcando 20 anos de fotografias. Aves, cavalos-marinhos, pescadores, rios, botos-cinza, matas, barcos, poluição, lixo, etc., compõem o belo e inquietante mosaico.

O livro traz textos da jornalista Cristina Chacel, enfocando aspectos históricos, ambientais e culturais. O evento ocorrerá na Folha Seca, centro do Rio
 
A publicação deve chegar às livrarias em agosto. Antes que algum aventureiro lance mão do meu exemplar, já mandei e-mail a minha livraria, solicitando encomenda urgente. 

imagem: Custodio Coimbra. foto aérea de pedras próximas à Ilha do Sol.
divulgação
__________ 
 
Livro reúne 20 anos de imagens:

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Caderno de Abrantes

Jorge Finatto

desenho de Abrantes. Eduardo Salavisa
 
Tratei aqui no blog dos diários gráficos ao abordar trabalhos de Mário Linhares¹ e Eduardo Salavisa², ambos portugueses. Aprecio esses desenhos que captam instantâneos do cotidiano, em pequenos cadernos que os desenhadores levam na mão, no bolso, na bolsa, na mochila, na bicicleta, dentro do chapéu, etc.

Há qualquer coisa de frescura, de fruto recém colhido do pomar cuja imagem surge leve na página e logo conquista a intimidade do leitor.

Para esses desenhadores, desenhar é uma forma de entrar em contato com o mundo, desvelar um momento que, de outro modo, se perderia no relâmpago do instante. São traços que nascem da observação distraidamente atenta do entorno.  Há desenhadores em diversos países, mas no Brasil creio que o gênero ainda é pouco cultivado.

A arte - o desenho é uma de suas faces - responde a um apelo de registrar o efêmero. Os desenhos assim concebidos não têm a objetividade como alvo. Trata-se, antes, de uma visão bastante pessoal e livre do observador. É muito mais um sentimento do que um retrato. Neste olhar particular estão a riqueza e a surpresa das imagens.

O itinerário através do cotidiano é algo que diz muito. Revela uma capacidade de se deixar tocar pela realidade dos lugares e das pessoas que neles habitam. Isto não é pouca coisa, considerando o momento extremamente duro e violento que vivemos, em nível global, com grandes tragédias invadindo as ruas e cerceando nossos passos.

desenho de Abrantes. Eduardo Salavisa

Acabo de receber pelo correio - ainda com cheiro de Portugal - o livro Caderno de Abrantes³, de Eduardo Salavisa. Natural de Lisboa, onde vive e trabalha, Eduardo costuma desenhar em qualquer lugar e circunstância. É autor e organizador de vários livros do gênero, além de participar de exposições, conferências, cursos e encontros enfocando esse tipo de trabalho.

O Caderno de Abrantes resulta de uma residência artística que ele fez naquela cidade em  2015, durante 11 dias. Nesse período perambulou pelas ruas, praças e diversos ambientes, vendo e convivendo com as pessoas naquele universo.

Diz o autor na apresentação: "Quando me convidaram para desenhar Abrantes, cidade onde nunca tinha estado mais que umas horas, pensei: Será que conhecem os meus desenhos? Que sabem que tipo de desenho faço? Saberão que os meus registos não são completamente fidedignos ao observado?... Sabiam e a liberdade era total".

A obra de Eduardo é reveladora não só de recantos de Abrantes como de momentos da vida de seus habitantes. Em formato de livro de bolso, desperta no leitor o desejo de conhecer aqueles cenários. A variedade das cores e das formas é um regalo para os olhos.

Difícil imaginar maneira mais delicada de mostrar uma cidade.

desenho de Abrantes. Eduardo Salavisa
___________

¹Fernando Pessoa viajando no elétrico em Lisboa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2016/02/fernando-pessoa-viajando-no-eletrico-em.html  

²Eduardo Salavisa e a viagem no cotidiano:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/11/eduardo-salavisa-e-viagem-no-quotidiano.html

³Caderno de Abrantes. Eduardo Salavisa. Edição da Câmara Municipal de Abrantes. Portugal, 2016.
 

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Un lugar llamado Alcalá


 
 
photo: Guillermo Gumiel. Espanha

El Museo Casa Natal de Cervantes, en el marco de la conmemoración del IV Centenario del fallecimiento de Cervantes, os invita a un paseo por Alcalá de Henares basado en las andanzas de Don Quijote de la Mancha.

Todos los sábados hasta el 27 de agosto de 2016, a las 11.00 y 12.30 horas, los asistentes a la ruta recorrerán algunos de los lugares más emblemáticos de Alcalá de Henares vinculados a Miguel de Cervantes, en compañía del protagonista de la novela inmortal del escritor y su fiel escudero.

Don Quijote y Sancho han viajado a través de los tiempos, de aventura en aventura, para llegar finalmente a la ciudad que vio nacer a Cervantes, para descubrir qué es, qué fue y qué será en el futuro, guiando al grupo y contando sus propias andanzas y anécdotas.

FECHAS: sábados hasta el 27 de agosto de 2016 a las 11.00 y 12.30 h. (60 min. duración)

DIRIGIDO A: todos los públicos (los menores deberán ir acompañados por un adulto)

COMPAÑÍA: AlmaViva Teatro (dramaturgia y dirección: César Barló; interpretación: Iria Márquez, Fernando Mercé y Javi Rodenas)

Las entradas a la ruta teatralizada se distribuirán, por riguroso orden de llegada, el mismo día de la actividad desde las 10.30 h. hasta agotar existencias (máximo 2 entradas por persona).

Actividad gratuita. España


_________ 

Museo Casa Natal de Cervantes:
http://www.museocasanataldecervantes.org/

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Andante cantabile

Jorge Finatto

photo: jfinatto


Deus me deu muitos vazios para me entreter nessa vida.

Muita gente se queixa do vazio. Eu, pelo contrário, celebro o vazio, as minhas faltas, os meus vagos, hiatos, intervalos, lacunas, pois, graças a eles, estou sempre ocupado na ingente busca de me completar (nunca alcançada).

Se não fossem os vazios, as longas caminhadas pela dúvida e pelos nadas, os dias seriam todos iguais, a realidade seria insuportável mais do que é. Todo artista vive pra tapar buracos na alma.  

O vivente sente um vazio no coração, uma insatisfação de existir. Queria sentir-se pleno. Vai atrás de respostas, vai observar, escutar, interrogar, criar. Nunca encontrará a plenitude. Mas o fato de procurar já o torna alguém neste mundo.
 
Passei uma parte da vida no bosque das estantes. Que é um lugar de auroras, propício a altos voos, território de vidas e histórias inventadas.

Ler é trilhar caminhos a passos de silêncio. Há dias em que monto em meu cavalo invisível e saio a galope ao lado de Sancho e Dom Quixote por estradas de pedra, sombra, luz e sonho.

Pensando bem, só nos livros andamos a salvo por estranhas realidades. Mas não é capricho viver encerrado entre as quatro paredes de um livro, a salvo da vida. Há que sair, construir pontes, encontrar outros viajantes.

Cavalgar pelo oco do mundo em busca de sentidos.